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Avaliação antropométrica dos pacientes com paralisia cerebral: quais as curvas mais adequadas?

Resumos

OBJETIVO: Descrever a avaliação nutricional de crianças com paralisia cerebral, verificando a concordância de curvas de crescimento específicas para paralisia cerebral com curvas gerais, além de avaliar a presença das manifestações digestórias associadas a agravos nutricionais. MÉTODOS: Corte transversal de 187 indivíduos com paralisia cerebral, avaliando-se dados antopométricos em curvas habitualmente utilizadas em pediatria e em curvas específicas para paralisia cerebral, além da descrição da presença de disfagia, constipação intestinal e infecções respiratórias de repetição. RESULTADOS: Dos indivíduos, 58% eram masculinos; média de idade de 5,6 anos ± 3,5 anos. Dados antopométricos de peso abaixo do percentil 10 ocorreu em 10% da amostra, considerando a escala para paralisia cerebral, contra 51% na referência do Center of Disease Control (p < 0,01; Kappa 0,19). A maioria dos indivíduos comprometidos com disfagia, infecções respiratórias de repetição e constipação intestinal encontrava-se abaixo do percentil 50, com porcentagens respectivas de 67%, 75% e 72%. CONCLUSÃO: As referências habitualmente utilizadas em pediatria tendem a superestimar a desnutrição em indivíduos com paralisia cerebral, e sua concordância com referências específicas para paralisia cerebral é baixa. As manifestações digestórias foram encontradas principalmente naqueles indivíduos cujas medidas antropométricas encontram-se abaixo do percentil 50.

Paralisia cerebral; Desnutrição; Transtornos de deglutição; Constipação intestinal; Infecções respiratórias


OBJECTIVE: To describe the nutritional assessment of children with cerebral palsy, verifying the correlation of growth curves specific for cerebral palsy with general curves, in addition to assessing the presence of digestive manifestations associated with nutritional problems. METHODS: This was a cross-sectional study of 187 individuals with cerebral palsy, evaluating anthropometric data in curves commonly used in pediatrics and specific curves for cerebral palsy, in addition to the description of presence of dysphagia, constipation, and respiratory infections. RESULTS: 58% of patients were males, with a mean age of 5.6±3.5 years. Anthropometric data of weight below the 10th percentile occurred in 10% of the sample considering the cerebral palsy scale, versus 51% when considering the reference from the Centers for Disease Control and Prevention (p < 0.01; Kappa 0.19). The weight of most individuals with dysphagia, recurrent respiratory infections, and constipation was below the 50th percentile, with respective percentages of 67%, 75%, and 72%. CONCLUSION: The references commonly used in pediatrics tend to overestimate malnutrition in individuals with cerebral palsy, and their correlation with specific references for cerebral palsy is low. Digestive manifestations were mainly found in those individuals whose anthropometric measurements were below the 50th percentile.

Cerebral palsy; Malnutrition; Swallowing disorders; Intestinal constipation; Respiratory infections


ARTIGO ORIGINAL

Avaliação antropométrica dos pacientes com paralisia cerebral: quais as curvas mais adequadas?

Liubiana A. AraújoI,* * Autor para correspondência. E-mail: lregazzoni@neuromodulationlab.org (L.A. Araújo). , Luciana R. SilvaII

IDoutora em Neuropediatria, Programa de Pós-graduação em Medicina e Saúde, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil. Fellow, Harvard Medical School, Boston, MA, EUA

IIDoutora. Pós-doutora. Chefe, Serviço de Gastroenterologia e Hepatologia Pediátrica, Complexo do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES), Centro Pediátrico Professor Hosannah de Oliveira (CPPHO), UFBA, Salvador, BA, Brasil

RESUMO

OBJETIVO: Descrever a avaliação nutricional de crianças com paralisia cerebral, verificando a concordância de curvas de crescimento específicas para paralisia cerebral com curvas gerais, além de avaliar a presença das manifestações digestórias associadas a agravos nutricionais.

MÉTODOS: Corte transversal de 187 indivíduos com paralisia cerebral, avaliando-se dados antopométricos em curvas habitualmente utilizadas em pediatria e em curvas específicas para paralisia cerebral, além da descrição da presença de disfagia, constipação intestinal e infecções respiratórias de repetição.

RESULTADOS: Dos indivíduos, 58% eram masculinos; média de idade de 5,6 anos ± 3,5 anos. Dados antopométricos de peso abaixo do percentil 10 ocorreu em 10% da amostra, considerando a escala para paralisia cerebral, contra 51% na referência do Center of Disease Control (p < 0,01; Kappa 0,19). A maioria dos indivíduos comprometidos com disfagia, infecções respiratórias de repetição e constipação intestinal encontrava-se abaixo do percentil 50, com porcentagens respectivas de 67%, 75% e 72%.

CONCLUSÃO: As referências habitualmente utilizadas em pediatria tendem a superestimar a desnutrição em indivíduos com paralisia cerebral, e sua concordância com referências específicas para paralisia cerebral é baixa. As manifestações digestórias foram encontradas principalmente naqueles indivíduos cujas medidas antropométricas encontram-se abaixo do percentil 50.

Palavras-chave: Paralisia cerebral; Desnutrição; Transtornos de deglutição; Constipação intestinal; Infecções respiratórias

Introdução

Distúrbios de crescimento e nutrição são problemas de saúde frequentes em crianças com paralisia cerebral [PC].1 Alterações no crescimento global, como obesidade e desnutrição, ainda representam desafios no atendimento de crianças com PC, tanto para o pediatra quanto para as equipes especializadas. Essas deficiências nutricionais podem somar prejuízos no desenvolvimento motor e cognitivo, na socialização, na função psicológica, na utilização de serviços de saúde e necessidade de internações e na saúde global em indivíduos que já possuem todas essas esferas bem comprometidas.2

A investigação desses distúrbios do crescimento depende de avanços nos métodos de avaliação nutricional disponíveis para enfrentar os desafios inerentes à antropometria em crianças com PC.3 Geralmente, as equipes de saúde utilizam medidas de referência para populações sem comprometimento neurológico, as quais não são adequadas para crianças com PC.

Estudos para definição de métodos e referências específicas mais adequados para avaliar crescimento em indivíduos com PC têm sido realizados nos últimos anos, e a melhoria nos conhecimentos e a prática das medidas de reabilitação nutricional têm levado à maior sobrevida na PC.4 Gráficos de crescimento descritivos específicos e outras formas de medição da composição corporal fornecem informações que podem ajudar as equipes na identificação precoce das dificuldades nutricionais e metabólicas do crescimento e intervenção eficaz.5,6 No entanto, a maior parte desses estudos foi realizada em países desenvolvidos, e trabalhos que avaliam condições nutricionais na PC em países em desenvolvimento ainda são escassos, principalmente no Brasil.

Com essa reflexão, percebe-se que a antropometria adequada é de suma importância para orientação nutricional satisfatória e individualizada, além de fornecer melhor qualidade de vida a crianças e adolescentes com PC e suas famílias.

A partir desses aspectos, este estudo foi delineado com o objetivo de descrever a avaliação nutricional de crianças com PC, verificando a concordância de curvas de crescimento específicas para PC com curvas gerais, além de avaliar a presença das manifestações digestórias associadas a agravos nutricionais.

Métodos

Trata-se de um estudo de corte transversal, descritivo e retrospectivo, com dados antropométricos aferidos na admissão de indivíduos com PC atendidos em um hospital de reabilitação, entre março/2001 e março/2007.

O plano amostral foi composto de uma amostra aleatória simples, sem reposição, entre as crianças com PC admitidas no período avaliado. Considerando-se que existem variáveis qualitativas e quantitativas, optou-se por estabelecer os antecedentes amostrais segundo uma variável quantitativa. Com base nesse requisito, fixou-se a variância absoluta da proporção no valor máximo 0,25 resultante de p(1-p) para p = 0,50, nível de confiança de 95% e erro aproximado de inferência da proporção não superior a 6,5%. Por último, foi realizado ajuste no tamanho da amostra em decorrência da população estudada ser finita, chegando-se ao valor de 200 indivíduos. Os prontuários foram dispostos em uma planilha eletrônica e foi atribuído um número exclusivo a cada um. Por meio de tabela de números aleatórios gerada pelo software Excel®, ocorreram sucessivos sorteios, sem reposição, dos números atribuídos aos prontuários, até completar o tamanho da amostra calculada.

Foram incluídas no estudo as crianças entre dois e 16 anos, com diagnóstico de PC, de ambos os sexos, procedentes do estado da Bahia. Foram critérios de exclusão ausência de dado do peso no prontuário ou outros diagnósticos associados de síndromes genéticas e mielomeningocele. Após a avaliação, 13 indivíduos não preencheram todos os critérios e a amostra resultou em 187 sujeitos.

Os dados foram coletados de prontuários médicos, por meio de um protocolo que incluía variáveis como gênero, idade, descrição da classificação da PC, percentis de peso, estatura, índice de massa corporal (IMC) e diagnóstico de alterações digestórias, como disfagia e constipação, além de infecções respiratórias de repetição (IRR).

O peso foi mensurado em balança digital calibrada para zero, em Kilogramas, com a criança despida ou realizando-se a diferença entre o peso do acompanhante com e sem a criança no colo. A estatura foi mensurada em centímetros, por meio de estadiômetro, com a criança na posição supina ou em ortostatismo, naqueles indivíduos que não apresentavam deformidades esqueléticas importantes (como escoliose, cifose ou deformidades estruturadas em flexão de membros inferiores). Para aqueles com deformidades, a estatura em alguns indivíduos foi estimada através da equação da medida do joelho, onde: estatura = (2,69 x comprimento joelho) + 24,2.7 A fórmula que utiliza a medida do comprimento do joelho ao calcanhar é a mais recomendada, uma vez que que esta mostrou menor erro em relação à altura aferida.8

O IMC foi obtido pela razão do peso sobre o quadrado da estatura, em metros (Kg/m2).

O perfil antropométrico foi obtido através da inserção dos dados antropométricos nas curvas de crescimento para crianças com PC proposta por Brooks et al. ,5 e também nas curvas de crescimento recomendadas pelo Center of Disease Control (CDC).9

Em ambas as curvas de crescimento foram utilizados os mesmos parâmetros: peso/idade, altura/idade e IMC. Foi considerado "déficit nutricional" (desnutrido) aqueles dados abaixo do percentil 10; eutróficos com percentil entre 10 e 50; com risco de sobrepeso entre percentil 50 e 90; e sobrepeso aqueles acima do percentil 90.

A classificação da PC foi baseada no predomínio de comprometimento motor: espástica, discinética ou extrapiramidal, cerebelar ou atáxica, hipotônica e mista. Outra classificação utilizada foi a Gross Motor Function Classification System (GMFCS), que contém cinco subgrupos de acordo com a gravidade do comprometimento motor, variando progressivamente do nível mais leve, I, até o mais grave, V. Neste trabalho, os indivíduos foram alocados nos diferentes níveis, baseados nas aquisições motoras conforme descrito por Brooks et al.:5

I. Anda sem limitações

II. Anda com limitações

III. Anda usando auxílio-locomoção manual

IV. Automobilidade com limitações, pode usar cadeira motorizada

V. Transportado por cadeira de rodas manual

A disfagia foi clinicamente avaliada utilizando dados de protocolos específicos coletados durante a entrevista e observação da ingestão de diferentes consistências de alimentos. Os dados clínicos analisados para verificar a presença de disfagia foram: alteração na ausculta cervical e oximetria de pulso, tosse ou engasgo durante ou depois da deglutição, habilidades motoras orais deficientes, atraso na resposta faríngea (para elicitar o reflexo de deglutição), deglutições múltiplas, aumento da secreção ou estridor em vias aéreas superiores durante ou depois da deglutição e ritmo respiratório modificado.8

IRR foi definida por: ocorrência de três episódios de otite média dentro de um período de seis meses, ou quatro episódios em 12 meses; rinite infecciosa recorrente, geralmente definida como mais de cinco episódios por ano; faringite ou amigdalite de repetição com mais de três episódios em 12 meses, tosse frequente, com febre e hipersecreção de vias aéreas superiores, tosse diária ou quase diária por mais de três meses, mais de um caso de pneumonia nos últimos dois anos, ou broncoespasmo persistente.10,11

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação.

As informações foram armazenadas no banco de dados ACCESS® e posteriormente realizada a análise estatística no programa de estatística SPSS®, versão 17.0. A planilha eletrônica EXCEL® foi utilizada no procedimento de sorteio dos elementos da amostra. Foram utilizadas, predominantemente, análises descritivas com medidas de frequências, tendência central e de dispersão, além das representações gráficas. Para comparações de variáveis categóricas, utilizou-se a prova Qui-quadrado, e o teste H de Kruskal-Wallis. O teste de Kolmogorov-Smirnov foi utilizado na avaliação das distribuições das variáveis em relação à normal. A confiabilidade da concordância entre os diferentes métodos de mensuração utilizados (curvas OMS/CDC vs curvas PC) foi avaliada pelo coeficiente Kappa ponderado, utilizando-se como sistema de ponderação o erro absoluto e os seus respectivos intervalos de confiança de 95% e testes de significância. O nível de significância foi definido a 5%.

Resultados

A amostra consistiu de 187 indivíduos. Na distribuição de gênero, 58% eram masculinos e a média de idade na admissão foi de 5,6 anos ± 3,5 anos.

O peso encontrado foi considerado abaixo do percentil 50 na maior parte dos indivíduos com PC, tanto na curva para PC (56%), quanto na curva do CDC (86%), com diferença estatisticamente significante. A distribuição dos dados de peso, estatura e IMC encontra-se nas tabelas 1 e 2, segundo a referência de curvas específicas para PC e curvas habitualmente utilizadas em pediatria, com índice Kappa obtido comparando-se o peso das duas referências usadas. Considerando a escala para PC da referência de Brooks et al. , o grupo avaliado com "déficit nutricional" (P < 10) ocorreu em 10% da amostra. Já na referência do CDC, 51% dos indivíduos foram classificados como abaixo do P10. Os achados sugestivos de sobrepeso foram semelhantes nas duas avaliações, com índice Kappa de 0,0852 (tabela 1).

Ainda em relação à concordância entre as duas referências utilizadas, o teste de normalidade Kolmogorov-Smirnov mostrou que a distribuição foi não-normal para ambas as referências. Os respectivos histogramas encontram-se na figura 1. A avaliação da concordância entre as duas referências utilizando-se Wilkoxon Test mostrou-se estatisticamente significativa.


Dados sobre disfagia, IRR e constipação intestinal (CI) estiveram presentes em 183 indivíduos. Para todas essas variáveis, foi constatado que a maioria dos indivíduos comprometidos com disfagia, IRR e CI encontrava-se abaixo do percentil 50, com porcentagens respectivas de 67%, 75% e 72% (tabela 2). Na amostra estudada, quatro indivíduos recebiam alimentação via gastrostomia, e 183 via oral.

Do total, 144 crianças pertenciam à classificação da PC espástica, 34 discinética, três atáxica, uma hipotônica e seis mista. Na análise de frequência dos percentis de peso em relação às diferentes topografias da classificação espástica de PC, encontrou-se que 13% dos indivíduos com tetraplegia estavam abaixo do percentil 10, e 49% entre 10 e 50, com p = 0,157 (Kruskal-Wallis).

Discussão

Neste estudo, observou-se que as referências habitualmente utilizadas em pediatria tendem a superestimar a desnutrição em indivíduos com PC. Outro ponto importante foi que os resultados corroboraram com os da literatura mundial, no que se refere à baixa concordância entre a distribuição dos dados antropométricos nos percentis específicos para PC e para referências gerais de avaliação nutricional. Os dados obtidos através do índice Kappa evidenciaram baixa concordância na avaliação antropométrica do grupo abaixo do percentil 10, e entre os percentis 50 e 90. Embora tenha sido encontrado um índice Kappa negativo no grupo do percentil entre 10 e 50, é sabido que um eventual valor de Kappa menor que zero indica que a concordância encontrada foi menor do que aquela esperada por acaso, sugerindo, portanto, discordância. Já no grupo de indivíduos com sobrepeso, o índice Kappa mostrou concordância, mas o resultado pode ter sido influenciado pela baixa frequência de sujeitos com dados antropométricos nesse intervalo. Essas diferenças devem alertar as equipes interdisciplinares que acompanham as crianças com PC para a importância do uso de instrumentos adequados, de forma a ter um resultado mais fidedigno sobre o perfil antropométrico e metas nutricionais mais realísticas de reabilitação nutricional.

Pelo fato de o indivíduo com PC apresentar crescimento peculiar, estudos no sentido de encontrar formas mais apropriadas de avaliação nutricional possuem grande valia, principalmente em países com condições socioeconômicas menos favorecidas, como o Brasil.12 O pediatra, que deve realizar de modo sistemático a avaliação nutricional em todas as suas consultas, pode ter dificuldades na avaliação de indivíduos com PC.

As alterações nutricionais são frequentes em crianças com PC e são de etiologia multifatorial, secundárias a fatores relacionados à lesão neurológica, diminuição da ingesta e do aporte nutricional adequado, alterações morfológicas e funcionais digestórias, sobretudo as relacionadas com distúrbios da motilidade, alterações osteoarticulares, particularidades do crescimento e alterações hormonais.13,14

No presente estudo, as manifestações digestórias foram encontradas com maior frequência nos indivíduos com dados antropométricos abaixo do percentil 50, e foi observado que 50% dos indivíduos estavam abaixo do percentil 10, considerando-se referências gerais do CDC. Tais dados estão de acordo com a literatura, que descreve desnutrição em 40-90% dos indivíduos com o mesmo tipo de análise.4,15-17 Vale ressaltar que a utilização da referência do CDC como referência habitual para crianças saudáveis foi também utilizada por Brooks et al. em seu estudo.5 Também, apesar de a Organização Mundial de Saúde (OMS) ter construído novos gráficos antopométricos para crianças saudáveis em 2006, a sua utilidade em relação às curvas do CDC ainda é questionável.18

As curvas específicas para PC classificaram menos indivíduos com déficit nutricional que aquelas do CDC, tanto para peso quanto para estatura e IMC. Esses achados corroboram dados de recentes estudos que têm demonstrado que a composição corporal das crianças com PC é diferente das crianças saudáveis, tanto para peso, estatura e IMC, e que os atuais métodos de avaliação corporal tendem a subestimar o diagnóstico nutricional.7,19,20

Estudos recentes foram realizados de forma a buscar uma avaliação nutricional mais adequada para indivíduos com PC, como a mensuração da estatura e peso, a circunferência do braço e pregas cutâneas, medidas de segmentos corporais e outras técnicas mais sofisticadas, como impedanciometria e absorção por emissão de raios-X (tabela 3).4-6,19-23 Em 1996, Krick et al. avaliaram dados antropométricos de 360 crianças com PC tetraplegia espástica entre dois e 12 anos e que desenvolveram curvas de crescimento específicas para esse perfil, que foram comparadas com as curvas de referência do CDC.19 Os pesquisadores constataram que as crianças com PC tetraplegia apresentavam peso e estatura abaixo do normal quando comparadas com as crianças saudáveis. A maior parte dos indivíduos com dados antopométricos no percentil 50 da altura/idade e do peso/idade das curvas de referência para PC, foram classificados como "abaixo do percentil 10" na referência do CDC. Os resultados foram semelhantes para o parâmetro de peso/altura.19

Em 2007, Day e colaboradores realizaram um estudo envolvendo dados antropométricos de peso, estatura e IMC de 24.920 indivíduos com PC entre a idade de dois a 20 anos.6 Foram desenvolvidas novas curvas de crescimento específicas para crianças com PC, também utilizando indivíduos procedentes dos Estados Unidos. Essas curvas abrangeram diferentes tipos de PC com quatro níveis de aquisições motoras e uma específica para gastrostomizados. Os resultados obtidos demonstraram, também, que indivíduos com PC apresentavam peso e estatura diferentes de indivíduos normais, exceto para o grupo com melhor desempenho motor (indivíduos que possuíam marcha independente), onde o crescimento foi semelhante ao das crianças saudáveis em idade jovem.6

Em 2011, Brooks et al. realizaram um novo estudo para a classificação do estado nutricional de 25.545 indivíduos de acordo com o desempenho motor da classificação GMFCS, quando foram delineadas novas curvas. Estas foram utilizadas no presente estudo como referência para PC, pelo fato de ter sido resultante de um estudo recente envolvendo amostra mais representativa, tanto pelo seu tamanho, quanto pela heterogeneidade da PC. Mais uma vez, foi descrito que a diferença dos dados entre as curvas foi tanto maior quanto mais evidente o comprometimento motor, e resultados do presente estudo corroboram essa afirmativa.5

Assim como outros estudos, as discrepâncias antropométricas maiores foram encontradas naqueles grupos mais comprometidos. Nesses, a desnutrição é mais presente pelas dificuldades próprias do grave comprometimento neurológico associado à ingesta deficiente, maior frequência de alterações digestórias, aumento das perdas e gasto energético mais elevado, além da falta de preparo e das dificuldades enfrentadas pelos cuidadores para alimentar essas crianças.24

Nos indivíduos com maior comprometimento neurológico, as lesões cerebrais são mais extensas, interferindo no controle neuronal da deglutição, trânsito esofágico, gastrointestinal e evacuatório. A disfagia neurogênica, doença do refluxo gastroesofágico, constipação e IRR são secundárias à alteração do controle neuronal do trato digestório, somadas às peculiaridades envolvidas nos cuidados da criança com PC, como outras alterações associadas, tipo de alimentação, experiência do cuidador, dentre outros.2,25,26 As alterações digestórias determinam maior comprometimento nutricional e déficits nas curvas antropométricas, gerando maior risco de internações, faltas escolares, comprometimento do desenvolvimento neuropsicomotor e risco de mortalidade.27 Vale ressaltar que a desnutrição durante a infância pode prejudicar o desenvolvimento cerebral, a divisão celular dos neurônios, a mielinização e a sinaptogênese.28 O impacto desses fatores em um cérebro já comprometido, que é o caso da criança com PC, pode ser ainda maior, agravando o atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e as possibilidades de neuroplasticidade e aquisições motoras e cognitivas.

São vários os obstáculos que limitam a ingestão alimentar satisfatória nas crianças com PC.13 Dentre eles, é possível citar a imaturidade neurológica, a interferência do estado de humor e o preparo dos cuidadores, além das peculiaridades dos indivíduos com PC (dificuldades do posicionamento, alteração do movimento e deformidades; epilepsia, alterações dentárias, atraso cognitivo e da linguagem que dificulta a comunicação sobre fome e preferências alimentares; dietas oferecidas em consistência pastosa, tornando a refeição monótona e com risco de perda de nutrientes no seu preparo, dentre outros).13,29 Todos esses fatores encontram-se imbricados e inter-relacionados em um círculo vicioso de comprometimento neurológico, manifestações digestórias, desnutrição e ameaça à saúde de forma global.

O estudo retrospectivo tem suas limitações, mas essas não invalidam os seus resultados. A estatura foi mensurada utilizando os mesmos instrumentos pela equipe que recebe o treinamento para o atendimento de indivíduos com PC, o que diminui o risco de dados discrepantes interobservadores. A avaliação do peso foi realizada na mesma balança calibrada, o que é observador independente. Por esse motivo, os principais resultados foram baseados na análise do peso.

A equipe interdisciplinar precisa estar envolvida e orientar os cuidadores sobre como alimentar as crianças, qual a consistência adequada e a postura durante as refeições, o conteúdo e o balanço dos nutrientes, além de identificar os indivíduos que necessitam de tratamento farmacológico para doença do refluxo gastroesofágico e constipação intestinal, e aqueles que têm indicação de gastrostomia com cirurgia anti-refluxo concomitante, a fim de melhorar o estado nutricional dos indivíduos com PC, a saúde global e a qualidade de vida destes e de suas famílias.

A partir dos resultados deste estudo, pode-se constatar que a antropometria e o crescimento das crianças com PC diferem das crianças sadias. Dessa forma, enfatiza-se a importância da equipe que lida com crianças com PC, tanto o pediatra geralquanto os membros das equipes especializadas, de utilizar métodos de avaliação nutricional que consigam predizer realmente o estado nutricional nessa população específica de indivíduos com PC. A partir daí, metas mais realísticas na reabilitação nutricional podem ser alcançadas.

Mais estudos são necessários para a avaliação nutricional dessa população de indivíduos em outras áreas geográficas do Brasil, comparando-os entre si e com as novas técnicas de avaliação nutricional que sejam factíveis para o pediatra geral e o especialista, e que possam demonstrar a validade externa dos resultados.

Financiamento

Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação, Brasil.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Recebido em 6 de setembro de 2012; aceito em 21 de novembro de 2012

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  • *
    Autor para correspondência.
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      06 Set 2012
    • Aceito
      21 Nov 2012
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