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Prevalência de anormalidades genitais em recém-nascidos

Resumos

OBJETIVOS: Avaliar a prevalência e descrever alterações da morfologia genital em recém-nascidos em duas maternidades-escola de gestão pública. MÉTODOS: Estudo caso/controle, descritivo, transversal. Utilizou-se protocolo clínico para avaliação da morfologia genital de 2.916 recém-nascidos entre 19/04/2010 e 18/04/2011. O grupo controle foi formado pelos nascimentos sem anormalidades morfológicas ocorridos no dia e na maternidade em que o caso foi detectado. Teste exato de Fisher foi utilizado para análises de variáveis categóricas, e de Kruskal-Wallis, para igualdade de médias. RESULTADOS: Foram detectados 29 recém-nascidos com anormalidade genital (1:100). A maioria (93,2%) foi examinada nos três primeiros dias de vida e apresentava apenas uma anormalidade. Os defeitos morfológicos compreenderam: ambiguidade genital evidente (1/29), fusão posterior de grandes lábios (1/29), micropênis (2/29), clitoromegalia (6/29), criptorquidia bilateral (6/29), hipospádia (9/29) e defeitos combinados (4/29) casos. Em apenas um caso os campos da Declaração de Nascido Vivo foram preenchidos corretamente. Prematuridade foi observada em 13/29, sendo esta a única variável estatisticamente associada à presença de anormalidade genital. Oito casos aderiram à proposta de investigação complementar, entre os quais três tiveram diagnóstico clínico de distúrbio da diferenciação do sexo. CONCLUSÕES: Evidenciou-se alta prevalência, subdiagnóstico e sub-registro de defeitos genitais nas maternidades estudadas. Os resultados reforçam a importância do exame cuidadoso de recém-nascidos com o objetivo de identificar anormalidades genitais sutis que podem compor o quadro clínico de distúrbio da diferenciação do sexo.

Anormalidade genital; triagem de recém-nascido; distúrbios da diferenciação do sexo


OBJECTIVES: To assess the prevalence of genital abnormalities among neonates in two public maternity-schools. METHODS: Case-control, cross-sectional descriptive study. Genital morphology of 2,916 neonates was assessed using a clinical protocol between 04/19/2010 and 04/18/2011. Control group included neonates without birth defects, born at the same maternity unit and in the same day in which a case was identified. Fisher and Kruskal-Wallis tests were used for statistics. RESULTS: The study identified 29 (1:100) neonates with genital abnormalities. Most of them were examined within 3 days of life and presented only one genital defect. Morphological abnormalities comprised: genital ambiguity (1/29), fusion of labia majora (1/29), micropenis (2/29), enlarged clitoris (6/29), hypospadia (9/29), and combined defects (4/29). Only one case reported the genital abnormality in the statement of live birth correctly. Prematurity occurred in 13/29 cases and was the only variable statistically associated with genital defects. Eight cases agreed on the complementary investigation of the genital defect, among which three were diagnosed with disorder of sex development. CONCLUSIONS: There is a high prevalence of genital abnormalities in the maternity units included in the present study and most cases are under-diagnosed and under-reported. Our results reinforce the importance of a careful examination of genital morphology in neonatal period towards the recognition of minor defects that can be clinical features of a disorder of sex development.

Genital abnormality; neonatal screening; disorders of sex development


ARTIGO ORIGINAL

Prevalência de anormalidades genitais em recém-nascidos

Isabella L. MonlleóI; Susane V. ZanottiII; Bárbara Priscila B. de AraújoIII; Erisvaldo F. Cavalcante JúniorIII; Paula D. PereiraIV; Paulo M. de BarrosIV; Maria Deysiane P. AraújoV; Ana Thaysa V. S. de MendonçaIV; Catarina R. S. SantosIV; Ylana R. dos SantosIV; Débora de Paula MichelattoVI; Maricilda P. de MelloVII; Andrea T. Maciel-GuerraVIII; Gil Guerra-JúniorIX

IDoutorado, Genética Médica. Professora adjunta, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL

IIDoutorado, Psicologia. Professora adjunta, Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes, UFAL, Maceió, AL

IIIMédica(o). UFAL, Maceió, AL

IVGraduanda(o), Curso de Medicina, Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL), Maceió, AL

VGraduanda, Curso de Medicina, UFAL, Maceió, AL

VIAluna de mestrado, Genética e Biologia Molecular, Laboratório de Genética Molecular Humana, Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP

VIIPós-Doutorado, Biologia Molecular. Livre docente, Laboratório de Genética Molecular Humana, Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética, UNICAMP, Campinas, SP

VIIIDoutorado, Genética e Biologia Molecular. Livre docente, Departamento de Genética Médica, Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP, Campinas, SP

IXDoutorado, Saúde da Criança e do Adolescente. Professor titular, Departamento de Pediatria, Faculdade de Ciências Médicas, UNICAMP, Campinas, SP

Correspondência Correspondência: Isabella L. Monlleó Serviço de Genética Clínica, Hospital Universitário Prof. Alberto Antunes Universidade Federal de Alagoas Av. Lourival Melo Mota, s/n CEP 57072-970 - Maceió, AL Tel.: (82) 3202.3774 Fax: (82) 3202.1742 E-mail: isabella.monlleo@gmail.com

RESUMO

OBJETIVOS: Avaliar a prevalência e descrever alterações da morfologia genital em recém-nascidos em duas maternidades-escola de gestão pública.

MÉTODOS: Estudo caso/controle, descritivo, transversal. Utilizou-se protocolo clínico para avaliação da morfologia genital de 2.916 recém-nascidos entre 19/04/2010 e 18/04/2011. O grupo controle foi formado pelos nascimentos sem anormalidades morfológicas ocorridos no dia e na maternidade em que o caso foi detectado. Teste exato de Fisher foi utilizado para análises de variáveis categóricas, e de Kruskal-Wallis, para igualdade de médias.

RESULTADOS: Foram detectados 29 recém-nascidos com anormalidade genital (1:100). A maioria (93,2%) foi examinada nos três primeiros dias de vida e apresentava apenas uma anormalidade. Os defeitos morfológicos compreenderam: ambiguidade genital evidente (1/29), fusão posterior de grandes lábios (1/29), micropênis (2/29), clitoromegalia (6/29), criptorquidia bilateral (6/29), hipospádia (9/29) e defeitos combinados (4/29) casos. Em apenas um caso os campos da Declaração de Nascido Vivo foram preenchidos corretamente. Prematuridade foi observada em 13/29, sendo esta a única variável estatisticamente associada à presença de anormalidade genital. Oito casos aderiram à proposta de investigação complementar, entre os quais três tiveram diagnóstico clínico de distúrbio da diferenciação do sexo.

CONCLUSÕES: Evidenciou-se alta prevalência, subdiagnóstico e sub-registro de defeitos genitais nas maternidades estudadas. Os resultados reforçam a importância do exame cuidadoso de recém-nascidos com o objetivo de identificar anormalidades genitais sutis que podem compor o quadro clínico de distúrbio da diferenciação do sexo.

Palavras-chave: Anormalidade genital, triagem de recém-nascido, distúrbios da diferenciação do sexo.

Introdução

O desenvolvimento do sexo na espécie humana é um processo complexo, que envolve fenômenos biológicos, psicológicos e sociais. O primeiro estágio ocorre no momento da fertilização, por meio da junção entre os complementos cromossômicos materno e paterno1,2.

A partir da oitava semana de gestação, tecidos indiferenciados são transformados em gônadas e em estruturas anatômicas internas e externas típicas da genitália masculina ou feminina. Esse processo, regulado por uma teia de mecanismos genéticos e hormonais, corresponde à etapa pré-natal do desenvolvimento biológico do sexo, que se completará na puberdade1-4.

Sobre o arcabouço biológico, fenômenos psicológicos e sociais irão conferir singularidade aos sujeitos no que se refere à sua identidade e comportamento de gênero, bem como à sua orientação sexual2-4.

Defeitos anatômicos da genitália externa podem ter etiologia genética, não genética ou multifatorial, resultante da interação gene/ambiente. Esses defeitos podem ser restritos ao aparelho genital ou envolver diversos sítios anatômicos, configurando quadros dismórficos complexos2,5. Em ambas as situações, a anormalidade genital pode ser a expressão clínica de distúrbios da diferenciação do sexo (DDS).

Os DDS são condições congênitas heterogêneas nas quais o desenvolvimento dos componentes cromossômico, gonadal ou anatômico do sexo é atípico. O espectro clínico pode variar desde anormalidades morfológicas leves em genitálias de aparência masculina ou feminina até situações classificadas como ambiguidade genital, em que não é possível reconhecer o sexo biológico do recém-nascido pelo exame físico4,6,7. A prática clínica revela, todavia, que a delimitação da fronteira da normalidade morfológica não é uniforme. Desse modo, a literatura fornece alguns parâmetros para reconhecimento de anormalidades cuja presença impõe a investigação de DDS. São eles2-4:

1) Em recém-nascidos com genitália de aspecto masculino:

a) Criptorquidia bilateral;

b) Micropênis (comprimento menor que -2,5 desvios padrão para a idade);

c) Hipospádia perineal isolada ou hipospádia leve com criptorquidia bilateral ou micropênis.

2) Em recém-nascidos com genitália de aspecto feminino:

a) Hipertrofia do clitóris (diâmetro maior que 6 mm);

b) Qualquer grau de fusão labial, de posterior a completa;

c) Massa na região inguinal ou em saliências labioescrotais.

Em face da amplitude de apresentações clínicas e da utilização de diferentes critérios de inclusão e de métodos para coleta de dados, estudos de prevalência de anormalidades genitais apresentam resultados variáveis desde 1:20.0008 até 1:4.5003 recém-nascidos.

O exame cuidadoso da genitália externa do recém-nascido é importante não só para o diagnóstico precoce e manejo das anormalidades genitais, mas também para o registro e obtenção de informações epidemiológicas necessárias ao planejamento de ações preventivas no âmbito da saúde pública.

No Brasil, o registro populacional de defeitos congênitos foi inaugurado em 1999 pela introdução de um campo na Declaração de Nascido Vivo (DNV), documento de preenchimento obrigatório. Registros dessa magnitude têm o potencial de fornecer informações sobre prevalência e fatores de risco para defeitos congênitos. A partir dessas informações, é possível não só planejar políticas de prevenção e atenção à saúde, mas também avaliar a efetividade das ações implantadas. Estudos sobre a qualidade desse registro têm revelado, entretanto, alta taxa de subnotificação no país como um todo9-12.

Os objetivos deste estudo foram realizar busca ativa de recém-nascidos com anormalidades genitais, verificar a prevalência e avaliar o registro desses defeitos em DNV de duas maternidades-escola da cidade de Maceió (AL).

Métodos

Trata-se de estudo caso/controle, transversal, descritivo. A busca ativa de anormalidades genitais foi realizada por exame direto da genitália externa dos recém-nascidos, nas duas maternidades alvo, entre 19/04/2010 e 18/04/2011. Essa busca foi suspensa durante 31 dias não consecutivos, devido a feriados prolongados e ao fechamento das maternidades para reforma ou controle de infecção.

O exame dos recém-nascidos foi realizado diariamente por um grupo, devidamente treinado, de oito acadêmicos de medicina. O treinamento abarcou tanto o conhecimento médico quanto a abordagem de aspectos subjetivos inerentes ao diagnóstico de DDS e à informação dada aos pais a respeito das anormalidades detectadas. Atitudes frente aos profissionais das maternidades e aos pais foram discutidas e pactuadas antes do início da coleta de dados. Por questões éticas, os termos "ambiguidade genital" e "DDS" não foram utilizados durante a etapa de triagem, apenas após a confirmação das anormalidades em consulta ambulatorial de genética.

Para coleta de dados, foi utilizado protocolo próprio com campos para registro das seguintes anormalidades:

- Genitálias com aspecto masculino: gônadas não palpáveis ou com qualquer grau de criptorquidia bilateral; tamanho peniano esticado abaixo de -2,5 desvios padrão para a idade; gônadas com maior diâmetro inferior a 8 mm; massa inguinal; qualquer grau de hipospádia. Para prematuros, a avaliação do tamanho peniano tomou como referência a distribuição normal de medidas para crianças nascidas entre 24 e 36 semanas de gestação13.

- Genitálias com aspecto feminino: diâmetro clitoriano superior a 6 mm (inclusive prematuros); gônada palpável em saliência labioescrotal; qualquer grau de fusão de grandes lábios; massa inguinal.

- Genitálias inclassificáveis com base no exame físico, definidas como ambíguas.

A variável desfecho dependente foi a presença de uma ou mais anormalidades genitais. As variáveis independentes e suas respectivas categorias de análise foram:

- Residência materna: capital e interior de Alagoas;

- Idade gestacional: < 37 semanas (pré-termo) e > 37 semanas (termo);

- Peso ao nascer: < 2.500 g (baixo) e > 2.500 g (adequado);

- Idade do recém-nascido no momento do exame: < 3 dias e > 3 dias;

- Sexo registrado na DNV: masculino, feminino, ignorado e em branco;

- Registro de defeito congênito na DNV: sim, não, ignorado e em branco;

- Comparecimento à consulta de reavaliação clínica: sim e não;

- Manutenção da anormalidade genital na consulta de reavaliação clínica: sim e não.

Os dados foram tabulados e analisados por meio do programa Epi-Info™ versão 3.5.2. Inicialmente, foi realizada análise descritiva dos 2.916 recém-nascidos. Para testar associações entre variáveis categóricas, foi constituído um grupo controle formado pelos nascimentos sem anormalidades morfológicas, ocorridos no mesmo dia e na mesma maternidade em que o caso foi detectado. Aplicados os critérios de pareamento, o grupo controle foi constituído por 87 recém-nascidos. Teste exato de Fisher foi utilizado para análise de variáveis categóricas, e de Kruskal-Wallis, para igualdade de médias. Adotou-se nível de significância de 5% (p < 0,005).

Casos com suspeita de DDS foram enviados para estudo molecular realizado pelo Grupo Interdisciplinar de Estudos dos Distúrbios da Diferenciação do Sexo e Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética da Universidade Estadual de Campinas.

Esta pesquisa foi aprovada pelos comitês de ética das duas instituições envolvidas conforme processos #010367/2009-29 e #1433/2010.

Resultados

No período entre 19/04/2010 e 18/04/2011, ocorreram 3.271 nascimentos nas maternidades estudadas. Desse total, 3.009 (92%) recém-nascidos foram examinados, e 93 foram excluídos a posteriori, com base nos critérios estabelecidos nos métodos da pesquisa (33 por defeitos múltiplos congênitos, 14 por óbito anterior ao exame e 46 por nascimento em outro local).

Entre os 2.916 recém-nascidos que compuseram a amostra, 1.633 (56%) nascimentos ocorreram na maternidade 1, e 1.283 (44%), na maternidade 2. A idade no momento do exame variou em 0-38 dias com média de 1 dia e desvio padrão de 2 dias, tendo sido 2.718 (93,2%) sujeitos examinados antes de completar 72 horas de vida.

Foram encontrados 29/2.916 (prevalência de 1:100) casos com alguma anormalidade genital detectada ao exame físico. Entre os casos positivos, predominaram nascimentos ocorridos na maternidade 1 e de mães residentes no interior de Alagoas. A maioria foi examinada antes de completar 72 horas de vida, apresentava peso igual ou superior a 2.500 g e idade gestacional igual ou superior a 37 semanas (Tabela 1). Não houve diferenças estatisticamente significativas entre casos e controles em relação ao local de nascimento, residência materna, idade no momento do primeiro exame e ocorrência de baixo peso. A taxa de prematuridade, contudo, foi significantemente maior no grupo caso (p = 0,02). A despeito disso, casos e controles prematuros apresentaram idades gestacionais comparáveis (p = 0,12), com média de 34 (desvio padrão de 1,6) e 34,7 (desvio padrão de 1,8) semanas, respectivamente.

A distribuição dos casos quanto ao tipo de anormalidade genital, preenchimento da DNV, comparecimento à consulta de reavaliação clínica e situação da anormalidade genital é apresentada na Tabela 2. A anormalidade genital mais frequente foi hipospádia, com prevalência de 1:324, seguida de criptorquidia bilateral e hipertrofia de clitóris. Ambiguidade genital óbvia ocorreu em um caso. A análise da DNV mostrou que apenas um recém-nascido teve o campo sexo assinalado como "ignorado" e que cinco tiveram o campo de defeitos congênitos preenchido com resposta "sim" (Tabela 2).

Aos 29 casos positivos foi oferecida consulta de reavaliação clínica no ambulatório de genética. Desse total, quatro (13,8%) foram a óbito antes da data agendada, e 11 (38%) não compareceram. Os casos positivos que foram a óbito apresentaram complicações relacionadas com baixo peso (630 g), prematuridade, septicemia e síndrome hemorrágica. Um destes recém-nascidos apresentava malformações major de linha média incluindo holoprosencefalia. Não houve diferenças estatisticamente significativas entre os casos que compareceram e os que não compareceram à consulta em relação à procedência da mãe (p = 0,55).

A idade das crianças no momento da reavaliação clínica variou de 2 a 31 dias, com média de 15 dias e desvio padrão de 9 dias. O quadro estava mantido em oito (57%) e havia regredido em seis (43%) casos. Nesse último grupo, as anormalidades eram criptorquidia (4) e clitoromegalia (2). Não houve diferenças estatisticamente significativas entre esses grupos quanto à idade no primeiro exame (p = 0,88), idade na consulta de reavaliação clínica (p = 0,43), ocorrência de baixo peso ao nascer (p = 0,15) e prematuridade (p = 0,47).

No grupo de oito recém-nascidos com manutenção da anormalidade genital, quatro não aderiram à proposta de investigação e acompanhamento no ambulatório integrado de genética e psicologia. Entre esses, três apresentavam hipospádia, e um, criptorquidia bilateral.

A Tabela 3 apresenta o sumário das características genético-clínicas dos quatro casos que ingressaram no ambulatório e se mantiveram em acompanhamento.

Entre estes, um foi definido como hipospádia isolada, um com hiperplasia adrenal congênita por deficiência de 21-hidroxilase, e dois apresentavam quadro clínico-laboratorial sugestivo de síndrome da insensibilidade parcial aos andrógenos. A despeito da perda de casos ao longo do processo de investigação diagnóstica, a prevalência de DDS na amostra foi de, ao menos, 1,03:1000.

Discussão

As maternidades-alvo deste estudo são referência em alto risco na área materno-infantil no estado de Alagoas. Localizadas na capital (Maceió), estão ligadas a duas universidades públicas e são totalmente financiadas com recursos do Sistema Único de Saúde. Ambas contam com alojamento conjunto, unidade neonatal de terapia intensiva e de cuidados intermediários, perfazendo um total de 127 leitos.

Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde de Maceió, em conjunto, essas maternidades respondem por 20% dos nascimentos ocorridos na capital e 9% dos ocorridos no estado de Alagoas. A média anual de nascimentos vivos em ambas, no período 2004-2009, foi de 5.284, sendo 53% destes na maternidade 1, e 47%, na maternidade 2.

Ainda de acordo com a mesma fonte, no período de coleta de dados do presente estudo, ocorreram apenas 3.271 nascimentos nas duas maternidades, devido a problemas estruturais que levaram ao fechamento temporário. A despeito disso, a proporção de nascimentos em cada maternidade foi mantida ao longo do ano e se repetiu na amostra que compõe este estudo. A ausência de diferenças estatisticamente significativas entre casos e controles em relação ao local de nascimento e à idade no momento do primeiro exame indicam que a amostra foi homogênea.

De modo geral, espera-se que 2 a 5% dos nascidos vivos em todo o mundo apresentem algum defeito congênito morfológico ou funcional14. A diversidade de critérios utilizados em estudos epidemiológicos para definir anormalidades genitais, ambiguidade genital e DDS dificulta a análise comparativa da prevalência desses defeitos em diferentes populações5. Com base nos critérios adotados na presente investigação, obteve-se prevalência global de uma anormalidade em cada 100 nascidos vivos.

Esse resultado, bastante elevado considerando o grupo dos defeitos congênitos estruturais, pode refletir a abrangência dos critérios adotados neste estudo. A idade em que os recém-nascidos foram examinados é outro aspecto a considerar, uma vez que algumas anormalidades genitais, como aumento do clitóris e criptorquidia, podem ser transitórias. Nessas situações, deve-se considerar a prematuridade como fator interveniente, uma vez que em que cerca de 30% dos prematuros o testículo torna-se tópico no período entre 6 e 12 meses de idade15-17. Especificamente quanto à hipertrofia de clitóris, a escassez de tecido adiposo na vulva da criança prematura pode dar a impressão de hipertrofia de clitóris. Por outro lado, um recente estudo mostrou que a medida do clitóris apresenta relação negativa com o peso e comprimento do recém-nascido e, portanto, com a idade gestacional18.

No presente estudo, mais de 90% dos recém-nascidos tinham até 72 horas de vida no momento do exame. Criptorquidia bilateral (6/29) e hipertrofia de clitóris (6/29) corresponderam, em conjunto, a 40% dos diagnósticos. A prematuridade foi a única característica estatisticamente associada à presença de anormalidade genital, mesmo quando excluídos os casos de criptorquidia (p = 0,04).

Analisando-se em separado o defeito genital mais frequente na amostra, hipospádia, verificou-se prevalência de 1:324. Esse dado está de acordo com as publicações dedicadas especificamente a essa anormalidade, segundo as quais a prevalência varia de 1:300 a 1:1.000 nascimentos, podendo chegar a 1:100-80 quando há história familial positiva19.

Nos anos mais recentes, tem se verificado tendência global de elevação da prevalência desse defeito, provavelmente relacionada com exposição ambiental a drogas com ação estrogênica ou antiandrogênica, com capacidade de desbalancear a relação andrógeno/estrógeno ou de interferir na biossíntese de esteroides sexuais4,19-21. Embora esses fatores não tenham sido investigados no presente estudo, a ausência de diferenças estatisticamente significativas entre casos e controles em relação à procedência materna sugere a inexistência de exposição preferencial a fatores de risco para hipospádia na população residente na capital comparada à residente no interior de Alagoas.

Analisando-se, por outro lado, a anormalidade genital mais grave, ou seja, o caso de ambiguidade genital evidente, a prevalência verificada foi 1:2.916. Apesar da considerável diferença em relação à prevalência global de anormalidades genitais (1:100) e de hipospádia (1:324), o resultado se mantém bastante alto se comparado à prevalência global de 1:4.500 nascimentos3 e de 1:6.900 nascimentos na América do Sul8. A despeito da perda de acompanhamento de alguns casos e da pequena casuística, a incidência de DDS nesta amostra foi de no mínimo 1,03:1.000, maior que a descrita em outros estudos, que varia de 1:4.5003 a 1:20.0008. Diante desses resultados, a ocorrência de subdiagnóstico e sub-registro de defeitos genitais em estudos epidemiológicos retrospectivos é uma possibilidade a ser considerada.

Em apenas um recém-nascido o campo sexo da DNV foi preenchido como "ignorado", e o defeito, corretamente descrito na área destinada ao registro dos defeitos congênitos. Surpreendentemente, a anormalidade detectada nesse caso foi criptorquidia bilateral. Entre os cinco recém-nascidos que tiveram o campo de defeitos congênitos da DNV preenchido com resposta "sim", as anormalidades registradas foram criptorquidia bilateral, micropênis e hipospádia. Chamou a atenção o fato de que o único recém-nascido com ambiguidade genital óbvia tenha tido sua DNV preenchida como sexo feminino e a alternativa "não" assinalada no campo destinado ao registro de defeitos congênitos.

Os dados sugerem que o reconhecido subdiagnóstico e sub-registro de anomalias congênitas no Brasil9-12 é um problema que, em Alagoas, engloba as anormalidades genitais. Esse resultado é preocupante por se tratar de um grupo de defeitos congênitos cujo reconhecimento no recém-nascido dispensa o uso de exames complementares, ao contrário do que ocorre, por exemplo, em casos de malformações cardíacas, do trato gastrointestinal ou do sistema nervoso central, para os quais é necessário realizar exames de imagem.

Todos os 29 recém-nascidos com anormalidade genital foram encaminhados para reavaliação clínica no ambulatório de genética. Excluindo-se os casos que foram a óbito antes da data da consulta, a taxa de comparecimento foi de 56%. A ausência de diferenças estatisticamente significativas entre os casos que compareceram e os que não compareceram à consulta em relação à procedência materna (se capital ou interior) sugere que não houve dificuldades de acesso ao atendimento oferecido.

Aparentemente, a baixa adesão está relacionada à não percepção da anormalidade genital como um problema de saúde relevante. Essa atitude pode refletir a pouca importância dada à anormalidade ou mesmo o seu não reconhecimento por parte do pediatra/neonatologista, o que reforça o já mencionado problema de subdiagnóstico e sub-registro e o importante papel desempenhado pelo "primeiro médico"22.

No grupo de recém-nascidos que compareceram à consulta de reavaliação clínica, o quadro estava mantido em oito e havia regredido em seis. Idade, ocorrência de baixo peso e prematuridade não se comportaram de modo diferente nesses dois grupos. Desse modo, possíveis explicações para a regressão das anormalidades são:

a) resolução espontânea, como, por exemplo, descida dos testículos;

b) erro de mensuração do tamanho do pênis e do clitóris.

Aos genitores dos oito recém-nascidos com manutenção da anormalidade genital, foram oferecidos avaliação diagnóstica de DDS e atendimento integrado de genética e psicologia no ambulatório ao qual este estudo se vincula. Metade dos casos abandonou o acompanhamento sem realizar os exames complementares, o que, mais uma vez, sugere não valorização do defeito genital como problema de saúde por parte da família ou dificuldade em lidar com esse tipo de anormalidade. O impacto e a percepção dos pais a respeito do diagnóstico é objeto de um estudo qualitativo realizado por este grupo de pesquisa e, dada sua especificidade, serão reportados separadamente.

Evidenciou-se alta prevalência, subdiagnóstico e sub-registro de defeitos genitais nas maternidades estudadas. DDS foi definido em três casos entre os que se mantiveram em acompanhamento. Em dois destes, a anormalidade genital que conduziu à investigação diagnóstica específica era sutil.

Os resultados desta pesquisa reforçam a importância do exame cuidadoso da genitália externa de recém-nascidos, com o objetivo de identificar anormalidades morfológicas sutis que podem compor o quadro clínico de DDS.

A precocidade do diagnóstico e do tratamento e o envolvimento da família são essenciais na atenção integral à saúde desses sujeitos. Em face da complexidade e impacto biopsicossocial dos DDS, recomenda-se maior ênfase dos programas de residência e educação continuada de pediatras e neonatologistas no sentido de ampliar a consciência a respeito do adequado rastreio e registro de defeitos genitais.

Agradecimentos

Ao professor Jairo Calado Cavalcante, professor de bioestatística da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Alagoas e coordenador do setor de análise epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde de Maceió.

Artigo submetido em 17.05.12, aceito em 16.07.12.

Apoio financeiro: Fundação de Amparo à pesquisa do estado de Alagoas (FAPEAL), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Programa Interinstitucional de Bolsas de Iniciação Científica (CNPq/PIBIC).

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

Como citar este artigo: Monlleó IL, Zanotti SV, de Araújo BP, Cavalcante Júnior EF, Pereira PD, de Barros PM, et al. Prevalence of genital abnormalities in neonates. J Pediatr (Rio J). 2012;88(6):489-95.

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  • Correspondência:

    Isabella L. Monlleó
    Serviço de Genética Clínica, Hospital Universitário Prof. Alberto Antunes
    Universidade Federal de Alagoas
    Av. Lourival Melo Mota, s/n
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      17 Maio 2012
    • Aceito
      16 Jul 2012
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