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Leite de mulheres brasileiras apresenta anticorpos IgA secretores (SIgA) que neutralizam o rotavírus G9P[5]

Resumos

OBJETIVO: Verificar a presença de SIgA anti-rotavírus sorotipo G9P[5] e a capacidade de neutralização do vírus de amostras de leite de mulheres brasileiras. MÉTODOS: Foram determinados os níveis de anticorpos SIgA reativos contra rotavírus G9 em 30 amostras de leite materno por ELISA usando suspensões purificadas do vírus. A capacidade das amostras de neutralizarem o rotavírus G9P[5] foi analisada em ensaio de de Neutralização utilizando células MA-104. RESULTADOS: Foram observadas grandes variações individuais referentes aos níveis de SIgA e títulos de neutralização, mas todas as amostras mostraram certa capacidade de neutralizar o G9P[5]. Verificamos uma correlação positiva altamente significativa entre os níveis de anticorpos e os títulos de neutralização. CONCLUSÕES: A alta correlação entre níveis de anticorpos anti-rotavírus e a capacidade neutralizante das amostras de leite sugere um possível papel protetor desses anticorpos contra a infecção. Esses resultados também apoiam o incentivo à prática do aleitamento materno.

Leite humano; Rotavírus; IgA secretora; Neutralização do rotavírus


OBJECTIVE: To verify the presence of anti-rotavirus serotype G9P[5] SIgA and the virus neutralization capacity of milk samples from Brazilian women. METHODS: SIgA antibody levels reactive to rotavirus G9 were determined in 30 maternal milk samples by enzyme-linked immunosorbent assay (ELISA) using purified virus suspensions. The samples' capacity to neutralize rotavirus G9P[5] was analyzed using the MA-104 cells neutralization assay. RESULTS: Great individual variations were observed regarding the SIgA levels and neutralization titers, but all samples showed some G9P[5] neutralizing ability. A highly significant positive correlation was observed between antibody levels and neutralization titers. CONCLUSIONS: The high correlation between anti-rotavirus antibody levels and neutralizing capacity of the milk samples suggests a possible protective role of these antibodies against infection. These results also support the encouragement of the breast-feeding practice.

Human milk; Rotavirus; Secretory IgA; Rotavirus neutralization


ARTIGO ORIGINAL

Leite de mulheres brasileiras apresenta anticorpos IgA secretores (SIgA) que neutralizam o rotavírus G9P[5]

Simone M.R. SantosI; Thalita L. FerreiraI; Virgínia S. QuintalII; Solange B. CarbonareIII; Milene Tino-De-FrancoIII,* * Autor para correspondência. E-mail: milene.franco@butantan.gov.br (M. Tino-De-Franco).

IMestre, Laboratório de Imunogenética, Instituto Butantan, São Paulo, SP, Brasil

IIMédica, Banco de Leite Humano, Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

IIIDoutora, Laboratório de Imunogenética, Instituto Butantan, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

OBJETIVO: Verificar a presença de SIgA anti-rotavírus sorotipo G9P[5] e a capacidade de neutralização do vírus de amostras de leite de mulheres brasileiras.

MÉTODOS: Foram determinados os níveis de anticorpos SIgA reativos contra rotavírus G9 em 30 amostras de leite materno por ELISA usando suspensões purificadas do vírus. A capacidade das amostras de neutralizarem o rotavírus G9P[5] foi analisada em ensaio de de Neutralização utilizando células MA-104.

RESULTADOS: Foram observadas grandes variações individuais referentes aos níveis de SIgA e títulos de neutralização, mas todas as amostras mostraram certa capacidade de neutralizar o G9P[5]. Verificamos uma correlação positiva altamente significativa entre os níveis de anticorpos e os títulos de neutralização.

CONCLUSÕES: A alta correlação entre níveis de anticorpos anti-rotavírus e a capacidade neutralizante das amostras de leite sugere um possível papel protetor desses anticorpos contra a infecção. Esses resultados também apoiam o incentivo à prática do aleitamento materno.

Palavras-chave: Leite humano; Rotavírus; IgA secretora; Neutralização do rotavírus

Introdução

Os rotavírus estão entre as principais causas de gastroenterites que afetam crianças no mundo todo.1 O rotavírus possui um capsídeo com duas camadas protéicas. A camada externa é composta por duas proteínas estruturais que determinam a classificação do sorotipo do rotavírus: VP7 (glicoproteína, ou proteína G) e VP4 (proteína sensível à protease ou proteína P), ambas capazes de induzir anticorpos neutralizantes e protetores. A camada interna contém a proteína estrutural VP6 que determina o sorogrupo do rotavírus.2 O sorotipo G9 é frequentemente detectado no homem e foi o segundo sorotipo mais frequente circulante na América Latina e no Caribe, de 1990 a 2009.3 No Brasil o sorotipo G9 tem sido detectado desde 1998.4,5

O sistema imune em crianças é imaturo e para se protegerem de infecções elas dependem dos anticorpos que recebem de suas mães por meio da placenta durante a gravidez ou do colostro e do leite materno depois do nascimento.6 Contudo, não há consenso referente ao papel dos anticorpos maternos na defesa contra infecções por rotavírus. Alguns estudos relataram taxas de infecções mais baixas entre lactente que receberam exclusivamente aleitamento materno em comparação com os lactentes que não foram amamentados7,8, enquanto outros não conseguiram demonstrar nenhum efeito protetor do aleitamento materno.9,10

Outros relatos investigando anticorpos anti-rotavírus no leite humano têm sugerido que eles possam interferir na eficiência da vacina, neutralizando as partículas virais nela presentes antes que possam se multiplicar nas células intestinais, diminuindo, assim, seu potencial imunológico.11,12

Uma vacina humano-bovina pentavalente contra rotavírus contendo os sorotipos G1, G2, G3, G4 e também G9 está atualmente em desenvolvimento no Instituto Butantan (Brasil), para uso humano. O objetivo deste estudo foi investigar a presença de anticorpos IgA secretores (SIgA) reativos contra o rotavírus sorotipo G9P[5] em amostras de leite de mães brasileiras e sua capacidade de neutralizar partículas virais, já que poderiam afetar a eficiência da imunização de vacinas contendo o sorotipo G9.

Métodos

A presença de SIgA anti-rotavírus sorotipo G9P[5] (cepa da vacina humana) foi analisada por ELISA em 30 amostras de leite coletadas de nutrizes saudáveis de 19 a 38 anos de idade cujo parto foi realizado no Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, que atende, em sua maior parte, pacientes de nível socioeconômicos mais baixos, grupo altamente representativo da população feminina brasileira. Todas as amostras foram coletadas manualmente, pela manhã, entre as mamadas. O consentimento livre e esclarecido das pacientes e a aprovação do Comitê de Ética da Universidade de São Paulo foi obtido antes das coletas. As amostras de leite foram coletadas de nutrizes em bom estado de saúde e nutricional que não estavam recebendo medicamentos que pudessem interferir na lactaccedil;ão, negativas para o HIV, hepatite B e sífilis. Os testes de ELISA foram realizados sensibilizando-se metade das microplacas de 96 poços com 5 µg/mL de antígeno viral (sobrenadante de culturas de células MA-104 infectadas ultracentrifugado em camada de sacarose), e a outra metade com a mesma concentração de antígeno controle (sobrenadante de células não infectadas ultracentrifugado em camada de sacarose). Um pool de leite contendo volumes iguais de 50 amostras de leite diferentes provenientes do Banco de Leite do Hospital Universitário da Universidade São Paulo foi preparado, sendo usado como controle positivo. Os níveis de anticorpos foram calculados pela diferença entre as leituras das densidades ópticas obtidas com antígenos virais e controle. Os títulos finais foram definidos como títulos relativos, em porcentagem, considerando o pool de leite como 100%.

A capacidade das amostras de leite de neutralizar o rotavírus G9P[5] foi analisada em Provas de Neutralização utilizando culturas de células MA-104. Volumes iguais de diluiccedil;ões seriadas das amostras de leite e de uma suspensão contendo 100 TCID50/mL de rotavírus G9P[5] foram misturados. Depois de 30 minutos de incubação, as misturas foram adicionadas a uma monocamada confluente de células MA-104, cultivadas em microplacas de 96 poços. Os títulos de anticorpos neutralizantes foram considerados como a maior diluição das amostras que apresentou mais de 60% de inibição do efeito citopático depois de 48 horas de incubação.

As correlações entre os níveis de SIgA das amostras de leite e os títulos de neutralização foram calculadas usando-se o coeficiente de correlação de Spearman. Foi estabelecido o intervalo de confiança de 95% (IC 95%), e os valores p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.

Resultados

Os títulos de SIgA antirrotavírus e de neutralização, com valores máximos e mínimos, os percentis 75 e 25, a média e a mediana estão apresentados na figura 1. Foram observadas grandes variações individuais nos títulos de SIgA obtidos por ELISA. Os títulos de neutralização determinados pela Prova de Neutralização também variaram amplamente. O título mais alto obtido (160) foi 16 vezes mais alto do que o título mais baixo (10), e uma amostra mostrou valor discrepante.


A figura 2 mostra a correlação entre os títulos de SIgA e de neutralização. Uma amostra apresentou títulos muito altos de SIgA e de neutralização, discrepantes dos outros. Foi observado um coeficiente de correlação de Spearman altamente significativo e positivo (r = 0,740, p < 0,0001) na análise estatística comparando-se os dois parâmetros.


Discussão

O grau de proteção induzido pelas vacinas anti-rotavírus vigentes mostrou ser variável dependendo da localidade em que foram administradas. Países da África e da Ásia tiveram a proteção conferida pela vacina significativamente diminuída em relação a países desenvolvidos, como a Finlândia.13 Entretanto, não está claro quais são os fatores que influenciam a baixa imunogenicidade dessas vacinas. Uma possível explicação poderia ser a presença de anticorpos antirrotavírus no leite de nutrizes nos países em de-senvolvimento, onde o aleitamento materno é prática mais comum. Devido à presença desses anticorpos, se os lactentes forem amamentados durante curtos períodos de tempo antes ou depois da vacinação oral, os benefícios imunológicos poderiam ser comprometidos.11,12 Desse modo, torna-se importante o estudo do repertório de anticorpos anti-rotavírus presentes no leite da mãe que podem potencialmente interferir na imunogenicidade e na eficácia da vacina que está atualmente em desenvolvimento no Brasil.

Embora a circulação do sorotipo G9 seja variável nos países em desenvolvimento (dependendo da época do ano e da localidade), esse sorotipo tem sido prevalente no Brasil desde 1998.4,5 Assim sendo, a população brasileira tem sido amplamente exposta a esse sorotipo, e isso poderia influenciar o repertório de anticorpos presentes no leite das nutrizes. Esse repertório é o resultado da resposta imune humoral a antígenos aos quais elas foram expostas. As grandes variações nos níveis de anticorpos SIgA anti-rotavírus nessas mulheres podem refletir os diferentes graus de exposição ao sorotipo G9.

Também avaliamos a capacidade do leite materno de neutralizar o sorotipo G9P[5]. Todas as amostras mostraram alguma capacidade de neutralizar o vírus, com ampla variação dos títulos de neutralização. A correlação positiva observada entre os títulos de SIgA anti-rotavírus e os títulos de neutralização sugere que os anticorpos anti-rotavírus G9 desempenhem um papel na neutralização viral.

No entanto, não podemos ignorar o fato de que algumas amostras apresentaram altos títulos de SIgA (> 80) e baixos títulos de neutralização (< 5), enquanto outras apresentaram altos títulos de neutralização, mas baixos títulos de SIgA. Assim sendo, é preciso considerar a possibilidade de que outros componentes do leite materno, como por exemplo a lactaderina, também sejam importantes na neutralização viral. De fato, já foi observado que a lactaderina inibe a infecção pelo rotavírus in vitro.14

A presença de SIgA anti-rotavírus G9 no leite materno não deve, de modo algum, ser considerada um argumento contra o aleitamento materno. Ao contrário, os anticorpos presentes no leite materno podem potencialmente proteger os lactentes contra as infecções pelo rotavírus em idade precoce e por essa razão tal prática deve ser incentivada, particularmente nos países em desenvolvimento. Além disso, com o objetivo de melhorar a eficácia das imunizações, deve-se recomendar um intervalo de tempo entre a amamentação e a vacinação.

Financiamento

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) Processo nº 2004/07694-9.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Agradecimentos

Agradecemos à Dra. Neuza Frazatti Gallina pelo fornecimento das amostras de rotavírus G9P[5].

Recebido em 14 de setembro de 2012; aceito em 18 de fevereiro de 2013

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  • *
    Autor para correspondência.
    E-mail:
    milene.franco@butantan.gov.br (M. Tino-De-Franco).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Out 2013

    Histórico

    • Recebido
      14 Set 2012
    • Aceito
      18 Fev 2013
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