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Material inadequado para raquianestesia: até quando?

CARTAS AO EDITOR

Material inadequado para raquianestesia. Até quando?

Luiz Eduardo Imbelloni, TSA; M. A. Gouveia, TSA; Elaine Aparecida Félix Fortis, TSA

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Luiz Eduardo Imbelloni, TSA M. A. Gouveia, TSA Elaine Aparecida Félix Fortis, TSA Av. Epitácio Pessoa, 2356/203 22471-000 Rio de Janeiro, RJ

Senhor Editor,

Os tumores epidermóides do canal medular são extremamentes raros, não existindo qualquer relato desta complicação na Revista Brasileira de Anestesiologia. Já estamos em pleno século XXI, e o uso de material descartável para a raquianestesia é inquestionável 1. Entretanto, muitos anestesiologistas continuam empregando material inadequado ou fazendo bloqueio de nervos periféricos com agulhas hipodérmicas para injeções musculares e venosas. Para penetrar no sistema nervoso no neuro-eixo é necessário passar por oito barreiras antes de se obter LCR que são: 1) pele; 2) tecido celular subcutâneo; 3) ligamento supra-espinhal; 4) ligamento interespinhal; 5) ligamento amarelo; 6) espaço extradural; 7) duramáter; 8) aracnóide-mater; e, 9) espaço leptomeníngeo 2. A agulha ideal de raquianestesia deve ser descartável, facilitar a identificação do espaço subaracnóideo e a injeção do anestésico local, não se deformar, não causar outras doenças, além de possuir mandril. O material de raquianestesia é classificado como crítico 1. É, portanto, de alto risco e por isso deve ser de uso único 1. Em editorial de 1977 3 acreditava-se que os tumores epidermóides tenderiam a desaparecer com o uso de agulhas descartáveis.

Tumores epidermóides espinhais são raros. Podem ser congênitos ou iatrogênicos. Os iatrogênicos originam-se da implantação de células epiteliais dentro do canal espinhal durante punções lombares diagnósticas 4-6, terapêuticas 7-9, exames de mielografias 10, cirurgia de coluna, em particular na correção de meningoceles 11, nos acidentes com armas de fogo 12 e após anestesias praticadas na raquianestesia 9,13,14. Estas complicações podem acontecer se não utilizarmos material de punção adequado. Em revisão de 90 casos de tumores epidermóides realizada em 1962, 41% foram causados por iatrogenia de diferentes causas 13. Reina e col. em 1996, mostraram mais de 100 casos publicados na bibliografia de tumores epidermóides de causa iatrogênica 15, sendo que de 1977 a 1995 foram comunicados 29 novos casos 15.

O tumor epidermóide iatrogênico é resultado de punções lombares ou caudais realizadas com agulhas sem mandril ou com agulhas com mandril inadaptados. A punção da pele, com agulhas inadequadas carreia fragmentos epidérmicos para dentro do canal espinhal 16. Ao analisar punções em cadáveres, com agulhas peridural e raquidiana, foi observada incidência de fragmentos epidérmicos de 45% com Tuohy 16G e 30% com Tuohy 17G; 15% com Quincke 22G e 30% com Sprotte 22G 17. Da mesma forma, estudo com cânulas de punção venosa empregadas para bloqueio caudal em 50 crianças, demonstrou tecido epidermóide em 33%, tecido gorduroso em 67% e sangue em 26% dos casos 18. O desenvolvimento de tumores iatrogênicos foi demonstrado experimentalmente por diferentes grupos de investigadores 19,20. O uso de escalpe foi proposto para facilitar as punções lombares diagnósticas em neonatos com objetivo de simplificação da técnica 21. Esta sugestão teve muita aceitação entre os neonatologistas, mas foi bastante criticada por outros autores 22,23, que a consideraram muito perigosa pela possibilidade de introdução de fragmentos epiteliais dentro do canal espinhal.

O período de silêncio até apresentação de sintomas pode durar de 2 a 10 anos. O intervalo mais comum gira entre 4 e 8 anos, embora existam casos com até 20 e 41 anos de intervalo entre a causa e os sintomas 15. A localização dos implantes de fragmentos cutâneos é preferencialmente na região lombar, mas pode aparecer no nível torácico ou sacral. O seu prognóstico é bom e o tratamento é cirúrgico. Se o tumor for ressecado sem complicações, o paciente pode recuperar progressivamente o deficit motor.

Reina e col. concluíram seu trabalho de revisão afirmando que “atualmente, considerando todos os tumores epidermóides iatrogênicos comunicados, pode-se interpretar como uma conduta imprudente o uso de agulhas sem mandril para realizar punções lombares pelo potencial problema que podem ocasionar” 15. Alves Neto e col., em Anestesia e Bioética, terminou dizendo que a solução é lançar mão da tolerância e, principalmente a prudência para assegurar o respeito à autonomia do paciente 24.

REFERÊNCIAS

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25. Alves Neto O, Garrafa V - Anestesia e bioética. Rev Bras Anestesiol, 2000;50:178-188.

  • Endereço para correspondência
    Luiz Eduardo Imbelloni, TSA
    M. A. Gouveia, TSA
    Elaine Aparecida Félix Fortis, TSA
    Av. Epitácio Pessoa, 2356/203
    22471-000 Rio de Janeiro, RJ
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2003
    • Data do Fascículo
      Abr 2003
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