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Prevalência e fatores associados à doação de leite para postos de recebimento de leite humano de unidades básicas de saúde Como citar este artigo: Meneses TM, Oliveira MI, Boccolini CS. Prevalence and factors associated with breast milk donation in banks that receive human milk in primary health care units. J Pediatr (Rio J). 2017;93:382-8. , ☆☆ ☆☆ Trabalho vinculado à Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

Resumo

Objetivo:

Estimar a prevalência e analisar os fatores associados à doação de leite materno em unidades básicas de saúde com vistas a aumentar os estoques dos bancos de leite humano.

Métodos:

Estudo transversal conduzido em 2013 na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, mediante entrevista a uma amostra representativa de 695 mães de crianças menores de um ano assistidas nas nove unidades básicas de saúde com posto de recebimento de leite humano ordenhado. Razões de prevalência ajustadas (RPa) foram obtidas por modelo de regressão de Poisson com variância substancial, segundo modelo hierarquizado. O modelo final foi composto pelas variáveis que se associaram à doação de leite materno por profissionais de saúde (p ≤ 0,05).

Resultados:

Doaram leite materno 7,3% das mães. Ter sido incentivada a doar leite materno por profissionais de saúde, parentes ou amigos (RPa = 7,06), ter recebido orientação da unidade básica sobre ordenha das mamas (RPa = 3,65) e ter recebido ajuda da unidade básica para amamentar (RPa = 2,24) se associaram a uma maior prevalência de doação, enquanto a internação prévia do bebê em unidade neonatal se associou a uma menor prevalência (RPa = 0,09).

Conclusões:

Ficou evidente a importância do incentivo à doação, das orientações e da ajuda da unidade básica para amamentar para a prática de doação de leite materno.

PALAVRAS-CHAVE
Leite humano; Bancos de leite; Estudos transversais; Atenção primária à saúde; Doação; Epidemiologia

Abstract

Objective:

To estimate the prevalence and to analyze factors associated with breast milk donation at primary health care units in order to increase the human milk bank reserves.

Methods:

Cross-sectional study carried out in 2013 in Rio de Janeiro, Brazil. A representative sample of 695 mothers of children younger than 1 year attended to at the nine primary health care units with human milk donation services were interviewed. A hierarchical approach was used to obtain adjusted prevalence ratios (APR) by Poisson regression with robust variance. The final model included the variables associated with breast milk donation (p ≤ 0.05).

Results:

7.3% of the mothers had donated breast milk. Having been encouraged to donate breast milk by healthcare professionals, relatives, or friends (APR = 7.06), receiving information on breast milk expression by the primary health care unit (APR = 3.65), and receiving help from the unit professionals to breastfeed (APR = 2.24) were associated with a higher prevalence of donation. Admission of the newborn to the neonatal unit was associated with a lower prevalence of donation (APR = 0.09).

Conclusions:

Encouragement to breast milk donation, and information and help provided by primary health care unit professionals to breastfeeding were shown to be important for the practice of human milk donation.

KEYWORDS
Human milk; Milk banks; Cross-sectional studies; Primary health care; Donation; Epidemiology

Introdução

O leite materno é o melhor alimento para o lactente, tem nutrientes espécie-específicos e uma presença expressiva de fatores de proteção, como IgA, IgM, IgG, macrófagos, neutrófilos, linfócitos B e T, lactoferrina, lisosima e fator bífido.11 Battochio AP, Santos AG, Coelho CA. Leite materno: considerações sobre nutrientes específicos e seus benefícios. Rev Bras Nutr Clin. 2003;18:136-41. O aleitamento materno contribui para a redução da mortalidade infantil, previne infecções como as respiratórias e as diarreicas22 Jones G, Steketee RW, Black RE, Bhutta ZA, Morris SS. Bellagio Child Survival Study Group. How many child deaths can we prevent this year?. Lancet. 2003;362:65-71.,33 Grzelak T, Woźniak U, Czyżewska K. The influence of natural feeding on human health: short-and long-term perspectives. Prz Gastroenterol. 2014;9:4-10. e reduz as taxas de internação por essas infecções.44 Boccolini CS, Carvalho ML, Oliveira MI, Boccolini PM. O papel do aleitamento materno na redução das hospitalizações por pneumonia em crianças brasileiras menores de 1 ano. J Pediatr (Rio J). 2011;87:399-404.,55 Boccolini CS, Boccolini P, de M, de Carvalho ML, de Oliveira MI. Padrões de aleitamento materno exclusivo e internação por diarréia entre 1999 e 2008 em capitais brasileiras. Cien Saúde Colet. 2012;17:1857-63. A composição do leite materno é adaptada à idade gestacional do recém-nascido.66 Barros MD, Yamashiro E, Barreto O, Sampaio MM. Características do leite de mães de recém-nascidos de baixo peso. Pediat (São Paulo). 1984;6:53-7. A alimentação de prematuros com leite humano aumenta o crescimento cerebral e os quocientes de inteligência, repercute no desenvolvimento cognitivo77 Lucas A, Morley R, Cole TJ, Lister G, Leeson-Payne C. Breast milk and subsequent intelligence quotient in children born preterm. Lancet. 1992;339:261-4.,88 Isaacs EB, Fischl BR, Quinn BT, Chong WK, Gadian DG, Lucas A. Impact of breast milk on IQ, brain size and white matter development. Pediatr Res. 2010;67:357-62. e reduz a incidência de enterocolite necrotizante.99 Meinzen-Derr J, Poindexter B, Wrage L, Morrow AL, Stoll B, Donovan EF, et al. Role of human milk in extremely low birth weight infants' risk of necrotizing enterocolitis or death. J Perinatol. 2009;29:57-62. Como a alimentação com leite humano é ainda mais importante para os recém-nascidos de risco, o Ministério da Saúde ressalta sua importância para a sobrevivência desses.1010 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas. Atenção à saúde do recém-nascido: guia para os profissionais de saúde: cuidados gerais. Brasília: Ministério da Saúde; 2011. v.1 (Série A. Normas e Manuais Técnicos); 2011.

Os bancos de leite humano são unidades especializadas e vinculadas à unidade de terapia neonatal e uma de suas missões é estimular a doação de leite materno com vistas à alimentação dos recém-nascidos de risco internados. São responsáveis pela pasteurização e distribuição de leite humano, que respeita as necessidades do bebê. No entanto, o leite humano coletado pelos BLH ainda não supre a demanda dos recém-natos de risco na maior parte dos estados brasileiros, o que levou o Ministério da Saúde a lançar recentemente uma campanha de incentivo à doação de leite materno, para o cumprimento da meta de aumento de 15% no volume de leite humano coletado no país.1111 Brasil. Ministério da Saúde. Lançada campanha para incentivar doação de leite materno. Available from: http://www.brasil.gov.br/saude/2014/05/lancada-campanha-para-incentivar-doacao-de-leite-materno [accessed 13.09.16]
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Com vistas ao aumento dos estoques de leite materno, em 2007 surgiu uma experiência inovadora no município do Rio de Janeiro. Profissionais de saúde de uma unidade básica, ao observar mães com excesso de produção láctea que desprezavam esse leite, criaram uma estratégia denominada Posto de Recebimento de Leite Humano Ordenhado, em conjunto com uma maternidade que dispunha de banco de leite humano. As nutrizes eram estimuladas a ordenhar no domicílio o leite materno, que era recolhido pela unidade básica e enviado a um banco de leite humano próximo. Em 2010 a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro incorporou essa experiência, investiu na abertura de nove postos de recebimento, que funcionam articulados a bancos de leite humano de referência.1212 Pellegrine JB, Koopmans FF, Pessanha HL, Rufino CG, Farias HP. Educação popular em saúde: doação de leite humano em comunidade do Rio de Janeiro, Brasil. Interface. 2014;18:1499-506.

O presente estudo visou a estimar a prevalência e analisar os fatores associados à doação de leite materno para unidades básicas de saúde no município do Rio de Janeiro. Consideramos que este estudo pode contribuir para a identificação de fatores associados à doação de leite materno, com vistas à implantação de ações que possam gerar um aumento na prevalência dessa doação.

Métodos

Estudo transversal feito em novembro e dezembro de 2013 em unidades básicas de saúde do município. Em setembro e outubro do mesmo ano foi feito estudo-piloto em duas unidades básicas de saúde desse município para teste dos instrumentos e delineamento da logística de campo. Essas duas unidades estavam em processo de implantação de posto de recebimento de leite humano ordenhado e não participaram do trabalho de campo da pesquisa. O estudo foi conduzido por seis entrevistadoras, enfermeiras ou nutricionistas, monitoradas por uma supervisora de campo e pelos pesquisadores que coordenaram essa investigação. Essas entrevistadoras foram recrutadas nas instituições de ensino de vinculação dos pesquisadores e receberam treinamento teórico-prático com carga horária de 20 horas.

As fontes de dados da pesquisa foram questionários aplicados a uma amostra representativa das mães de crianças menores de um ano assistidas pelas nove unidades básicas de saúde dessa cidade que dispunham de Posto de Recebimento de Leite Humano Ordenhado à época do estudo.1313 Von Seehausen MP, Oliveira MIC, Boccolini CS. Fatores associados ao aleitamento cruzado. Cienc Saúde Colet. 2015. Available from: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/artigo_int.php?id_artigo=15396 [accessed 13.09.16].
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As mães foram perguntadas sobre características sociodemográficas, hábitos de vida, contexto familiar, assistência recebida durante o pré-natal, parto e acompanhamento mãe-bebê, alimentação do bebê, bem como sobre a prática de doação de leite materno. O estímulo à doação de leite humano foi aferido pela pergunta: "Alguém te incentivou a doar o seu leite?" A assistência prestada pela unidade básica de saúde ao binômio mãe-bebê foi investigada de várias formas. A ajuda para amamentar foi aferida pela pergunta: "Você acha que esta unidade de saúde está ajudando (ou ajudou) você a amamentar?" Para conhecimento da orientação prestada quanto à ordenha das mamas foi perguntado: "Alguém desta unidade explicou como tirar o leite de peito com as mãos, ou com a bomba, se precisar?"

A coleta e o uso dos dados obedeceram ao disposto na Resolução CNS 466.1414 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília.;2012. Available from: http://www.conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html
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Os dados foram colhidos mediante assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido e as mães foram informadas sobre o objetivo do estudo e a não obrigatoriedade da participação na pesquisa. O estudo foi submetido ao comitê de ética e pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil e aprovado pelo parecer n° 228A/2013, de 18 de agosto de 2013.

A pesquisa original, "Avaliação dos fatores associados à doação de leite materno por usuárias de unidades básicas de saúde da cidade", tomou como base para o cálculo do tamanho da amostra a prevalência de um desfecho estudado, o aleitamento cruzado, estimado em 50% a partir de dados colhidos no estudo piloto, o que resultou em um tamanho amostral de 697 mães a partir de uma demanda média mensal de 1.321 bebês menores de um ano assistidos pelas nove unidades com Posto de Recebimento de Leite Humano Ordenhado. As mães foram sistematicamente selecionadas no momento em que levavam suas crianças com menos de um ano para consulta com a equipe de saúde. Os dados foram coletados em todos os turnos de atendimento de cada unidade de saúde até o número amostral ser atingido.1313 Von Seehausen MP, Oliveira MIC, Boccolini CS. Fatores associados ao aleitamento cruzado. Cienc Saúde Colet. 2015. Available from: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/artigo_int.php?id_artigo=15396 [accessed 13.09.16].
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Esse tamanho amostral foi suficiente para detectar uma razão de prevalência de 1,5, com poder de teste de 78% e alfa de 5%, e teve como parâmetro a prevalência de 7,3% de doação de leite materno (desfecho) encontrada na análise dos dados.

O banco de dados com as informações coletadas foi construído por meio do programa Epi-Info 2000 (Center for Surveillance, Epidemiology & Laboratory Services, GA, EUA) e a análise feita com o programa SPSS (SPSS Statistics para Windows, versão 17.0. IL, EUA).

Foi criado um modelo teórico hierarquizado dos fatores associados à doação de leite materno em unidades básicas que compreendeu variáveis distais: características maternas e contextuais (tabela 1); variáveis intermediárias: características do pré-natal, do parto e do bebê ao nascimento (tabela 2); e variáveis proximais: características da assistência e práticas maternas após o nascimento do bebê, bem como características do bebê (tabela 3).

Tabela 1
Prevalência e razão de prevalência bruta da doação de leite humano para unidades básicas de saúde segundo características maternas e contextuais. Município do Rio de Janeiro, 2013
Tabela 2
Prevalência e razão de prevalência bruta da doação de leite humano para unidades básicas de saúde segundo características do pré-natal, do parto e do bebê ao nascimento. Município do Rio de Janeiro, 2013
Tabela 3
Prevalência e razão de prevalência bruta da doação de leite humano para unidades básicas de saúde segundo a assistência e práticas maternas após o nascimento do bebê e características do bebê. Município do Rio de Janeiro, 2013

Inicialmente foi desenvolvida uma análise univariada para conhecimento da distribuição das variáveis de exposição e desfecho sob investigação e em seguida uma análise bivariada entre cada variável de exposição e o desfecho: a doação de leite materno. No intuito de serem obtidas diretamente as razões de prevalência, optou-se por ajuste pelo modelo de regressão de Poisson com variância substancial.1515 Coutinho LM, Scazufca M, Menezes PR. Métodos para estimar razão de prevalência em estudos de corte transversal. Rev Saúde Publica. 2008;42:992-8.

A regressão seguiu modelo conceitual hierarquizado,1616 Victora CG, Huttly SR, Fuchs SC, Olinto MT. The role of conceptual frameworks in epidemiological analysis: a hierarchical approach. Int J Epidemiol. 1997;26:224-7. as variáveis foram inseridas em bloco. Em primeiro lugar foram analisadas as variáveis distais, em seguida foram inseridas as intermediárias e, por fim, as proximais. Em cada etapa da análise, as variáveis foram ajustadas em relação às outras do mesmo nível e às que apresentaram associação com nível de significância observado menor ou igual a 20% no teste de qui-quadrado (p-valor ≤ 0,20) em níveis anteriores.

O modelo final, usado para estimar medidas de associação com seus respectivos intervalos com 95% de confiança (IC), foi composto pelas variáveis de exposição que obtiveram associação com o desfecho com nível de significância observado menor ou igual a 5% (p-valor ≤ 0,05).

Resultados

Foram entrevistadas 695 mães de crianças menores de um ano nas nove unidades com Posto de Recebimento de Leite Humano Ordenhado e 7,3% das nutrizes haviam doado leite materno às unidades básicas de saúde.

Na análise bivariada, mostraram-se associadas à doação de leite humano (p-valor ≤ 0,20) as variáveis distais: escolaridade materna, paridade e número de moradores na residência (tabela 1), as variáveis intermediárias: local de feitura do pré-natal, tipo de parto e internação prévia do bebê em unidade neonatal (tabela 2) e as variáveis proximais: orientação sobre ordenha das mamas, ajuda da unidade para amamentar, ter sido incentivada a doar leite materno, dúvida ou dificuldade em relação à doação de leite materno, tabagismo, trabalho remunerado em licença maternidade, semestre de vida do bebê, uso de chupeta e uso de mamadeira (tabela 3).

Cabe ressaltar que na assistência após o nascimento do bebê pouco mais da metade das mães foi orientada pela unidade sobre a ordenha das mamas e percebeu a unidade como uma fonte de ajuda para amamentar. Foram incentivadas a doar leite materno pouco menos da metade das mães, foi mais frequente o incentivo oriundo de profissionais da unidade básica. Mais de dois terços das nutrizes não apresentaram dúvidas ou dificuldades em relação à doação. A maioria dos bebês usava mamadeira e pouco menos da metade usava chupeta (tabela 3).

Na análise múltipla, os fatores associados à doação de leite materno foram a característica intermediária "internação do bebê em unidade neonatal" e as características proximais: "orientação sobre ordenha das mamas", "ter recebido ajuda da unidade para amamentar" e "ter sido incentivada a doar leite materno" (tabela 4).

Tabela 4
Razão de prevalência ajustada da doação de leite humano para unidades básicas de saúde. Município do Rio de Janeiro, 2013

Discussão

Menos de um décimo das mães de crianças menores de um ano assistidas por unidades primárias de saúde com Posto de Recebimento de Leite Humano Ordenhado havia doado leite materno. A baixa prevalência de doação observada pode ser devida à incipiência dos Postos de Recebimento de Leite Humano Ordenhado, que ainda implantam ações de incentivo à doação e de recolhimento domiciliar do leite materno.

Os fatores associados à doação foram relacionados à assistência recebida nas unidades básicas de saúde, a saber: "orientação sobre ordenha das mamas", "ter sido incentivada a doar leite materno" e "ter recebido ajuda da unidade para amamentar". Um único fator se associou inversamente à doação, a "internação do bebê em unidade neonatal".

Este é o primeiro artigo a analisar fatores associados à doação de leite humano por nutrizes assistidas por unidades básicas de saúde e tem como população do estudo a população assistida, e não somente as doadoras. Em revisão de literatura sobre a prática de doação de leite humano e seus determinantes foram encontrados apenas dois artigos analíticos, cuja população estudada foi a de doadoras: um investigou os fatores associados à doação regular de leite materno1717 Thomaz AC, Loureiro LV, Oliveira TS, Montenegro NC, Junior ED, Soriano CF, et al. The human milk donation experience: motives, influencing factors, and regular donation. J Hum Lact. 2008;24:69-76. e outro ao volume de leite doado a bancos de leite humano.1818 Osbaldiston R, Mingle LA. Characterization of human milk donors. J Hum Lact. 2007;23:350-7.

Considerando o único fator inversamente associado à doação de leite materno, a internação em unidade neonatal reduziu em 90% a prevalência de doação. A internação de recém-nascidos de risco interfere negativamente tanto na duração do aleitamento materno1919 Gaíva MA, Gomes MM, Scochi CG, Barbeira CB. Aleitamento materno em recém-nascidos internados em UTI neonatal de um hospital universitário de Cuiabá-MT. Pediatr Mod. 2000;36:119-26. quanto no tempo até a primeira mamada,2020 Boccolini CS, Carvalho ML, Oliveira MIC, Leal MC, Carvalho MS. Fatores que interferem no tempo entre o nascimento e a primeira mamada. Cad Saúde Publica. 2008;24:2681-94. possivelmente pelo fato de a força de sucção de um bebê nascido prematuro ou com patologia ser menos intensa do que a de um bebê a termo,2121 Kao AP, Guedes ZC, Santos AM. Características da sucção não-nutritiva em RN a termo e pré-termo tardio. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2011;16:298-303. o que diminui o estímulo de produção de leite. Além disso, pode-se supor que crianças que ficaram internadas em unidade neonatal podem demandar mais cuidados do que crianças nascidas saudáveis, o que deixa as mães menos disponíveis para a doação de leite materno.

A orientação sobre a ordenha das mamas durante o acompanhamento nas unidades básicas de saúde é importante para o manejo da amamentação, para que as mães saibam lidar com o ingurgitamento mamário ou com a baixa produção de leite materno.2222 Giugliani ER. Problemas comuns na lactação e seu manejo. J Pediatr (Rio J). 2004;80:S147-54. Estudo conduzido na Austrália observou que as nutrizes que ordenham suas mamas ficam menos propensas a interromper a amamentação antes dos seis meses de vida do bebê.2323 Win NN, Binns CW, Zhao Y, Scott JA, Oddy WH. Breastfeeding duration in mothers who express breast milk: a cohort study. Int Breastfeed J. 2006;1:28. De forma similar, o presente estudo mostrou que a mãe ter sido orientada a ordenhar esteve associado a uma prática mais de três vezes superior de doação de leite materno.

A ajuda oferecida à nutriz para amamentar se associou a uma prática duas vezes superior de doação de leite materno. Portanto, a ajuda para amamentar não apenas contribui para que a mulher adquira mais segurança nessa ação,2424 André AC, Gomes AL, Pinto KO, Tase TH, Ruocco RM, Santos NO, et al. A vivência da amamentação em "mães de primeira viagem". Mudanças-Psicologia da Saúde. 2006;14:56-73., como também produz outros desdobramentos, como a doação do excesso de leite materno produzido. Estudo qualitativo observou que, na concepção das mães, o apoio para amamentar é constituído por ações disponíveis nos contextos hospitalar, familiar e de trabalho e é um fenômeno que engloba aspectos de incentivo, promoção e proteção à amamentação.2525 Müller FS, Silva IA. Representações sociais de um grupo de mulheres/nutrizes sobre o apoio à amamentação. Rev Lat Am Enfermagem. 2009;:17. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v17n5/pt_09.pdf [accessed 13.09.16].
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Um estudo que objetivou compreender os significados expressos por mulheres usuárias de unidades básicas de saúde acerca do apoio recebido para amamentar identificou como positivos o apoio como incentivo, o apoio no manejo e o apoio como parceria.2626 Oliveira MI, Souza IE, Santos EM, Camacho LA. Avaliação do apoio recebido para amamentar: significados de mulheres usuárias de unidades básicas de saúde do Estado do Rio de Janeiro. Cien Saúde Colet. 2010;15:599-608.

O incentivo à doação foi o fator que se associou com mais intensidade à prática de doação de leite materno, possivelmente pela sua repercussão na motivação da mãe para fazer a ordenha da própria mama para o armazenamento do leite para doação. No entanto, apesar das entrevistas terem sido conduzidas em unidades com Posto de Recebimento de Leite Humano Ordenhado, menos da metade das mães havia sido incentivada a doar leite materno. Da mesma forma, em estudo feito no Distrito Federal, as mães sinalizaram a importância do acesso a informações sobre a doação de leite materno para sua motivação, mas poucas haviam sido incentivadas a praticar a doação.2727 Alencar LC, Seidl EM. Doação de leite humano: experiência de mulheres doadoras. Rev Saúde Publica. 2009;43:70-7.

Fatores proximais, como a idade e a escolaridade materna, não se mostraram associados à doação de leite materno, diferentemente de resultados de estudos conduzidos com doadoras para bancos de leite humano, nos quais a idade jovem se associou a um maior volume de leite doado1818 Osbaldiston R, Mingle LA. Characterization of human milk donors. J Hum Lact. 2007;23:350-7. e a escolaridade alta à doação regular de leite humano.1717 Thomaz AC, Loureiro LV, Oliveira TS, Montenegro NC, Junior ED, Soriano CF, et al. The human milk donation experience: motives, influencing factors, and regular donation. J Hum Lact. 2008;24:69-76. No presente estudo, a ausência de associação encontrada em relação à escolaridade materna pode se dever à homogeneidade da população pesquisada, enquanto usuárias do Sistema Único de Saúde.

Limitações do presente estudo devem ser apontadas. O desenho epidemiológico transversal empregado dificulta o estabelecimento de relações temporais de causalidade entre os fatores investigados e o desfecho. Alguns resultados podem estar superestimados devido à possibilidade de viés de memória: mães doadoras de leite materno podem se recordar mais frequentemente do incentivo recebido da unidade para a doação ou da ajuda prestada para amamentar. Cabe ressaltar, ainda, que no presente estudo as mães foram caracterizadas como doadoras e não doadoras, independentemente da frequência de doações feitas e do volume de leite doado. Estudos futuros que explorem esses aspectos poderão trazer novas contribuições para a temática.

Conclui-se que a internação prévia do bebê em unidade neonatal apresentou associação inversa com a doação de leite materno e que o incentivo, a ajuda e as orientações prestadas foram fatores fundamentais para a doação de leite materno, o que evidencia o papel das unidades básicas de saúde para a promoção dessa prática.

Recomenda-se a capacitação dos profissionais de saúde da rede primária de saúde em cursos de aconselhamento em amamentação,2828 Brandão EC, Silva GR, Gouveia MT, Soares LS. Caracterização da comunicação no aconselhamento em amamentação. Rev Eletr Enf. 2012;14:355-65. Available from: http://dx.doi.org/10.5216/ree.v14i2.12748 [accessed 13.09.16].
http://dx.doi.org/10.5216/ree.v14i2.1274...
da Iniciativa Unidade Básica Amiga da Amamentação2929 Oliveira MI, Camacho LA, Souza IE. Promoção, proteção e apoio à amamentação na atenção primária à saúde no Estado do Rio de Janeiro, Brasil: uma política de saúde pública baseada em evidência. Cad Saúde Publica. 2005;21:1901-10. e/ou da Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil,3030 Venâncio SI, Giugliani ER, Silva OL, Stefanello J, Benicio MH, Reis MC, et al. Association between the degree of implementation of the Brazilian breastfeeding network and breastfeeding indicators. Cad Saúde Publica. 2016;32:e00010315. Essas capacitações instrumentalizam seus participantes em habilidades de ouvir e aprender, desenvolver confiança e apoio no manejo do aleitamento materno e no desenvolvimento de fluxos de trabalho adequados que podem contribuir não apenas para aumentar a duração do aleitamento materno, como também para promover a doação de leite materno. Contribuiria, assim, para o alcance da meta de aumento de 15% no volume de leite humano coletado, destinado aos recém-natos de risco,1111 Brasil. Ministério da Saúde. Lançada campanha para incentivar doação de leite materno. Available from: http://www.brasil.gov.br/saude/2014/05/lancada-campanha-para-incentivar-doacao-de-leite-materno [accessed 13.09.16]
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e para a queda da mortalidade neonatal.99 Meinzen-Derr J, Poindexter B, Wrage L, Morrow AL, Stoll B, Donovan EF, et al. Role of human milk in extremely low birth weight infants' risk of necrotizing enterocolitis or death. J Perinatol. 2009;29:57-62.

  • Como citar este artigo: Meneses TM, Oliveira MI, Boccolini CS. Prevalence and factors associated with breast milk donation in banks that receive human milk in primary health care units. J Pediatr (Rio J). 2017;93:382-8.
  • ☆☆
    Trabalho vinculado à Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.
  • Financiamento
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj, processo E-26/111.508/20).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2016
  • Aceito
    22 Set 2016
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