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Manoel Duarte

NECROLÓGIO

Manoel Duarte (* 1937 - 2003 †)

De certo modo, a minha oração:

Vim pelo caminho difícil,

A linha que nunca termina,

A linha que bate na pedra,

A palavra quebra uma esquina,

Mínima linha vazia,

A linha, uma vida inteira,

Palavra, Palavra minha.

Paulo Leminski

Figura 1


Revista Brasileira de Anestesiologia, 2004; 54: 2: 283 - 286

Manoel Duarte (* 1937 - 2003 †)

É difícil reduzir a vida de um guerreiro a duas ou três cenas. Corre-se o risco das enumerações díspares e da quebra de solução de continuidade.

Quando ele aqui chegou - dizem os mais antigos - arrastando a pele morena, o cenho franzido, a dicção rouca e atropelada e ainda detendo as dificuldades dos humildes, talvez não imaginasse que um dia seria um marco: o ponto de referência, ordinariamente de pedra ou de granito oblongo, igual ao que se põe nos limites do mundo.

Nossos caminhos se cruzaram bem depois e só a nostalgia de relembrar o que passou dá a medida exata da força do resgate.

De repente, estou ali diante dele dando os meus primeiros passos. Eu com aquele jeito espantado do recém-formado que começava a descobrir o mundo e ele já cultivando, em pleno furor, a fome de vencer obstáculos, que fez dele uma figura ímpar.

Desde então estivemos sempre juntos. Um relacionamento medido entre altos e baixos, mas sempre com os sentimentos de amizade e admiração falando mais alto.

E não poderia ser de outra forma: a fundação da SAERN, da Disciplina de Anestesiologia, da Cooperativa dos Anestesiologistas. A instalação do primeiro Centro de Treinamento em Anestesiologia do estado, a implantação pioneira da Tabela de Honorários da AMB. A organização das primeiras Jornadas Regionais da Especialidade e do primeiro Congresso Brasileiro de Anestesiologia, sediado em Natal. A opção de adotá-lo como o meu guru. Os inúmeros bate-papos com muito uísque e romã.

A confiança de ter sido por ele anestesiado, como também o foi a minha filha.

A lembrança do negociador habilíssimo que, juntamente com alguns poucos, varava as noites em claro discutindo. Das orientações telefônicas, maquinando os passos a serem dados nos inúmeros momentos de crise da nossa associação.

Costumava dizer: "dessa vez é com vocês" mas quando o dia despontava lá estava ele puxando o cordão.

Da constatação de termos visto e compartilhado quase tudo, derivam as expressões amigo e guerreiro.

Os detentores da sua mais absoluta intimidade não ouviram o que eu ouvi: "Sabe de uma coisa? Não estou sofrendo, estou é começando a sentir saudade ...".

Porque se morre, também e a cada instante, de tudo: de amor, alegria, tédio, tristeza, e saudade. Só os Deuses não sentem essas coisas porque são imortais.

O poeta ensina: de tudo fica um pouco; do maço vazio de cigarro ; do teu queixo no queixo de tua filha; no pires de porcelana, o dragão partido; do teu áspero silêncio pouco ficou.

Mas, os mortos não morrem. Eles são como nós, egoístas, só tratam dos seus interesses e se encantam, só para continuarem vivos na nossa lembrança, afeição e bem querer.

Morremos nós, sim, mas de uma saudade que agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor.

Teria mais a contar, muito mais, pois no dia do homem estão os dias do tempo. Desde aquele inconcebível dia inicial do tempo, em que um terrível Deus prefixou os dias e agonias, até aquele outro que o ubíquo rio do tempo torne à sua fonte que é o Eterno, e se apague no presente, o futuro, o ontem, o que agora é meu.

Descanse em paz, meu grande amigo!

José Delfino, TSA

Rua Prof. Antonio Fagundes, 1849

59054-390 Natal, RN

E-mail: delfino@digi.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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