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Posição do paciente anestesiado e perfusão cerebral: catástrofes previsíveis

EDITORIAL

Chegou à sala de recuperação pós-anestésica (SRPA) com pressão arterial 113 ´ 60 mmHg mas inconsciente, permanecendo intubada. Foi administrada naloxona 0,1 mg por via venosa mas ela não respondeu e não movimentou as extremidades. Outra dose de naloxona 0,1 mg foi injetada 35 minutos após a admissão à SRPA, sem resposta. A seguir foram sucessivamente administradas mais três doses de naloxona e duas de fisostigmina, sem resultado. A intubação traqueal foi mantida, com oxigenação perfeita. A paciente permaneceu sem resposta a comando verbal e estímulo doloroso, com reflexos diminuídos bilateralmente. A avaliação neurológica sugeriu uma síndrome diencefálica, possivelmente infarto cerebral.

A tomografia axial computadorizada do crânio, a princípio, foi normal, mas no quinto dia pós-operatório acusou edema cerebral e oclusão da cisterna. A ressonância magnética realizada uma semana depois mostrou alterações em ambos os hemisférios cerebrais sugestivas de infartos corticais, abrangendo os lobos anterior e temporal, sem edema ou hérnia significativos. Em nenhuma ocasião houve evidência de sangramento intracraniano. Após duas semanas, apresentava escore 3 na escala de coma de Glasgow. Tinha reflexos corneanos, hiper-reflexia, hipertonia muscular e ausência de resposta a estímulo doloroso nas quatro extremidades. O diagnóstico foi de estado vegetativo permanente.

Esse caso dramático ilustra a importância do posicionamento do paciente anestesiado para procedimento cirúrgico. A "cadeira de praia" permite que o paciente permaneça sentado em ângulos que variam de 30º a 90º acima do plano horizontal e é ideal para procedimentos artroscópicos no ombro, evitando alterações da anatomia intra-articular e facilitando o acesso do cirurgião, ao contrário do que ocorre com a posição de decúbito lateral.

Não obstante, alterações importantes acontecem quando o paciente assume a posição sentada, notadamente redução de pressão arterial média (PAM), pressão venosa central, volume sistólico, débito cardíaco e PaO22. No indivíduo não-anestesiado, essas alterações são compensadas por aumento da resistência vascular sistêmica que pode ser da ordem de 30% a 60% 3. Contudo, essa resposta é bloqueada pelo efeito vasodilatador dos anestésicos que, além disso, podem diminuir também o débito cardíaco. A pressão de perfusão cerebral (PPC) reduz-se em cerca de 15% na posição sentada no paciente não-anestesiado 2, podendo diminuir mais ainda durante a anestesia por causa da vasodilatação e da redução do retorno venoso.

São clássicas as observações de Enderby 4 de que a pressão arterial sistólica (PAS) sofre um decréscimo de 0,8 mmHg por 1,0 cm de elevação da região considerada no plano vertical em relação ao nível do coração. Como a PAM é diretamente proporcional à PAS, é óbvio que a simples elevação da cabeça em relação ao nível do coração acarreta diminuição da PAM no território intracraniano, mais acentuada durante anestesia pelos motivos já apontados.

Por sua vez, a PPC depende diretamente da PAM, segundo a equação:

PPC = PAM PVCe* * PVCe = Pressão Venosa Central, valor normal @ 8 mm Hg

É clássico também o conceito de que o mecanismo de auto-regulação do fluxo sangüíneo cerebral (FSC) tende a manter constante esse fluxo entre os valores de PAM de 50 a 150 mmHg 5. Quando a PAM diminui abaixo de 50 mmHg, o mecanismo de auto-regulação deixa de funcionar e o FSC diminui linear e perigosamente com a PPC.

Em função dessas considerações, a manutenção da PAM em valores não-inferiores a 50 mmHg tem sido reconhecida como limite de segurança em anestesia hipotensiva com finalidade de redução do sangramento perioperatório 6.

Nesse ponto, duas considerações importantes devem ser feitas.

Em primeiro lugar, na posição sentada a PAM ao nível do encéfalo é menor do que aquela medida no membro superior na posição supina, exatamente em função da observações de Enderby já mencionadas 4. Muitas vezes, essa diferença é ignorada pelo anestesiologista, o que pode colocar em risco a perfusão cerebral adequada durante o procedimento na posição sentada.

Em segundo lugar, o limite inferior da PAM = 50 mmHg para o mecanismo de auto-regulação do FSC tem sido questionado por alguns autores 7,8, que preferem trabalhar com o valor médio de 80 mmHg, abaixo do qual o mecanismo deixaria de funcionar de forma adequada e o FSC diminuiria, sobretudo nos casos de pacientes hipertensos mal controlados.

No caso em questão, a pressão arterial foi monitorada por método não-invasivo no braço e tudo indica que o gradiente de pressão entre braço e encéfalo foi ignorado. Considere-se a paciente na "cadeira de praia", com um desnível no plano vertical da ordem de 30 cm entre a base do encéfalo (mais elevada) e o coração. Pressão arterial da ordem de 80 ´ 45 mmHg monitorada no braço corresponde à PAM de 56 mmHg. Entretanto, a diferença da PAS entre coração e base do encéfalo em virtude da posição mais elevada desta, é a da ordem de 24 mmHg, o que traz a PAS na base do encéfalo para 56 mmHg e a PAM para 48 mmHg, isto sem considerar provável alteração também da PAD. Na porção cefálica do córtex cerebral, mais elevada do que a base do encéfalo, deve-se adicionar uma distância aproximada de mais 10 cm em relação ao nível do coração, o que traria a PAS para 48 mmHg e a PAM para 43 mmHg, na mesma situação.

A análise desses números é coerente com o quadro final da paciente em questão. A tomografia axial computadorizada no quinto dia pós-operatório mostrou edema cerebral e oclusão da cisterna; a ressonância magnética indicou infartos corticais em ambos os hemisférios, mas sem nenhuma evidência de sangramento intracraniano. As lesões foram, portanto, compatíveis com hipoperfusão cerebral ocorrida no intra-operatório. Ressalte-se o fato de que a paciente foi anestesiada com isoflurano, um anestésico com conhecidas propriedades vasodilatadoras, o que certamente dificultou um possível aumento da resistência vascular sistêmica, compensatório da diminuição da PAM e dos outros parâmetros circulatórios já citados, provocada pela posição sentada.

As lições de um quadro catastrófico, como o descrito, devem ser transpostas para outras situações em que a intervenção cirúrgica é realizada em céfalo-aclive e o cirurgião solicita técnica anestésica hipotensiva para reduzir o sangramento operatório.

Uma delas é a realização de plástica de mama na posição sentada, com anestesia peridural e sedação. Nesse caso, a diminuição da PAM no encéfalo imposta pelo céfalo-aclive dificilmente será compensada pelo aumento da resistência vascular sistêmica, uma vez que o bloqueio peridural (assim como o isoflurano no quadro descrito) tende a provocar vasodilatação e redução dessa resistência. Sob sedação, é difícil para o anestesiologista surpreender sinais de hipoperfusão cerebral durante o procedimento e a catástrofe pode tornar-se patente apenas no pós-operatório.

O conhecimento das alterações fisiológicas relacionadas com a posição sentada bem como dos efeitos da gravidade sobre a pressão arterial (e portanto a perfusão) no encéfalo, é fundamental para a prevenção de complicações neurológicas graves em procedimentos cirúrgicos realizados nessa posição, qualquer que seja a técnica anestésica empregada.

Unitermos: ANESTESIA, Geral; COMPLICAÇÕES: lesão neurológica; posicionamento.

José Roberto Nociti, TSA

Membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Anestesiologia

Vice-Presidente da World Federation of Societies of Anaesthesiologists

Responsável pelo CET-SBA Santa Casa de Misericórdia de Ribeirão Preto, SP

  • 01. Cullen DJ, Kirby RR Beach chair position may decrease cerebral perfusion. APSF Newsletter 2007;22:25-27.
  • 02. Warner MA, Martin JT Patient Positioning, em: Barash PG, Cullen BF, Stoelting RK Clinical Anesthesia, 4th Ed, Philadelphia, Lippincott Williams & Wilkins, 2001;639-665.
  • 03. Gauer OH, Thron HL Postural Changes in the Circulation, em: Hamilton WF, Dow P Handbook of Physiology. Washington DC, American Physiological Society, 1965; v.3, sect. 2:2409.
  • 04. Enderby GEH Postural ischaemia and blood pressure. Lancet, 1954;1:185.
  • 05. Michenfelder JD Anesthesia and the Brain. New York, Churchill Livingstone, 1988;94-113.
  • 06. Thompson GE, Miller RD, Stevens WC Hypotensive anesthesia for total hip arthroplasty: a study of blood loss and organ function (brain, heart, liver, and kidney). Anesthesiology, 1978; 48:91-96.
  • 07. Drummond JC The lower limit of autoregulation: time to revise our thinking? Anesthesiology, 1997;86:1431-1433.
  • 08. Drummond JC, Patel PM Neurosurgical Anesthesia, em: Miller RD Anesthesia, 5th Ed, Philadelphia, Churchill Livingstone, 2000;1895-1933.
  • Posição do paciente anestesiado e perfusão cerebral: catástrofes previsíveis

    Cullen e Kirby relataram recentemente 1 o caso de uma paciente submetida à artroscopia do ombro sob anestesia geral, que sofreu uma complicação catastrófica e terminou em estado vegetativo permanente. Tinha 47 anos, sem problemas de saúde, com pressão arterial pré-operatória 125 ´ 83 mmHg. Recebeu como medicação pré-anestésica meperidina 50 mg, hidroxizina 40 mg e glicopirrolato 0,2 mg por via intramuscular. A indução da anestesia foi feita com propofol 200 mg, succinilcolina 100 mg e lidocaína 30 mg por via venosa, seguida de intubação traqueal. Como apresentasse um episódio hipertensivo, recebeu 50 mg de labetalol por via venosa. A anestesia foi mantida com isoflurano 2,0%, óxido nitroso 60,0% e oxigênio. A paciente foi colocada na posição de "cadeira de praia" para a realização do procedimento. Vinte minutos após o início, a pressão arterial diminuiu para 100 ´ 60 mmHg e em seguida para 80 a 90 mmHg (sistólica), assim permanecendo até o final da intervenção cirúrgica. A SatO2 manteve-se em 100% e a PETCO2 em aproximadamente 30 mm Hg durante todo o procedimento.
  • *
    PVCe = Pressão Venosa Central, valor normal @ 8 mm Hg
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008
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