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O enigma do uso de medicamentos off-label e não licenciados na neonatologia

EDITORIAL

O enigma do uso de medicamentos off-label e não licenciados na neonatologia

Lucky Jain

MD, MBA. Richard Blumberg Professor of Pediatrics and Executive Vice Chairman. Department of Pediatrics, Medical Director, Emory Children's Center, Emory University School of Medicine, Atlanta, GA, EUA

Correspondência Correspondência: Lucky Jain Emory Children's Center, Emory University School of Medicine 2015 Uppergate Drive - Atlanta, GA 30322 - EUA Tel.: +1 (404) 727.1471 Fax: +1 (404) 727.1204 E-mail: ljain@emory.edu

"O desafio do uso seguro e adequado de medicamentos no período neonatal é intimidante e torna-se mais complexo pela notória falta de dados baseados em evidências para orientar a tomada de decisões. Os clínicos lutam com as escassas opções de medicamentos que não foram rigorosamente testados em recém-nascidos muito pequenos; o problema muitas vezes torna-se ainda mais complexo devido à inaceitavelmente elevada variação no uso de medicamentos, o que impossibilita a coleta de dados significativos. O resultado é uma situação insatisfatória de uso excessivo ou insuficiente de medicamentos, e uma indústria que ainda precisa incluir o desenvolvimento de medicamentos pediátricos como parte essencial da sua estratégia global. Recém-nascidos de todo o mundo continuam a sofrer com essa situação em que muitos são os culpados, mas poucos estão prontos a assumir a responsabilidade."1.

Em um recente editorial2, o jornal The New York Times aborda os muitos avanços no cuidado neonatal ocorridos nas últimas décadas e o seu impacto na mortalidade dos neonatos mais vulneráveis. "Na década de 1960, quando foram inauguradas as primeiras unidades de terapia intensiva neonatal (UTINs), os prematuros tinham uma chance de óbito de 95%. Atualmente, têm uma chance de sobrevida de 95%"2. Sem dúvida, esse avanço foi decorrente dos esforços implacáveis dos cientistas para preencher as lacunas de conhecimento sobre o assunto e dos clínicos que se concentraram nas lacunas de implementação. As observações laboratoriais, tais como a que apresenta o efeito maturacional do esteroide pré-natal no desenvolvimento pulmonar3, foram testadas em grandes ensaios controlados randomizados e postas em prática pelos clínicos4, embora muitas vezes em ritmo lento. No entanto, o uso de esteroide pré-natal, cuja eficácia e segurança têm sido demonstradas em vários outros ensaios e metanálises5, ainda não foi aprovado em gestações prematuras; assim, o seu uso em milhões de grávidas em todo o mundo poderia ser considerado uso "off-label"6. Todavia, outras descobertas, como a observação da ausência de bolhas nas vias aéreas de animais prematuros com doença pulmonar, levaram ao rápido desenvolvimento e aplicação de tensoativos comerciais aprovados para o uso específico em neonatos7.

Estima-se que de 40 a 80% dos medicamentos utilizados na UTIN sejam off-label ou não licenciados8; isso é especialmente importante devido ao grande número de medicamentos que exigem prescrição médica administrados a neonatos hospitalizados. Nesta edição do Jornal de Pediatria, Carvalho et al.9 relatam os resultados de um estudo prospectivo observacional de coorte realizado no Brasil, que avaliou o uso de medicamentos off-label e não licenciados na UTIN. Seus resultados confirmam o que estudos prévios de outros países também haviam demonstrado: pouquíssimos pacientes (21%) medicados na UTIN atenderam aos requisitos para uso adequado. Um grande número de pacientes recebeu medicamentos off-label e não licenciados, incluindo medicamentos comumente utilizados, tais como cafeína, cefotaxima e dexametasona. O estudo também avaliou os escores diários do Neonatal Therapeutic Intervention Scoring System (NTISS) e sua relação com o uso inadequado de medicamentos. Os autores relataram alta prevalência do uso de medicamentos off-label em prematuros < 35 semanas e naqueles com escores NTISS mais elevados. Como esperado, foi encontrada uma relação direta entre os escores NTISS e o número de prescrições não licenciadas e off-label. No entanto, também foi observada uma relação inversa entre idade gestacional e o número total de medicamentos prescritos, visto que muitos daqueles neonatos estavam mais doentes. Os autores não foram capazes de descrever qualquer interação entre idade gestacional e escore NTISS; é concebível que a relação observada entre escores NTISS elevados e um uso elevado de medicamentos off-label deveu-se sobretudo à imaturidade subjacente. Se for esse o caso, seria então necessária uma estratificação por idade gestacional.

Apesar dessas questões, os autores comprovam que há uma alta prevalência do uso medicamentos não licenciados ou off-label em neonatos. Isso é motivo de preocupação, uma vez que muitos desses medicamentos podem fazer mais mal do que bem. Os clínicos têm a obrigação de "em primeiro lugar não causar dano", evitando o uso inadequado de medicamentos. Os medicamentos utilizados no tratamento do refluxo gastroesofágico são ótimos exemplos de agentes que não têm benefício comprovado mas apresentam problemas significativos quanto à segurança do seu uso10. Da mesma forma, diversos medicamentos utilizados na ressuscitação neonatal muitas vezes não são necessários11. A maioria dos neonatologistas também reconhecerá que o abuso no uso de antibióticos é um dos comuns na UTIN, com grande variação nos protocolos de tratamento.

Então, onde ficamos nessa situação e como um clínico atarefado pode administrar o uso de medicamentos na UTIN conforme avançamos? Embora novos medicamentos possam modificar a prática médica, compete a nós fazer um melhor uso dos medicamentos existentes. Em um artigo recente, os Drs. Ellsbury e Ursprung apresentam um esquema útil para otimizar o uso de medicamentos na UTIN12. As Figuras 1 e 2 apresentam propostas já testadas para a melhoria de qualidade no uso de medicamentos. Essas propostas permitem a adaptação dos medicamentos utilizados para as situações clínicas específicas enfrentadas na UTIN, com vistas a minimizar eventuais danos. A Figura 2 enfatiza a utilização da análise de causa-raiz e o trabalho em equipe para tomar uma decisão sobre medicamentos como os do tipo antirrefluxo no contexto da UTIN.



Por fim, torna-se evidente que a indústria farmacêutica e as agências de financiamento têm a obrigação moral de realizar estudos de medicamentos em recém-nascidos. Sem dúvida, o uso de medicamentos off-label em recém-nascidos ao redor do mundo é em grande parte um reflexo da falta de ensaios clínicos em neonatos, obrigando os profissionais a extrapolar a partir dos resultados de estudos realizados em crianças mais velhas e adultos. Existem muitos fatores que dificultam o desenvolvimento de estudos de medicamentos em recém-nascidos8, os quais defendem incentivos financeiros especiais para empresas que investirem em medicamentos para uso neonatal e mecanismos especiais de financiamento de agências de financiamento como os Institutos Nacionais de Saúde (National Institutes of Health) para ensaios de medicamentos em neonatos. Tais estudos também fazem um apelo para que seja renovada a parceria entre instituições acadêmicas e indústria para a promoção de ensaios de medicamentos em neonatos. A história de nossa jovem subespecialidade está repleta de exemplos de ideias criativas e avanços científicos; não há motivo para nos sentirmos deixados para trás nessa importante questão referente à gestão de medicamentos.

Conflitos de interesse: Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Como citar este artigo: Jain L. The conundrum of off-label and unlicensed drug usage in neonatology. J Pediatr (Rio J). 2012;88(6):449-51.

  • 1. Jain L. The challenge of managing drugs safely in the newborn. Clin Perinatol. 2012;39:xv-xvi.
  • 2. Parikh RK. In preemies, better care also means hard choice. The New York Times. 2012 Aug 13.
  • 3. Liggins GC. Premature delivery of foetal lambs infused with glucocorticoids. J Endocrinol. 1969;45:515-23.
  • 4. Liggins GC, Howie RN. A controlled trial of antepartum glucocorticoid treatment for prevention of the respiratory distress syndrome in premature infants. Pediatrics. 1972;50:515-25.
  • 5. Roberts D, Dalziel S. Antenatal corticosteroids for accelerating fetal lung maturation for women at risk of preterm birth. Cochrane Database Syst Rev. 2006;(3):CD004454.
  • 6. Brownfoot FC, Crowther CA, Middleton P. Different corticosteroids and regimens for accelerating fetal lung maturation for women at risk of preterm birth. Cochrane Database Syst Rev. 2008;(4):CD006764.
  • 7. Farrell PM, Avery ME. Hyaline membrane disease. Am Rev Respir Dis. 1975;111:657-88.
  • 8. Dotta A, Braguglia A, Salvatori G. Pharmacological research in neonatology. J Matern Fetal Neonatal Med. 2011;24:44-6.
  • 9. Carvalho CG, Ribeiro MR, Bonilha MM, Fernandes Jr M, Procianoy RS, Silveira RC. Use of off-label and unlicensed drugs in the neonatal intensive care unit and its association with severity scores. J Pediatr (Rio J). 2012;88:465-70.
  • 10. Malcolm WF, Cotten CM. Metoclopramide, H2 blockers, and proton pump inhibitors: pharmacotherapy for gastroesophageal reflux in neonates. Clin Perinatol. 2012;39:99-109.
  • 11. Iacovidou N, Vasileiou PV, Papalois A, Syggelou A, Bassareo PP, Xanthos T. Drugs in newborn resuscitation: the more we learn the least we use. Curr Med Chem. 2012 Aug 9. [Epub ahead of print]
  • 12. Ellsbury DL, Ursprung R. A quality improvement approach to optimizing medication use in the neonatal intensive care unit. Clin Perinatol. 2012;39:1-10.
  • Correspondência:

    Lucky Jain
    Emory Children's Center, Emory University School of Medicine
    2015 Uppergate Drive - Atlanta, GA 30322 - EUA
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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