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Desfecho após alta da unidade de terapia intensiva pediátrica

EDITORIAL

Desfecho após alta da unidade de terapia intensiva pediátrica

Warwick Butt

Fellow of the Royal Australasian College of Physicians and of the College of Intensive Care Medicine. Associate professor, Department of Paediatrics, University of Melbourne, Melbourne, Austrália. Group Leader, Murdoch Childrens Research Institute, Royal Childrens Hospital, Melbourne, Austrália

Correspondência Correspondência: Warwick Butt Paediatric Intensive Care Royal Childrens Hospital 50 Flemington Road 3052 Parkville - Melbourne, Victoria - Australia E-mail: warwick.butt@rch.org.au

A avaliação do desfecho de crianças tratadas em unidades de terapia intensiva (UTIs) vem se modificando consideravelmente nos últimos 25 anos. O aumento na disponibilidade e na capacidade dos sistemas mecânicos e artificiais de suporte de órgãos e as consequentes baixas taxas de mortalidade na maioria das unidades de terapia intensiva pediátricas (UTIPs) indicam que a sobrevida após a internação na UTI não é mais o único desfecho de interesse. Assim, o desfecho funcional e a qualidade de vida estão adquirindo cada vez mais importância. A capacidade física e intelectual de uma criança para realizar tarefas e ser um indivíduo com independência funcional (desfecho funcional) é diferente da qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS), que avalia o bem-estar e a saúde social e emocional do indivíduo, e também a mobilidade e outros indicadores de capacidade funcional. Qual é o desfecho de uma criança após a alta da UTIP? Essa parece ser uma pergunta muito simples; no entanto, infelizmente, sua resposta é bastante complexa, com muitas questões delicadas a serem consideradas1.

Nesta edição da revista, Cunha et al.2 examinam a QVRS de crianças sobreviventes a cuidados intensivos. Foram internadas 1.495 crianças durante o período de estudo, sendo que 517 com idade superior a 6 anos eram elegíveis para o estudo; entre essas, 320 foram avaliadas na admissão e 252 foram avaliadas novamente, por telefone, 6 meses após a admissão na UTI. Deficiência grave esteve presente em 36% das crianças antes da hospitalização, com melhora em 60% dos casos após 6 meses. No total, 21% não apresentaram alteração na QVRS, 40% tiveram melhora e 38% agravamento. A mudança na QVRS dependeu, em parte, do diagnóstico, visto que pacientes com problemas cardiorrespiratórios e musculoesqueléticos tenderam a melhorar, enquanto crianças com trauma e sepse/choque agudos tenderam a piorar. Trata-se de um estudo bem delineado, que buscou abordar as questões complexas associadas à avaliação do desfecho e apresentou uma análise interessante e detalhada. Os autores utilizaram um instrumento canadense de avaliação do desfecho reconhecido e padronizado e avaliaram o estado pré-UTI, que é um dos principais fatores que influenciam o desfecho de um paciente. Eles fizeram várias tentativas (até cinco) de contatar as famílias e obtiveram uma boa taxa de sucesso de 79%. O período de seguimento foi de 6 meses, um curto intervalo de tempo após a UTI, no qual a recuperação neurológica pode não ter sido completa; no entanto, o desfecho é relevante para protocolos de tratamento e para a atuação dos hospitais e do sistema de saúde. Um dos achados fundamentais (semelhante ao de outros estudos) é que há muita variação entre os pacientes; portanto, esse tipo de informação é útil para o planejamento de recursos e para a avaliação de programas de saúde e não para o prognóstico de pacientes individuais.

Quando uma unidade deseja determinar o desfecho de seus pacientes após a UTI, deve começar decidindo se avaliará o desfecho em termos de sobrevida, desfecho funcional ou qualidade de vida. Para realizar essa tarefa, existem muitos Instrumentos, mas atualmente os melhores instrumentos gerais para o estudo em crianças incluem a Categoria de Performance Global Pediátrica (Pediatric Overall Performance Category)3, a Categoria de Performance Cerebral Pediátrica (Cerebral Performance Category)3 e a Functional Status Scale para a avaliação funcional4, e o Health Utilities Index Mark 35 para a avaliação da qualidade de vida. Em um estudo6 no qual foram realizadas ambas as avaliações após uma mediana de 3,5 anos (variação 2,3-6 anos), existiram diferenças pequenas mas reais; 10% apresentaram desfecho funcional desfavorável e 16% apresentaram qualidade de vida desfavorável.

A unidade precisa decidir também qual grupo de pacientes é mais interessante para a realização do seguimento: todos os pacientes da UTIP ou um grupo de diagnóstico específico? Grupos específicos de diagnóstico (por exemplo, pacientes traumatizados, imunodeprimidos, cardíacos) ou desfechos de interesse específico (neurodesenvolvimentais) frequentemente necessitam de testes que avaliem os desfechos de forma direcionada, tais como o teste Stanford-Binet, o teste de Bayley, a Escala de Comportamento Adaptativo de Vineland (Vineland Adaptive Behavior Scale) ou o Adaptive Behavior Assessment System II. Muitos desses testes de desfechos são dependentes da idade; portanto, a idade do paciente no momento da avaliação é crucial, o que muitas vezes requer a utilização de diferentes instrumentos ou de diferentes versões do mesmo instrumento. O instrumento será simples e possibilitará a sua aplicação por telefone, ou será necessário que o paciente seja examinado frente a frente? Isso tem um evidente impacto na capacidade prática de realizar estudos maiores e mais detalhados, porque um telefonema é muito mais barato e simples do que o retorno da família ao hospital para uma análise detalhada. Muitos desses instrumentos requerem uma opinião subjetiva, especialmente as entrevistas por telefone. Qual perspectiva presumiremos que é a correta? Crianças mais velhas e adolescentes podem enxergar a sua situação de forma diferente da dos pais. Os entrevistadores conversarão com as crianças mais velhas, ou apenas com os pais? A avaliação do desfecho será realizada quanto tempo após a alta, considerando que eles se modificarão ao longo do tempo?

Em um estudo que avaliou o desfecho neurológico 1 e 5 anos após alta da UTI após lesão cerebral7, o desfecho funcional no seguimento de 5 anos demonstrou que 53% das crianças apresentaram estado funcional bom ou regular, enquanto 47% eram portadoras de deficiência grave, estavam em estado vegetativo ou haviam falecido. Houve mudança no desfecho em 17 dos 40 sobreviventes entre o período de 1 e 5 anos após a alta: 12 melhoraram, três pioraram e dois faleceram. Foram observadas também pequenas diferenças entre a qualidade de vida e os desfechos funcionais. Esses desfechos puderam ser preditos pelos potenciais evocados somatossensitivos de curta latência7. Isso é interessante em vista das recentes opiniões a respeito da predição do desfecho e a respeito da utilização da mortalidade ou da morbidade (função/qualidade de vida) na avaliação dos desfechos8. O intervalo de tempo após a alta da UTI também tem influência sobre a taxa de seguimento, visto que, quanto maior o tempo após a alta, menos pacientes comparecerão/responderão9. Isso é de vital importância, porque baixos índices de seguimento levam a informações imprecisas, devido aos intervalos de confiança muito amplos para a média ou a mediana10.

O desfecho de qualquer criança depende de muitos fatores diferentes, incluindo fatores relacionados ao paciente, como diagnóstico, problemas de saúde preexistentes, gravidade da doença, viés de antecipação, normas da UTI, e outros fatores, como tratamentos disponíveis, atitudes sociais/culturais a respeito de pacientes complexos e de tratamentos complexos, atitudes a respeito de cuidados prolongados e da suspensão dos cuidados médicos, e o sistema hospitalar e do sistema público de saúde em geral. Todos esses fatores estão sujeitos a mudanças sutis ou drásticas ao longo do tempo; portanto, os desfechos de uma única unidade podem mudar drastiicamente9. Ao revisar a experiência de uma unidade ao longo de três décadas, Namachivayan et al. demonstraram que, embora a taxa de mortalidade tenha caído de 11 para 4,8%, a proporção de sobreviventes com deficiência moderada ou grave aumentou de 8 para 18%. Além disso, a taxa de readmissão cresceu de 11 para 31%, e a porcentagem de crianças sem anomalias preexistentes à admissão caiu de 79 para 64%.Também ocorreram nesse estudo alterações importantes no número de crianças com traumatismo e cardiopatia congênita ou que necessitaram de internação pós-cirúrgica. Um dos determinantes mais fundamentais e poderosos do desfecho a longo prazo é o estado de saúde pré-admissão11. Em crianças que apresentavam estado normal antes da internação na UTI, 69-82% voltaram ao estado normal após a alta da UTI9, enquanto 92-100% das crianças com deficiência grave antes da internação na UTI faleceram ou permaneceram gravemente deficientes. Todos esses fatores se tornam ainda mais importantes quando uma unidade deseja comparar seus desfechos com os de outras unidades de diferentes países. Temos a tendência a presumir que todas as UTIs e sistemas de prestação de saúde são semelhantes; porém, isso não é verdade12.

É muito importante, ao se realizarem estudos de desfecho, que fique bem claro o motivo da realização do estudo. Caso estejamos em busca de informações para aconselhar os pais sobre prognósticos gerais ou "de um grupo", então informações gerais são apropriadas e úteis. Caso desejemos utilizar essas informações para a predição do desfecho de um paciente em especial, então são necessárias informações específicas e precisas, com um alto grau de confiança e certeza, o que requer dados rigorosos e exatos que sejam relevantes para aquele paciente e seu diagnóstico. Caso as informações sejam utilizadas para avaliar o resultado de um tratamento ou otimizar a alocação de recursos, então é crucial haver um equilíbrio entre a acurácia dos dados e a proximidade do tratamento. O ensaio britânico com a técnica da oxigenação extracorpórea por membrana (extracorporeal membrane oxygenation, ECMO)13 é um ótimo exemplo disso: um ensaio clínico randomizado controlado utilizando a ECMO demonstrou um aumento inicial na sobrevida, que continuou nas avaliações subsequentes, realizadas 1, 3 e 7 anos após a alta; no entanto, também ocorreram alterações no desempenho neurológico. Como estão sendo realizados acompanhamentos mais longos, descobrem-se dados interessantes, mas a relevância para os modernos protocolos clínicos de tratamento diminui. O tratamento convencional (como o oferecido no braço controle do estudo) modificou os desfechos da mesma forma que a implementação da tecnologia da ECMO. Assim, o tempo de seguimento tem importantes implicações para a utilidade da informação.

A avaliação de desfecho é de interesse considerável para os pais, para a equipe de terapia intensiva e para os administradores da saúde. Sua análise requer muita reflexão sobre quais informações são necessárias. Cunha et al.2 fornecem informações úteis sobre a QVRS de crianças maiores de 6 anos, tanto antes quanto 6 meses após admissão em UTI. O diagnóstico do paciente e as anomalias preexistentes parecem ser fatores fundamentais na determinação do desfecho; esses estudos de desfecho são vitais na era moderna da tecnologia de suporte de múltiplos órgãos, contribuindo para a aquisição de conhecimento sobre a avaliação do desfecho de pacientes da UTIP.

Referências

1. Taylor AB, Butt W. The evaluation of outcome following paediatric intensive care: the major issues identified. Clin Intensive Care. 2000;11:239-44.

2. Cunha F, Almeida-Santos L, Teixeira-Pinto A, Neves F, Barata D, Costa-Pereira A. Health-related quality of life of pediatric intensive care survivors. J Pediatr (Rio J). 2012;88:25-32.

3. Fiser DH, Long N, Roberson PK, Hefley G, Zolten K, Brodie-Fowler M. Relationship of pediatric overall performance category and pediatric cerebral performance category scores at pediatric intensive care unit discharge with outcome measures collected at hospital discharge and 1- and 6-month follow-up assessments. Crit Care Med. 2000;28:2616-20.

4. Pollack MM, Holubkov R, Glass P, Dean JM, Meert KL, Zimmerman J, et al. Functional Status Scale: new pediatric outcome measure. Pediatrics. 2009;124:e18-28.

5. Furlong W, Feeny D, Torrance G, Goldsmith C, DePauw S, Zhu Z, et al. Multiplicative multi-attribute utility function for Health Utilities Index Mark 3 (HUI3) System: a technical report. McMaster University Centre for Health Economics and Policy Analysis. Working Paper No. 98-11;1998.

6. Taylor A, Butt W, Ciardulli M. The functional outcome and quality of life of children after admission to an intensive care unit. Intensive Care Med. 2003;29:795-800.

7. Carter BG, Taylor A, Butt W. Severe brain injury in children: long-term outcome and its prediction using somatosensory evoked potentials (SEPs). Intensive Care Med. 1999;25:722-8.

8. Kneyber MC. Prognostic scoring in critically ill children: what to predict? CMAJ. 2010;182:1155-6.

9. Namachivayam P, Shann F, Shekerdemian L, Taylor A, van Sloten I, Delzoppo C, et al. Three decades of pediatric intensive care: who was admitted, what happened in intensive care, and what happened afterward. Pediatr Crit Care Med. 2010;11:549-55.

10. Butt W. Outcome assessment: what outcome do we want? Pediatr Crit Care Med. 2009;10:133-4.

11. Orwelius L, Nordlund A, Nordlund P, Simonsson E, Bäckman C, Samuelsson A, et al. Pre-existing disease: the most important factor for health related quality of life long-term after critical illness: a prospective, longitudinal, multicentre trial. Crit Care. 2010;14:R67.

12. Wetzel RC, Sachedeva R, Rice TB. Are all ICUs the same? Paediatr Anaesth. 2011;21:787-93.

13. UK collaborative randomised trial of neonatal extracorporeal membrane oxygenation. UK Collaborative ECMO Trail Group. Lancet. 1996;348:75-82.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Como citar este artigo: Butt W. Outcome after pediatric intensive care unit discharge. J Pediatr (Rio J). 2012;88(1):1-3.

  • 1. Taylor AB, Butt W. The evaluation of outcome following paediatric intensive care: the major issues identified. Clin Intensive Care. 2000;11:239-44.
  • 2. Cunha F, Almeida-Santos L, Teixeira-Pinto A, Neves F, Barata D, Costa-Pereira A. Health-related quality of life of pediatric intensive care survivors. J Pediatr (Rio J). 2012;88:25-32.
  • 3. Fiser DH, Long N, Roberson PK, Hefley G, Zolten K, Brodie-Fowler M. Relationship of pediatric overall performance category and pediatric cerebral performance category scores at pediatric intensive care unit discharge with outcome measures collected at hospital discharge and 1- and 6-month follow-up assessments. Crit Care Med. 2000;28:2616-20.
  • 4. Pollack MM, Holubkov R, Glass P, Dean JM, Meert KL, Zimmerman J, et al. Functional Status Scale: new pediatric outcome measure. Pediatrics. 2009;124:e18-28.
  • 5. Furlong W, Feeny D, Torrance G, Goldsmith C, DePauw S, Zhu Z, et al. Multiplicative multi-attribute utility function for Health Utilities Index Mark 3 (HUI3) System: a technical report. McMaster University Centre for Health Economics and Policy Analysis. Working Paper No. 98-11;1998.
  • 6. Taylor A, Butt W, Ciardulli M. The functional outcome and quality of life of children after admission to an intensive care unit. Intensive Care Med. 2003;29:795-800.
  • 7. Carter BG, Taylor A, Butt W. Severe brain injury in children: long-term outcome and its prediction using somatosensory evoked potentials (SEPs). Intensive Care Med. 1999;25:722-8.
  • 8. Kneyber MC. Prognostic scoring in critically ill children: what to predict? CMAJ. 2010;182:1155-6.
  • 9. Namachivayam P, Shann F, Shekerdemian L, Taylor A, van Sloten I, Delzoppo C, et al. Three decades of pediatric intensive care: who was admitted, what happened in intensive care, and what happened afterward. Pediatr Crit Care Med. 2010;11:549-55.
  • 10. Butt W. Outcome assessment: what outcome do we want? Pediatr Crit Care Med. 2009;10:133-4.
  • 11. Orwelius L, Nordlund A, Nordlund P, Simonsson E, Bäckman C, Samuelsson A, et al. Pre-existing disease: the most important factor for health related quality of life long-term after critical illness: a prospective, longitudinal, multicentre trial. Crit Care. 2010;14:R67.
  • 12. Wetzel RC, Sachedeva R, Rice TB. Are all ICUs the same? Paediatr Anaesth. 2011;21:787-93.
  • 13. UK collaborative randomised trial of neonatal extracorporeal membrane oxygenation. UK Collaborative ECMO Trail Group. Lancet. 1996;348:75-82.
  • Correspondência:

    Warwick Butt
    Paediatric Intensive Care Royal Childrens Hospital
    50 Flemington Road
    3052 Parkville - Melbourne, Victoria - Australia
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Fev 2012
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