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Paraplegia após revascularização cirúrgica do miocárdio: relato de caso

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: Os avanços ocorridos na Anestesiologia permitiram melhores índices de segurança. Várias técnicas e agentes são utilizados visando controlar a resposta hemodinâmica e minimizar os efeitos adversos do estimulo cirúrgico em pacientes submetidos a procedimentos cardíacos. RELATO DO CASO: Paciente de 70 anos, masculino, 1,74 m, 75 kg, ASA III, e NYHA II. Portador de dislipidemia, diabetes mellitus tipo II e hipertensão arterial controladas; tabagismo, enfermidade vascular periférica e história de infarto agudo do miocárdio há 20 anos. O paciente foi submetido a revascularização com artéria mamária interna esquerda e enxertos de safena com pinçamento intermitente da aorta em circulação extracorpórea. Durante as primeiras 24 horas na UTI apresentou eventos de instabilidade hemodinâmica, hipotensão súbita e fibrilação atrial. Após 26 horas do final do procedimento cirúrgico, o paciente estava acordado, hemodinamicamente estável e com boa dinâmica respiratória quando foi extubado. O paciente estava comunicativo, orientado, porém com imobilidade e reflexos abolidos nos membros inferiores. Na avaliação neurológica: pares de nervos cranianos sem alteração, ausência de queixa de dor de qualquer tipo da cintura pélvica para baixo, preservação da sensibilidade superficial e profunda, perfusão distal adequada sem edemas, e paraplegia flácida na região abaixo de T8. Exame de ecocardiografia sem alterações. A tomografia computadorizada da coluna lombo-sacra, não mostrou massa compressiva no espaço epidural ou adjacente. CONCLUSÃO: A síndrome da artéria espinhal anterior, deve ser sempre considerada nos procedimentos de manipulação da aorta. A prevenção, particularmente nos pacientes de risco é necessária. A tomografia computadorizada é importante para o diagnóstico diferencial e a ressonância magnética para a localização da lesão.

CIRURGIA, Cardíaca; COMPLICAÇÕES; TÉCNICAS ANESTÉSICAS, Regional


BACKGROUND AND OBJECTIVES: Developments in anesthesiology have improved safety indices. Several techniques and agents are used to control the hemodynamic response and minimize adverse effects triggered by surgical stimuli in patients undergoing cardiac procedures. CASE REPORT: This is a 70 years old male patient, 1.74 m, 75 kg, ASA III, and NYHA II. The patient had controlled dyslipedemia, type II diabetes mellitus, and hypertension; history of smoking, peripheral vascular disease, and myocardial infarction 20 years ago. The patient underwent revascularization with the left internal mammary artery and saphenous grafts with extracorporeal circulation with intermittent clamping of the aorta. During the first 24 hours in the ICU, the patient developed hemodynamic instability, sudden hypotension, and atrial fibrillation. Twenty-six hours after the end of the surgery, the patient was awake, hemodynamically stable, and with good respiratory dynamics, being extubated. The patient was talkative and oriented, but immobile and negative reflexes in the lower limbs. Neurological evaluation showed: cranial nerves without changes, no complaints of pain below the hips, preserved superficial and deep sensitivity, adequate distal perfusion without edema, and flaccid paraplegia below T8. The echocardiogram did not show any changes. CT scan of the lumbosacral spine was negative for compressive mass in the epidural space or adjacent to it. CONCLUSION: Anterior spinal artery syndrome should be considered in procedures with manipulation of the aorta. Prevention, especially in patients at risk, is necessary. Computed tomography, for the differential diagnosis, and MRI, to localize the lesion, are important.

ANESTHETIC TECHNIQUE, Regional; COMPLICATIONS; SURGERY, cardiac


JUSTIFICATIVA Y OBJETIVOS: En las últimas décadas, los avances que se han dado en anestesiología resultaron en una reducción de los indicadores de morbilidad y mortalidad. En ese contexto, varias técnicas y agentes anestésicos han sido utilizados para controlar la respuesta hemodinámica y minimizar los efectos perjudiciales provenientes del estimulo quirúrgico en pacientes sometidos a procedimientos cardíacos. En cirugía cardíaca, la asociación de la anestesia regional a la anestesia general, ha sido motivo de muchas controversias entre los anestesistas, además de haber promovido muchos estudios en los últimos años. El surgimiento de las complicaciones neurológicas, es una situación devastadora que puede ocurrir después de una cirugía cardiovascular. En este artículo, relatamos un caso de paraplejia ocurrida en un paciente de 70 años, del sexo masculino, y después de una cirugía de revascularización del miocardio añadiéndosele opioide subaracnoideo a la anestesia general.

ANESTESIA, Combinada; CIRUGÍA, Cardíaca; COMPLICACIONES


INFORMAÇÃO CLÍNICA

Paraplegia após revascularização cirúrgica do miocárdio. Relato de caso* * Recebido do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, São Paulo, SP

Caetano Nigro Neto, TSAI; Milton Patricio Chango IzaII; Maria Angela Tardelli, TSAIII

IMédico Associado da Clinica de Anestesia São Paulo; Coordenador do Serviço de Anestesia do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia

IIEspecialista de Anestesia Cardiovascular pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia; Anestesiologista em Quito, Equador

IIIProfessora Adjunta da Disciplina de Anestesiologia Dor e Terapia Intensiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr. Caetano Nigro Neto Rua Peixoto Gomide, 502/173-B Jardim Paulista 01409-000 São Paulo, SP E-mail: caenigro@uol.com.br

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS: Os avanços ocorridos na Anestesiologia permitiram melhores índices de segurança. Várias técnicas e agentes são utilizados visando controlar a resposta hemodinâmica e minimizar os efeitos adversos do estimulo cirúrgico em pacientes submetidos a procedimentos cardíacos.

RELATO DO CASO: Paciente de 70 anos, masculino, 1,74 m, 75 kg, ASA III, e NYHA II. Portador de dislipidemia, diabetes mellitus tipo II e hipertensão arterial controladas; tabagismo, enfermidade vascular periférica e história de infarto agudo do miocárdio há 20 anos. O paciente foi submetido a revascularização com artéria mamária interna esquerda e enxertos de safena com pinçamento intermitente da aorta em circulação extracorpórea. Durante as primeiras 24 horas na UTI apresentou eventos de instabilidade hemodinâmica, hipotensão súbita e fibrilação atrial. Após 26 horas do final do procedimento cirúrgico, o paciente estava acordado, hemodinamicamente estável e com boa dinâmica respiratória quando foi extubado. O paciente estava comunicativo, orientado, porém com imobilidade e reflexos abolidos nos membros inferiores. Na avaliação neurológica: pares de nervos cranianos sem alteração, ausência de queixa de dor de qualquer tipo da cintura pélvica para baixo, preservação da sensibilidade superficial e profunda, perfusão distal adequada sem edemas, e paraplegia flácida na região abaixo de T8. Exame de ecocardiografia sem alterações. A tomografia computadorizada da coluna lombo-sacra, não mostrou massa compressiva no espaço epidural ou adjacente.

CONCLUSÃO: A síndrome da artéria espinhal anterior, deve ser sempre considerada nos procedimentos de manipulação da aorta. A prevenção, particularmente nos pacientes de risco é necessária. A tomografia computadorizada é importante para o diagnóstico diferencial e a ressonância magnética para a localização da lesão.

Unitermos: CIRURGIA, Cardíaca: Revascularização do miocárdio; COMPLICAÇÕES: paraplegia; TÉCNICAS ANESTÉSICAS, Regional: raquianestesia.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, os avanços ocorridos na Anestesiologia resultaram em redução dos índices de morbidade e mortalidade 1. Neste contexto, várias técnicas e agentes anestésicos têm sido utilizados visando controlar a resposta hemodinâmica e minimizar os efeitos deletérios decorrentes do estimulo cirúrgico em pacientes submetidos a procedimentos cardíacos 1,2.

Os bloqueios espinhais (intratecal ou epidural) estão bem estabelecidos em várias especialidades cirúrgicas. Em procedimentos cirúrgicos cardíacos, a associação da anestesia regional à anestesia geral tem sido motivo de muitas controvérsias entre os anestesistas, além de ser motivo de muitos estudos nos últimos anos. Potenciais benefícios das técnicas de anestesia regional incluem intensa analgesia pós-operatória, diminuição da resposta ao estresse cirúrgico e simpatectomia cardíaca torácica 2-4. No entanto, ainda é muito difícil estabelecer as complicações que são decorrentes dessa associação, principalmente devido ao número e à complexidade dos eventos envolvidos no ato cirúrgico.

As complicações neurológicas são situações devastadoras que podem ocorrer após cirurgia cardiovascular. Dentre elas, a paraplegia e a paraparesia, que são déficits neurológicos raros, podem ocorrer após vários tipos de procedimentos cirúrgicos, como reparação de coartação de aorta, toracotomia, lobectomia, pneumectomia, reparação de dissecção da aorta, cirurgia valvar, transplante cardíaco e revascularização do miocárdio.

O objetivo deste artigo foi relatar um caso de paraplegia ocorrida em um paciente após cirurgia de revascularização do miocárdio no qual foi associado opioide subaracnóideo à anestesia geral.

RELATO DO CASO

Paciente de 70 anos do sexo masculino, 174 cm, 75 kg, estado físico ASA III, NYHA II, com os seguintes fatores de risco para doença coronariana: dislipidemia, diabetes mellitus tipo II e hipertensão arterial, todas controladas; tabagismo, enfermidade vascular periférica e história de infarto agudo do miocárdio há 20 anos.

Ao exame físico, o paciente encontrava-se em regular estado geral, orientado no tempo e no espaço, com mucosas coradas, hidratado e em estado nutricional regular. Relatava cansaço aos médios esforços e deambulava com certa dificuldade. Exame neurológico sem alterações aparentes. Ausculta pulmonar e cardíaca sem anormalidades. Abdômen sem anormalidades. Extremidades inferiores com sinais de doença vascular periférica. Pressão arterial de 140 mmHg por 80 mmHg e frequência cardíaca de 80 batimentos por minuto em ritmo regular.

Entre as medicações em uso incluíam-se: losartana, furosemida, aldactone, sinvastatina, metformina, glibenclamida e ácido acetil salicílico. Os hipoglicemiantes orais foram substituídos por insulina 48 horas antes do ato cirúrgico e o ácido acetil salicílico suspenso cinco dias antes do procedimento.

Dentre os exames complementares prévios, os achados mais importantes foram: hematócrito = 34%; hemoglobina = 10,9 mg.dL-1; tempo de protrombina = 14 segundos; tempo de tromboplastina parcial ativado = 32 segundos; plaquetas= 262.000 mm3; sódio = 138 mEq.L-1; potássio = 3,8 mEq.L-1; cálcio = 0,98 mmo.L-1; glicose = 126 mg.dL-1

O ecocardiograma do ventrículo esquerdo evidenciava hipocinesia difusa com incompetência da válvula mitral e fração de ejeção de 40%. O ecodoppler de carótida apresentava obstrução de 50% a 69% do ramo interno da carótida esquerda. Cateterismo cardíaco mostrava artéria circunflexa com lesão de 50% no terço proximal; artéria marginal 1 com lesão de 70% no terço proximal; ramo intermédio com lesão de 60%; artéria descendente anterior com lesão de 40% no terço proximal; artéria diagonal 1 de fino calibre com lesão distal de 40%; coronária direita dominante; ventrículo esquerdo pouco aumentado; hipocinesia moderada inferomediobasal.

Proposta cirúrgica: revascularização das artérias mamária interna esquerda à descendente anterior, aorta à coronária direita e aorta ao ramo intermédio com enxertos venosos da safena anterior, com pinçamento intermitente da aorta em circulação extracorpórea.

Foi feita a monitorização da pressão arterial invasiva em artéria femural esquerda, oximetria de pulso, eletrocardiografia, capnografia, temperatura esofágica e diurese, além de controle seriado de gasometria arterial e tempo de coagulação ativado. Acesso venoso periférico com cateter 16G e colocação de linha central na veia subclávia direita.

A seguir à monitorização, foram realizados bloqueio espinhal com raquianestesia lombar, punção em L3-L4, com agulha 25G tipo Quincke, punção única sem dificuldade e foram administrados 400 µg de morfina e 75 µg de sufentanil em solução fisiológica 0,9% completando para um volume total de 5 mL, segundo o protocolo das recomendações do setor de anestesia para a realização de bloqueio neuroaxial e anticoagulação (Quadro 1).


Após a realização do bloqueio foi iniciada a anestesia geral com oxigenação sob máscara facial com oxigênio a 100% e indução anestésica com midazolam 5 mg, fentanil 250 µg e pancurônio 0,1 mg.kg-1. Foi realizada a intubação traqueal com sonda nº 8 com balonete e a manutenção da anestesia com oxigênio 60% em mistura com ar comprimido, sevoflurano até 1 CAM (concentração alveolar mínima) de fração expirada máxima, além de doses suplementares de 2 µg.kg-1 de fentanil, por via venosa, para manter a pressão arterial média entre 65 e 90 mmHg. Durante a circulação extracorpórea (CEC) foram administrados dois bolus de 3 mg de midazolam e pancurônio 0,1 mg.kg-1.

Durante todo o procedimento cirúrgico o controle da glicemia foi realizado para manter níveis entre 80 e 120 mg.dL-1 com infusão contínua da solução: 10 mL de glicose 50%, 10 mL de cloreto de potássio 19,6% e 20 UI de insulina regular. A velocidade de infusão inicial foi de 2 mL.h-1, sendo aumentada em 1 mL.h-1 quando a glicemia era maior que 120 mg.dL-1, e eram administradas doses em bolus de insulina regular venosa de 5 UI, 10 UI e 15 UI quando a glicemia atingia 200 mg.dL-1, 250 mg.dL-1 e 300 mg.dL-1, respectivamente. A solução de infusão era interrompida quando a glicemia era menor que 80 mg.dL-1.

Durante a CEC foi realizado clampeamento aórtico intermitente mais hipotermia leve com temperatura mantida entre 33ºC e 34ºC, com fluxo arterial de 40 a 60 mL.kg-1.min-1, mantendo a pressão arterial média entre 45 e 85 mmHg. Nos picos hipertensivos foi administrado bolus de nitroprussiato de sódio. A revascularização do miocárdio foi feita com pinçamento intermitente da aorta, com intervalo de dois minutos entre os pinçamentos, sendo realizados três enxertos: mamária interna esquerda à descendente anterior, aorta à coronária direita e aorta ao ramo intermédio. O tempo total de perfusão foi de 80 minutos e o tempo total de clampeamento da aorta de 57 minutos. No final da perfusão foi administrada dopamina na dose de 5 µg.kg-1.min-1 para manutenção de débito cardíaco adequado.

A duração da anestesia foi de 5 horas e do procedimento cirúrgico 3 horas e 50 minutos.

Logo após a chegada do paciente à UTI, ainda sob efeito da anestesia e com suporte de dopamina, a gasometria arterial evidenciou os seguintes dados: hematócrito = 30%, hemoglobina = 9,2 mg.dL-1, pH = 7,33, PCO2 = 34,2, SpO2 = 99,4%, excesso de base = +2,6, bicarbonato de sódio = 18,9 mEq.L-1, sódio = 152 mEq.L-1, potássio = 4,6 mEq.L-1 e cálcio +0,97 mEq.L-1.

Durante as primeiras 24 horas na UTI apresentou eventos de instabilidade hemodinâmica com hipotensão súbita. Para reversão do quadro associaram-se dobutamina 5 µg.Kg-1.min-1 e transfusão simultânea de concentrado de hemácias.

Nesse mesmo período, o paciente apresentou fibrilação atrial, sendo necessário substituir a dobutamina e dopamina por noradrenalina e amiodarona e realizar anticoagulação com 40 mg de heparina de baixo peso molecular a cada 12 horas por via subcutânea.

Após 26 horas do final do procedimento cirúrgico, o paciente estava acordado, hemodinamicamente estável e com boa dinâmica respiratória, quando foi realizada a retirada do tubo traqueal. Nesse momento o paciente estava comunicativo e orientado, porém com imobilidade dos membros inferiores. A avaliação neurológica reportou: pares de nervos cranianos sem alteração, ausência de queixa de dor de qualquer tipo da cintura pélvica para baixo, preservação da sensibilidade superficial e profunda, reflexos abolidos nos membros inferiores com tônus diminuído, perfusão distal adequada sem edemas e paraplegia flácida na região abaixo de T8.

De imediato foi realizado ecocardiograma, o qual descartou a presença de dissecção da aorta, e tomografia computadorizada de coluna lombossacra, que descartou a presença de massa compressiva no espaço epidural ou adjacente.

DISCUSSÃO

A paraplegia após cirurgia de revascularização do miocárdio é um evento raro. A literatura relata sete casos no MEDLI-NE e CINAHL 5. Entretanto, após procedimentos toracoabdominais ou aortoabdominais, a incidência varia de 4% a 80% dependendo da complexidade cirúrgica 5,6. Esse tipo de complicação possui vários fatores desencadeantes relacionados ao paciente e à doença vascular periférica, bem como ao procedimento anestésico cirúrgico. Quanto aos fatores associados ao procedimento anestésico cirúrgico, de forma geral relacionam-se à isquemia medular por pinçamento da aorta, fenômenos de reperfusão, fracasso de reimplantação das artérias intercostais, formação de hematoma epidural após punção intratecal ou epidural, hipotensão aguda, hipoperfusão, efeitos tóxicos de fármacos, utilização de balão intraórtico, embolização, hipocalemia, trauma e coagulopatia 5-8.

Os êmbolos provenientes da manipulação da aorta ascendente com lesões ateroscleróticas ulceradas são uma das causas de ictus em pacientes submetidos a intervenções cardíacas. Em pacientes que serão submetidos à revascularização do miocárdio, a identificação de uma placa móvel de ateroma por ecografia transesofágica (ETE) aumenta em 33% o risco de acidente vascular encefálico, frente a 2,7% naqueles pacientes em que não se detecta. A liberação de êmbolos no momento da injeção da cardioplegia, canulação aórtica, no início ou finalização do bypass cardiopulmonar e clampeamento ou desclampeamento da aorta, especialmente este último, são sugeridos como sendo a origem de mais de 60% dos êmbolos detectados. A enfermidade vascular periférica concomitante à hipertensão arterial, o tabagismo e a ateromatose difusa também são fatores desencadeantes importantes, pois podem gerar uma ruptura de placas com consequente embolização das artérias da medula espinhal 7-11.

Um segundo fator que gera déficits neurológicos durante o período perioperatório é a hipoperfusão. Apesar de ser um evento constante em tais procedimentos cirúrgicos, a duração desse evento e as condições prévias do paciente são decisivas no aumento da morbidade 5-8. Os pacientes idosos são os mais comumente afetados, pois em geral apresentam vários fatores de risco associados, como: hipertensão arterial, diabetes mellitus, doença vascular periférica e antecedente de infarto do miocárdio; condições que favorecem alterações na perfusão arterial microvascular e instabilidade hemodinâmica durante o procedimento anestésico cirúrgico 5,6,12,13. É importante considerar que nos pacientes diabéticos com ateromatose difusa ocorre maior resposta inflamatória sistêmica, que pode resultar com maior frequência na síndrome de vasoplegia associada à CEC 14. Todos esses fatores de risco associados podem contribuir para a isquemia da medula espinhal, resultando em paraplegia 8. Recomenda-se, nos pacientes que apresentam esses fatores de risco associados à senilidade, manter durante anestesia e CEC a pressão arterial média acima de 70 mmHg, objetivando melhor perfusão na microvasculatura medular 14. No caso apresentado, durante vários períodos da cirurgia e do pós-operatório, o paciente apresentou episódios de hipotensão acentuada com duração prolongada, motivo que poderia ter gerado as complicações descritas anteriormente.

A utilização de pontes aortocoronarianas também pode levar a decréscimo da perfusão e da circulação colateral das artérias da medula espinal. Isto se deve geralmente à utilização da artéria mamária interna 5. Além disso, a ruptura das anastomoses dos enxertos coronarianos pode conduzir a um quadro de hipotensão sistêmica que nestes pacientes também geram um maior hipofluxo medular.

É importante salientar que a vascularização medular é muito variável. A medula espinal possui aporte sanguíneo intrínseco, no qual a artéria espinal anterior, a posterior e seus ramos são responsáveis por 74% da irrigação, e aporte extrínseco, no qual as artérias radiculares irrigam as raízes nervosas. As artérias vertebrais proporcionam principal aporte sanguíneo nas regiões cervical, torácica alta, intercostais, lombares e ramos sacros laterais. O segmento toracolombar apresenta um significativo risco de isquemia, pois recebe irrigação somente de uma artéria raquimedular, conhecida como artéria radicular magna ou de Adamkiewicz. Esta é responsável pela vascularização dos dois terços anteriores da medula; em 75% dos indivíduos se origina da artéria intercostal esquerda, na coluna torácica em T10 e T11. Em uma pequena porcentagem, a artéria de Adamkiewicz origina-se em região mais cefálica em T5, tornando-se mais vulnerável a eventos isquêmicos nos procedimentos de cirurgia cardíaca, toracotomia esquerda, cirurgia vascular maior, retroperitonio e nefrectomia esquerda. Uma possível alteração do fluxo pode ocorrer por trauma direto, pressão de perfusão reduzida ou congestão venosa. A mielopatia isquêmica é consequente à interrupção transitória ou permanente da circulação medular, que na maioria das vezes ocorre durante o procedimento cirúrgico, em especial na cirurgia toracolombar, e raramente após cirurgia de revascularização do miocárdio 5,6,15-17.

Outros estudos relatam que, em apenas 5,7% dos casos de cirurgia cardiovascular, as alterações clínicas por redução na irrigação medular são observadas nas primeiras horas ou dias seguintes ao procedimento, estabelecendo que o segmento toracolombar encontra-se submetido a um delicado e permanente balanço de reperfusão 8. Consequentemente, essa região é extremamente sensível a lesões isquêmicas, reperfusão, edema, trauma cirúrgico, dano compartimental secundário à compressão, que podem conduzir à complicação neurológica conhecida como síndrome da artéria espinhal anterior. Esta síndrome caracteriza-se por paraplegia flácida, com nível espinhal no segmento torácico T9, com mínimo déficit sensitivo como resultado de comprometimento do fluxo na região espinhal anterior 5,6,17-20.

A síndrome de Guillain-Barré pode ser descartada como diagnóstico diferencial porque se caracteriza principalmente pela debilidade muscular progressiva, diminuição ou ausência de reflexos de estiramento muscular, debilidade ascendente da musculatura pélvica e braquial, em 50% dos pacientes paralisia facial uni ou bilateral e em alguns casos debilidade oculomotora 21.

A possibilidade de lesões tóxicas por medicamentos injetados no espaço subaracnóideo de forma inadvertida ou por contaminação também pode ser descartada, pois esse tipo de toxicidade cursaria clinicamente com alterações sensitivas e motoras de aparecimento súbito, geralmente com quadro álgico associado 22. A aracnoidite adesiva também é descartada por apresentar hipoestesia progressiva dos membros inferiores com início após dias ou meses da realização da anestesia espinhal 22,23.

A realização de anestesia epidural ou subaracnóidea em pacientes recebendo fármacos que alteram a coagulação sistêmica ou que receberão anticoagulação plena durante a cirurgia, como naquelas que requerem circulação extracorpórea, leva à preocupação com o sangramento persistente no local da punção. A característica anatômica fechada do espaço tanto peridural como subdural pode favorecer a formação de um hematoma local, que, por efeito de massa, venha a comprimir a medula espinhal e as raízes espinhais, trazendo alterações isquêmicas no local. Existem relatos dessa complicação desde o início da utilização das técnicas de bloqueio regional até dias mais recentes 24,25. Um estudo de revisão feito por Vandermeulen em 1994 26 demonstrou que tal fato é uma complicação rara (1:120.000 com a peridural e 1:220.000 para a raquianestesia) e que vários fatores adversos, como a existência prévia de coagulopatias, comorbidades, e o uso de cateter peridural durante a cirurgia, aumentavam o risco de formação de hematoma. Nos anos que sucederam esse estudo, apenas as medicações mais recentes introduzidas na prática clínica é que mudaram os protocolos para a realização segura dos bloqueios espinhais e os cuidados com a formação de hematoma espinhal, fato este que pode ser observado com a divulgação do consenso sobre a realização de bloqueios espinhais e anticoagulação, em 2002 27.

Antes da operação, o paciente encontrava-se clinicamente estável do ponto de vista de coagulação, conforme exames descritos anteriormente, cumprindo os requisitos básicos de nosso protocolo para realização de bloqueio espinhal em procedimento com anticoagulação. Associado a isso e a não observação de massas compressivas na tomografia computadorizada toracolombar, a possibilidade de compressão da medula espinhal por hematoma epidural pós punção raquídea pode ser descartada 22,23. A ocorrência de hematoma epidural espontâneo também foi descartada pelos mesmos motivos 23.

A lesão da medula espinhal que leva a paraplegia é uma complicação rara, mas que deve ser adicionada na lista de eventos neurológicos após revascularização do miocárdio. Por ser uma complicação devastadora devemos intensificar as medidas de prevenção da isquemia medular (Quadro 2). Para chegar a um diagnóstico diferencial de isquemia medular seria necessário ter realizado, além dos exames mencionados, mielograma, eletromiografia e ressonância magnética da coluna toracolombar 5,6. A ressonância magnética neste paciente não foi realizada e seria um exame fundamental para estabelecer o tipo e nível de mielopatia isquêmica. Recomendamos, na eventualidade de paraplegia pós-cirúrgica para um diagnóstico mais preciso que todos os exames mencionados sejam realizados para determinar de forma mais precisa o melhor e mais adequado tratamento imediato e de longo prazo.


A síndrome da artéria espinhal anterior, embora rara, deve ser sempre considerada nos procedimentos de manipulação da aorta havendo necessidade de sua prevenção, particularmente nos pacientes de risco.

A tomografia computadorizada é de fundamental importância para o diagnóstico diferencial e a ressonância magnética para a localização da lesão.

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos aos colaboradores pelo estudo: Dr. Bilal Smaili e Dr. Miguel Angel Mercado.

Apresentado em 8 de julho de 2009

Aceito para publicação em 24 de dezembro de 2009

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  • Endereço para correspondência:
    Dr. Caetano Nigro Neto
    Rua Peixoto Gomide, 502/173-B Jardim Paulista
    01409-000 São Paulo, SP
    E-mail:
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    Recebido do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, São Paulo, SP
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      08 Jul 2009
    • Aceito
      24 Dez 2009
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