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Dra. Consuelo Plemont Maia * - † 09.12.2006

HOMENAGEM

Dra. Consuelo Plemont Maia

* - † 09.12.2006

Mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria. Dia 9 de dezembro de 2006 morreu Consuelo e com ela morreu um pouco de mim. Consuelo sempre me mostrou que viver é combater, resistir, sobreviver, e ninguém pode fazê-lo indefinidamente. No fim, é preciso morrer, e é esse o único fim que nos é prometido. E a morte constitui, para o pensamento, um objeto necessário e impossível. Necessário, já que toda a nossa vida traz sua marca. Impossível, já que não há nada, na morte, a pensar. Montaigne já disse que a morte não seria "o fim", mas "o ponto final" da vida, seu termo, sua finitude essencial. E voltando novamente a Montaigne, quando ele escreveu numa frase uma das coisas mais bonitas que conheço: "Quero que ajam e que prolonguem os ofícios da vida tanto quanto possível, e que a morte me encontre plantando meus repolhos, mas despreocupado com ela, e mais ainda com o meu imperfeito jardim." Consuelo plantou seu jardim e colheu seus repolhos.

Em 1974, com dois meses de internato na cirurgia do Hospital de Ipanema, descobri que o meu lugar era atrás dos panos. Consuelo me ajudou na primeira grande decisão de minha vida – opção pela Anestesiologia. Sempre pronta a me ouvir e aconselhar-me frente às agruras da nossa profissão e das minhas opções da vida profissional. Em 1975, com 15 dias de residência em anestesiologia no Hospital do IASERJ, concluí que tinha feito a escolha errada para minha formação e o pânico se apoderou de mim. Meu retorno à residência do Hospital de Ipanema se deu outra vez pela interferência de Consuelo junto a Renato Ribeiro. Quase no final de minha residência (era apenas um ano) no ano de 1975, ao vislumbrar a possibilidade de minha contratação, fui designado por ela para ajudá-la na anestesia de Dr. Gilberto, então o maior responsável pelas contratações no INAMPS. Antes da indução da anestesia, já havia sido acertada minha contratação. Visão maternal de Consuelo. Ao lado dela comecei minha vida e estava mais interessado na minha projeção profissional. Sabia que ao cabo de meus estudos o mundo e a realidade nacional na área em que começava permaneceriam intocados. Mas achava que depois de alguns anos de fulgores acadêmicos no exterior e um punhado de publicações em revistas nacionais, a pátria glorificada premiaria meus triunfos com algo mais do que louros. Para ser simples e objetivo, estava completamente errado. Havia aprendido também que o prestígio acadêmico é quase sempre produto de oportunidades mais que do mérito e, por isso, não havia diferenças entre quem já escrevera inúmeros trabalhos ou tinha feito estágio no exterior e quem ainda estava preparando seu primeiro artigo individual, ou nunca o prepararia. Levei tempo para aprender, e posso dizer com toda certeza que não foi por falta de ensinamentos. Uma pessoa goza de maior ou menor liberdade conforme o espaço que lhe dão. Fui sempre livre para agir, pois nada nem ninguém me impediram. Consuelo sempre meu proporcionou esse espaço de liberdade, mas que essa liberdade é menos democrática do que uma multidão. Ensinou-me também que a sabedoria não pertence a ninguém e sempre me estimulou a fazer trabalhos científicos dizendo que não se deve buscar sempre a originalidade.

Durante muito tempo pensei realmente que o meu lugar fosse naquele hospital onde aprendi tudo com ela. Os meus pares sabiam que me preparei e ambicionava ocupar o lugar de Consuelo. Quando não fui escolhido, não vou negar que naquele tempo o meu coração ficou despedaçado. E vivi um período de completa conturbação interior, sobretudo em relação a Consuelo, pela minha exclusão. Passados alguns anos em que fui preterido, percebi que minha querida Chefa tinha uma visão maior para o meu futuro e estava completamente certa. Durante toda minha existência, fiz saber a ela a importância que teve a perda do cargo tão almejado na minha vida. Pois saí de um Serviço de Anestesiologia pronto, realizado e construído, para uma realização própria, desafiando o cotidiano optando tão somente pela Medicina Privada e o ensino da anestesia regional. Solidariedade e generosidade não são incompatíveis: ser generoso não impede ser solidário; ser solidário não impede ser generoso. Consuelo me ensinou tanto a solidariedade quanto a generosidade.

Woody Allen disse: "Como eu seria feliz se fosse feliz." Portanto, ele nunca o é, nem pode ser, já que está sempre esperando ser. Para mim Consuelo foi a antítese dessa frase: ela foi feliz. Eu me apaixono por pessoas, pinturas, palavras, livros ou qualquer outra coisa e demoro demais a me desapaixonar. Uma mulher como Consuelo não se encontra todo dia. Quem poderia, além dela, reunir tantas condições para brilhar e para enxergar os erros, a injustiça, a hipocrisia dos costumes, a mesquinhez dos sucessos fáceis ou do discurso demagógico. Ela tinha tudo para brilhar e para ser odiada, invejada e incompreendida. Ela juntava ao saber a sabedoria, e à sabedoria, a paixão. Cada um de nós se apaixona por alguém que espelha o que gostaria de ser. E essa paixão que eu nutro por Consuelo não acabou com o seu passamento para outra vida, ao contrário, aumenta cada vez mais, quando a cada degrau que eu subo na vida descubro a importância que ela teve na minha formação. Morre-se só, porque ninguém pode morrer em nosso lugar.

Consuelo me ensinou que os valores nunca triunfam: o combate pode sempre recomeçar. Devo concluir que a trajetória do saber transcende às artimanhas de autopromoção, às rivalidades ou às alianças mais ou menos mafiosas entre nossos pares de um mesmo setor. Como dizia Montaigne, "não há nada mais belo e mais legítimo do que o homem agir bem e devidamente". Se a virtude pode ser ensinada, como creio, é mais pelo exemplo do que pelos livros. A grande virtude de Consuelo foi ter mostrado o caminho para a maioria de seus alunos, agindo bem e corretamente. Aprendi com Consuelo que agir bem é, antes de mais nada, fazer o que se deve fazer (ter polidez), depois o que se pode fazer (ter moral), enfim, às vezes, é fazer o que se quer, por pouco que se ame (ter ética). Ela me mostrou que a vida vale a pena ser vivida.

Luiz Eduardo Imbelloni, TSA

E-mail: dr.imbelloni@terra.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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