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Monitoramento do desenvolvimento de recém-nascidos de muito baixo peso

EDITORIAL

Monitoramento do desenvolvimento de recém-nascidos de muito baixo peso

T. Michael O'Shea

MD, MPH. Professor of Pediatrics, Wake Forest School of Medicine, Winston Salem, Carolina do Norte, EUA

Correspondência Correspondência: T. Michael O'Shea Wake Forest School of Medicine, Winston Salem North Carolina - EUA Tel.: +1 (336) 716.4663 Fax: +1 (336) 716.2525 E-mail: moshea@wfubmc.edu

Fernandes et al.1 relatam a prevalência e os fatores de risco para atraso no neurodesenvolvimento em crianças de muito baixo peso ao nascer. Para identificar tais atrasos, utilizaram a terceira edição das escalas Bayley de desenvolvimento infantil (BSID-III). Seu estudo fornece novas informações sobre o assunto, visto que a maioria dos estudos prévios sobre o neurodesenvolvimento de crianças de muito baixo peso ao nascer baseou-se na primeira ou na segunda edição das BSID (BSID-I e BSID-II). Essas versões anteriores das BSID avaliavam o funcionamento cognitivo, referido como índice de desenvolvimento mental (MDI) ou escala mental; a função motora, referida como índice de desenvolvimento psicomotor (PDI) ou escala motora; e o comportamento do lactente durante o teste (Escala de Classificação do Comportamento). Embora o MDI das BSID-II não seja um teste de inteligência, escores inferiores a 70 são considerados preditores moderados de um QI inferior a 70, especialmente em crianças com deficiência neurossensorial2. A terceira edição das BSID, que foi utilizada por Fernandes et al., avalia as habilidades cognitivas, linguísticas, motoras, socioemocionais e de comportamento adaptativo. Desta forma, as BSID-III podem fornecer um quadro mais completo das habilidades da criança.

Pontos fortes e limitações do estudo

Fernandes et al.1 estão entre os primeiros pesquisadores a relatar o desempenho de uma coorte de recém-nascidos de muito baixo peso nos domínios socioemocional e de comportamento adaptativo das BSID-III. Os autores devem ser elogiados por relatar cada domínio de desenvolvimento separadamente em vez de descrever apenas um desfecho combinado, tal como "deficiência de desenvolvimento". Outro ponto forte do estudo foi a utilização de análises multivariáveis para a identificação de fatores de risco.

A principal limitação do relato de Fernandes et al.1, conforme os próprios autores reconhecem, é a amostra relativamente pequena. Outra limitação foi a ausência de um grupo controle de bebês nascidos a termo, que forneceria informações sobre o risco relativo de atraso no desenvolvimento decorrente do muito baixo peso ao nascer. Além disso, os autores não informam se os examinadores foram cegados quanto à história clínica dos participantes do estudo. Se os examinadores não foram cegados, pode ter ocorrido viés de aferição, devido às expectativas dos examinadores sobre os efeitos deletérios de certas condições neonatais, tais como doença pulmonar crônica e leucomalácia periventricular, que estiveram associadas, em estudos já publicados, a alterações no neurodesenvolvimento.

Prevalência de atrasos no neurodesenvolvimento

Fernandes et al.1 definiram atrasos no desenvolvimento como escores inferiores a 85, isto é, escores de mais de um desvio padrão abaixo da média na amostra utilizada para padronizar as BSID-III. Estudos baseados na segunda edição das BSID costumavam utilizar como ponto de corte um escore de 70, isto é, escores de mais de dois desvios padrão abaixo da média. No entanto, várias pesquisas, incluindo uma baseada em uma amostra de crianças brasileiras, sugerem que crianças têm um escore de cerca de 10 pontos a mais nas BSID-III do que nas BSID-II3-6. Portanto, entre os participantes analisados por Fernandes et al., os que apresentaram BSID < 85 provavelmente teriam um escore inferior a 75 se tivessem sido avaliados com a segunda edição das BSID. Então, é possível que Fernandes et al. tenham utilizado uma definição de atraso no desenvolvimento de certo modo semelhante, embora menos rigorosa, àquela utilizada em estudos anteriores, nos quais o atraso no desenvolvimento foi definido como um escore inferior a 70 nas BSID-II.

Entre as 58 crianças de muito baixo peso ao nascer descritas por Fernandes et al., 6,9% apresentaram alteração cognitiva; 6,9%, motora; 29,3%, de linguagem; 27,6%, socioemocional; e 37%, de comportamento adaptativo. Os índices de atraso nas habilidades linguísticas, socioemocionais e adaptativas são preocupantes, embora não seja possível estabelecer em que medida esses índices elevados são decorrentes de fatores sociais, tais como desvantagem econômica ou educacional, sem uma comparação com um grupo de lactentes nascidos a termo.

A mediana do escore cognitivo (102) relatada por Fernandes et al.1 foi superior à observada em coortes nascidas nos primórdios do cuidado intensivo neonatal moderno; na metanálise de estudos em crianças nascidas entre 1960 e 1983, a mediana do escore cognitivo (escalas Bayley ou teste de QI) foi de 967. Estudos de coortes de nascimento mais recentes têm enfocado principalmente os recém-nascidos de extremo baixo peso (< 1.000 gramas) ou prematuros extremos (< 28 semanas de gestação). Em uma grande coorte de lactentes de extremo baixo peso ao nascer, 37% apresentaram MDI < 70 e 29% apresentaram PDI < 708. Em uma grande coorte de prematuros extremos, a porcentagem de MDI < 70 foi de 26% e de PDI < 70 foi de 31%9. Os índices três ou quatro vezes maiores observados em coortes de extremo baixo peso ao nascer e de prematuros extremos, se comparados à coorte de muito baixo peso ao nascer descrita por Fernandes et al., podem muito provavelmente ser explicados pela forte relação da idade gestacional e do peso de nascimento com o risco de atraso no desenvolvimento. A maior vulnerabilidade dos recém-nascidos de extremo baixo peso, se comparados aos recém-nascidos de muito baixo peso, é ilustrada pela diferença nos índices de doença pulmonar crônica (22,4% na coorte de muito baixo peso ao nascer analisada por Fernandes et al.1, em comparação com 40% em uma grande coorte de recém-nascidos de extremo baixo peso8) e retinopatia da prematuridade (25,9% na coorte de muito baixo peso ao nascer e 70% na coorte de extremo baixo peso ao nascer8).

Fatores de risco para atrasos no neurodesenvolvimento

Além de descrever a prevalência de atrasos no desenvolvimento em uma coorte de recém-nascidos de muito baixo peso, Fernandes et al. analisaram os fatores de risco dessas doenças. Na maioria das coortes de recém-nascidos muito prematuros ou de muito baixo peso, as alterações mais prevalentes a partir da idade escolar são as alterações cognitivas10. Essas alterações têm impacto sobre a probabilidade de o indivíduo obter sucesso acadêmico e financeiro; portanto, devem ser o foco principal de esforços preventivos e da pesquisa biomédica.

Fernandes et al. descobriram que, quando ajustada para confundidores relevantes, a doença pulmonar crônica (também referida como displasia broncopulmonar) esteve associada a uma diminuição de 8,75 pontos na escala cognitiva das BSID-III (ligeiramente superior a 0,5 desvio padrão). Estratégias para reduzir o risco de doença pulmonar crônica identificadas recentemente incluem vitamina A11, uso precoce de pressão positiva contínua das vias áreas com ventilação menos invasiva12, óxido nítrico13, glicocorticoide pós-natal14, e cafeína15. Em dois estudos, intervenções que reduziram o risco de doença pulmonar crônica também melhoraram o desfecho cognitivo: um estudo unicêntrico de óxido nítrico16 e um grande ensaio multicêntrico de cafeína17. Portanto, evidências apontam que pesquisas sobre a prevenção da doença pulmonar crônica podem levar a uma melhora a longo prazo no neurodesenvolvimento de prematuros.

Leucomalácia periventricular, isto é, lesões da substância branca, foi um fator de risco para atrasos no desenvolvimento cognitivo, e também para atrasos no desenvolvimento motor e adaptativo. Essa observação é consistente com os achados provenientes de estudos em coortes maiores9,18,19 e enfatiza a importância das pesquisas sobre as causas e a prevenção de lesões da substância branca cerebral. Atualmente, não tenho conhecimento de intervenções baseadas em evidências para prevenir lesões da substância branca, exceto as resultantes de hemorragia periventricular parenquimatosa. O risco desse tipo de hemorragia pode ser reduzido por meio de tratamento com indometacina profilática20.

Concordando com muitos estudos prévios em prematuros, Fernandes et al. relatam que classe social baixa foi um fator de risco para atraso cognitivo. Embora a classe social não possa ser modificada prontamente, os efeitos da desvantagem social no desfecho cognitivo podem ser amenizados pelos serviços de intervenção precoce21. Portanto, é importante que esses serviços sejam fornecidos a recém-nascidos de muito baixo peso, especialmente em caso de desvantagem socioeconômica.

Fernandes et al. descobriram, como relatado em outros estudos com prematuros8, que o sexo masculino foi um fator de risco para atrasos no desenvolvimento motor. O sexo masculino também esteve associado a um aumento no risco de atrasos no desenvolvimento linguístico e socioemocional. Embora o sexo não possa ser modificado diretamente, a pesquisa sobre o mecanismo pelo qual o sexo feminino tem efeito protetor contra alterações no desenvolvimento poderia fornecer informações que auxiliem no entendimento a respeito de potenciais estratégias preventivas.

Em resumo, o estudo de Fernandes et al. contribui para a nossa compreensão sobre a prevalência e as potenciais causas do atraso no desenvolvimento de recém-nascidos de muito baixo peso. O achado mais importante foi o fato de que, entre esses recém-nascidos, os atrasos no desenvolvimento frequentemente ocorrem em múltiplos domínios do desenvolvimento. Apesar de serem necessários mais estudos a respeito do valor preditivo das BSID-III, sugiro que as crianças de muito baixo peso ao nascer sejam avaliadas com as BSID-III pelo menos uma vez durante os primeiros 2-3 anos de vida. Os clínicos podem utilizar essa informação para identificar crianças com atrasos no desenvolvimento durante a primeira infância, a fim de que essas crianças possam ser encaminhadas a serviços de reabilitação antes de entrarem na escola, aumentando assim sua chance de sucesso na escola. Pesquisadores podem utilizar essa informação para identificar e avaliar intervenções para melhoria nos desfechos de desenvolvimento em recém-nascidos de muito baixo peso e muito prematuros. As pessoas interessadas na melhoria contínua de qualidade podem utilizar os dados sobre o desfecho do desenvolvimento a longo prazo como uma medida do impacto de mudanças nos processos clínicos.

Conflitos de interesse: Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Como citar este artigo: O'Shea TM. Monitoring developmental outcome of very low birth weight infants. J Pediatr (Rio J). 2012;88(6):452-4.

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  • Correspondência:

    T. Michael O'Shea
    Wake Forest School of Medicine, Winston Salem
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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