Acessibilidade / Reportar erro

Jonnesco: um século de história da anestesia raquídea

CARTA AO EDITOR

Jonnesco: um século de história da anestesia raquídea

Ao Editor

Acabei de receber o último número de nossa revista (RBA, julho/agosto 2010) e li o Editorial publicado, de autoria do Dr. Luiz Eduardo Imbelloni 1, colega bastante conhecido por seus trabalhos e interesse em anestesia regional.

Nessa apresentação, ele comenta o método de raquianestesia por punção feita em qualquer espaço intervertebral, proposto pelo Dr. T. Jonnesco 2 e que foi difundido em 1909, por um artigo escrito por seu idealizador, no British Medical Journal, preconizando a adoção dessa técnica em bloqueios subaracnoideos executados em todos os segmentos da coluna, de cervical a lombar, com maior ênfase para o acesso pela região torácica.

Como um "Editorial", por definição, expressa a concordância de opinião dos responsáveis pela orientação de uma revista, creio que algumas considerações se fazem necessárias.

Jonnesco foi uma figura muito contestada e seus resultados não foram convincentes ou confirmados. Basta citar o comentário assinado "A.N.", no California State Journal of Medicine, de 1911 3, em que mortes são citadas e aquele autor foi descrito como um "verdadeiro farsante", utilizando "a imprensa leiga para se autopromover". Do mesmo modo, isso pode ser visto no artigo de McGavin L. no British Medical Journal de 1910 4, em que 18 casos são apresentados e foi feito um comentário no sentido de que, numa demonstração de três anestesias executadas por Jonnesco, houve apenas um paciente com resultado satisfatório, pois nos demais foi necessário o uso de anestesia geral para que a operação programada pudesse ser realizada.

Carlos Parsloe, numa excelente revisão apresentada na International College Series 5, fez uma análise da "anestesia espinhal total", conforme a descrição de Jonnesco em 398 cirurgias, e teceu considerações a esse respeito e sobre a época em que foi apresentada. Mesmo o livro que Jonnesco publicou em 1919, intitulado Rachianestesie Generale 6, não pode impedir o abandono, em pouco tempo, de um procedimento tão cheio de riscos e de baixa segurança 7,8.

A última referência que vimos sobre esse tópico, tratando de raquianestesias efetuadas em nível torácico, foi a de van Zundert 9, que publicou um total de 20 casos e recomendou prudência na execução dessas anestesias, pois, do ponto de vista estatístico, o relato de 20 bloqueios sem sequelas não tem significação. Seria necessário um número bem maior, de um a três mil procedimentos, realizados com êxito e sem sequelas, para sugerir a segurança e a adoção desse método.

Os bloqueios altos, tanto raquídeos como peridurais, principalmente aqueles feitos em nível torácico, apresentam, devido à anatomia da coluna vertebral na região, risco potencial e real elevado de causar lesões neurológicas graves, como paraplegias ou paresias. O fato de o tecido medular mostrar-se insensível à penetração da agulha numa punção acidental, na introdução intramedular inadvertida de um cateter ou à injeção de líquido, aumenta muito a probabilidade de um acidente desse tipo. Apenas as raízes nervosas apresentam reação quando atingidas, sob a forma de parestesias ou mesmo de dor 10-40,42-44.

Além da possibilidade de trauma direto causado pela agulha, há o risco de aparecerem hematomas raquídeos ou peridurais, produzindo paralisias ou lesões similares 41. Em outras raras instâncias, sequelas neurológicas graves podem seguir-se ao bloqueio subaracnoideo, por razões nem sempre muito claras 44-48. Não devemos esquecer ainda a difusão possível do anestésico pelo canal espinhal, causando hipotensões súbitas e graves, além de depressão respiratória ou apneia 10,11,19,26,39,42,46,47,49-53.

Assim, levando em conta tudo o que foi mostrado e descrito na literatura consultada, acreditamos que a raquianestesia, praticada nos segmentos cervicais ou torácicos, deve ser completamente descartada em nossa rotina diária e lembrada apenas como um tentativa frustrada e de risco, que não surtiu o resultado esperado, tendo sido abandonada há mais de 70 anos.

Nos dias atuais, a única justificativa que podemos aceitar para um bloqueio subaracnoideo, nesses níveis, seria a injeção de fenol em glicerina (Maher RM - Results of suba rachnoid phenol blocks. In: Relief of Intractable Pain. Edi ted by M. Swerdlow. Amsterdam, Elsevier, 1983, p. 192) ou outro neurolítico como o álcool (Dogliotti), para tratamento de dores incoercíveis produzidas por processos neoplásicos avançados. Estagiamos com Maher em 1962, na Inglaterra, e tivemos a oportunidade de executar algumas injeções subdurais sob sua orientação, com resultados aceitáveis em 70% dos oito pacientes assim tratados, sem paraplegias ou outras sequelas neurológicas graves. Doses pequenas e injeções lentas, com o enfermo mantido em decúbito lateral até a fixação do bloqueio, eram partes integrantes da técnica. Fizemos mais alguns casos em nossa Clínica de Dor da Santa Casa de Santos e também no Hospital Universitário de Caracas, onde estivemos dois meses como professor convidado pela WHO, nos anos 70, com uma percentagem similar de sucesso.

São indicações restritas, mas que podem aliviar a dor em indivíduos que estão em grande sofrimento e têm uma expectativa curta de vida. Nessa situação, creio que o risco da ocorrência de sequelas neurológicas pode ser aceito pelo paciente.

Para sumarizar, é nossa opinião que Jonnesco e sua técnica devem apenas permanecer como uma lembrança de um passado que se foi.

Ao ler as referências citadas na bibliografia, cremos que este método somente deveria ser empregado, na atualidade, se o anestesista pudesse responder "sim" à seguinte pergunta: "Você permitiria o uso desses bloqueios em si mesmo, em sua esposa, filho, filha ou irmãos?" 53-56

Além do mais, hoje, com o alto número de ações contra médicos, por má prática, que estão aumentando em progressão geométrica num país como o Brasil, onde existem 1.300 faculdades de Direito, os riscos tornam-se inaceitáveis para o profissional envolvido 53.

Imagine fazer o paciente assinar um consentimento informado para esse tipo de anestesia, que, obrigatoriamente, teria de conter todas as hipóteses de acidentes e efeitos adversos possíveis, mencionando as sequelas neurológicas permanentes que poderiam surgir dessa ação! Pelo que sabemos hoje, acreditamos que os riscos não compensam. Contamos com métodos de anestesia geral cada vez mais seguros e que podem ser utilizados em todos os casos em que essa "raque segmentar" era considerada indicada em épocas remotas, lá pelos anos 1920 ou 1930, o que representa a "idade média" da moderna Anestesiologia.

O princípio fundamental da Medicina, "Primum non nocere", deve estar sempre presente em nossas considerações antes da realização de qualquer procedimento capaz de provocar danos potenciais ou sequelas irreversíveis em nossos pacientes 7.

Prof. Armando Fortuna, TSA,

DA (Din.) DA (Ing), FACA (USA)

Faculdade de Ciências Médicas de Santos (aposentado)

Advogado OAB-SP

Fundador e ex-diretor dos CETs Integrados da Santa Casa e da Beneficência Portuguesa de Santos

  • 01. Imbelloni LE - Jonnesco: one century of thoracic spinal anesthesia history. Rev Bras Anestesiol, 2010;60:347-348.
  • 02. Jonnesco T - General spinal anesthesia. Br Med J, 1909;2:1396-1401
  • 03. A.N. - Jonnesco and spinal anesthesia. California State J Med, 1911;9:401-402
  • 04. McGavin L - Remarks on eighteen cases of spinal analgesia by the stovaine-strychnine methods of Jonnesco, including six cases of high dorsal puncture. Brit Med J, 1910;2:733-726.
  • 05. Parsloe C - Deliberate total anesthesia: proponents and techniques (1901-1948), International Congress Series 1242, 2002; 169-172.
  • 06. Jonnesco T - La Rachianestesie Generale. Paris, Masson, 1919.
  • 07. Fortuna A - Primum non nocere. A forgotten principle? Cyber Congress, Mexico, 2008.
  • 08. Bedforth NM, Hardman JG - The hidden cost of neuroaxial anesthesia? Anaesthesia, 2010;65:437-439.
  • 09. van Zundert AAJ, Stultiens G, Jakimowicz JJ et al. - Laparoscopic cholecystectomy under segmental thoracic spinal anaesthesia: a feasibility study. Br J Anaesth, 2007:98:682-686.
  • 10
    Fortuna A, Fortuna AO - Complicações e acidentes em bloqueios regionais (anestesias raquídea e peridural). Rev Bras Cir, 1989;79:5-10.
  • 11
    Fortuna A - Bloqueios anestésicos. Rev Bras Anestesiol, 1963;13:227-262;326-351
  • 12
    Fortuna A - Neuropathies after neuraxial anaesthesia. Anestesia Rianimazioni, 2003;1(1).
  • 13
    Carpenter RL, Caplan RA, Brown DL et al. - Incidence and risk factors for side effects of spinal anesthesia. Anesthesiology, 1992:76:906-916.
  • 14
    Kao MC, Tsai SK, Tsou MY et al. - Paraplegia after delayed detection of inadvertent spinal injury during thoracic epidural catheterization in an anesthetized elderly patient. Anesth Analg, 2004;99:580-583.
  • 15
    Poulder D, Elliot S - An awake patient may not detect spinal cord puncture. Anaesthesia, 2000;55:194.
  • 16
    Horlocker TT, Wedel DJ - Neurologic complications of spinal and epidural anesthesia. Reg Anesth Pain Med, 2000;25:83-98.
  • 17
    Aldrete JA, Ferrari H - Mielopathy with syringomyelia following thoracic epidural anesthesia. Anaesth Intensive Care, 2004;32:100-103.
  • 18
    Auroy Y, Narchi P, Messiah A et al. - Serious complications related to regional anesthesia: results of a prospective survey in France. Anesthesiology, 1997;87:479-486
  • 19
    Aromaa U, Lahdensuu M, Cozanitis DA - Severe complications associated with epidural and spinal anaesthesias in Finland 1987-1993. A study based on patient insurance claims. Acta Anaesthesiol Scand, 1997;41:445-452.
  • 20
    Kasai T, Yaegashi K, Hirose M et al. - Spinal cord injury in a child caused by an accidental dural puncture with a single-shot thoracic epidural needle. Anesth Analg, 2003;96:65-67.
  • 21
    Hodgson PS, Neal JM, Pollock JE et al. - The neurotoxicity of drugs given intrathecally (spinal). Anesth Analg, 1999;88:797-809.
  • 22
    Aldrete JA - Arachnoiditis: the Silent Epidemic. 1º Ed, Mexico, Future Med, 2000.
  • 23
    Carli F, Klubien K - Thoracic epidurals: is analgesia all we want? Can J Anaesth, 1999;46:409-414.
  • 24
    Bromage RP - Neurological complications of subarachnoid and epidural anaesthesia. Acta Anaesthesiol Scand, 1997;41:439-444.
  • 25
    Renck H - Neurological complications of central nerve blocks. Acta Anaesthesiol Scand, 1995;39: 859-868.
  • 26
    Fortuna A, Fortuna AO - Raquianestesia - Posição Atual, em: Silva Neto JD, Vale NB - Controvérsias em Anestesiologia. Rio de Janeiro, Atheneu, 1990;11-17
  • 27
    Simpson R - Neuroaxial catastrophes (chemical, infective and ischemic), em: World Congress of Anesthesia, 7., Hamburg. Proceedings... Excerpta Medica, 1981;960-962.
  • 28
    Usubiaga JE, Usubiaga LE - Classificações das síndromes neurológicas pós-anestesia raquídea e peridural. Rev Bras Anestesiol, 1969;19:518-536.
  • 29
    Reynolds F - Damage to the conus medullaris following spinal anaesthesia. Anaesthesia, 2001;56:238-247.
  • 30
    Kane RE - Neurological deficits following epidural or spinal anesthesia. Anesth Analg, 1981; 60:150-161.
  • 31
    Fortuna A, Pradier P, Almeida MR - Severe neurological sequelae after spinal and epidural blocks. Consideration of 32 cases reported in Nicaragua, em: World Congress of Anesthesiology, 9, 1988. Abstracts... Washington, USA. 1988; v.2: AO 899.
  • 32
    Reis MP, Lima ICPR, Jung Li et al. - Paraplegias após bloqueios anestésicos. Rev Bras Anestesiol, 1993;43(Supl 17):CBA 068.
  • 33
    Mayal MF, Calder I - Spinal cord injury following an attempted thoracic epidural. Anaesthesia, 1999;54:990-994.
  • 34
    Trindade RMC, Leal JH, Castro RFD - Complicação neurológica após anestesia regional. Rev Bras Anestesiol, 1994;44(Supl 18):CBA 016.
  • 35
    Hodges SD, Castleberg RL, Millet T et al. - Cervical epidural steroid injection with intrinsic spinal cord damage. Two cases reports. Spine, 1998:23:2137-2142.
  • 36
    Ben-David B, Rawa R - Complications of neuroaxial blockade. Anesthesiol Clin North Am; 2002;20:669-693.
  • 37
    Dahlgren N, Törnebrandt K - Neurological complications after anesthesia. A follow-up of 18.000 spinal and epidural anaesthetics performed over three years. Acta Anaesthesiol Scand, 1995;39:872-880.
  • 38
    Brull R, McCartney CJL, Chan VWS et al. - Neurological complications after regional anesthesia: contemporary estimates of risk. Anesth Analg, 2007;104:965-974.
  • 39
    Lovstad RZ, Granhus G, Hetland S - Bradycardia and asystolic cardiac arrest during spinal anaesthesia: a report of five cases. Acta Anaesthesiol Scand, 2000;44:48-52.
  • 40
    Seze MP, Sztark F, Janvier G et al. - Severe and long-lasting complications of the nerve root and spinal cord after central neuroaxial blockade. Anesth Analg, 2007;104:975-979.
  • 41
    Newrick P, Read D - Subdural haematoma as a complication of spinal anaesthetic. Br Med J (Clin Res Ed), 1982;285: 341-342.
  • 42
    Benhamou D, Auroy Y - Overview of regional anesthesia complications, em: Neal JM, Rathmell JP - Complications in Regional Anesthesia and Pain Medicine. Philadelphia, Saunders Elsevier, 2008:7-16.
  • 43
    Absalom AR, Martinelli G, Scott NB - Spinal cord injury caused by direct damage by local anaesthetic infiltration needle. Br J Anaesth, 2001;87:512-515.
  • 44
    Munnur U, Suresh MS - Backache, headache, and neurologic deficit after regional anesthesia. Anesthesiol Clin North Am, 2003;21:71-86.
  • 45
    Vandam LD, Dripps RD - Long-term follow-up of patients who received 10098 spinal anesthetics: syndrome of decreased intra-cranial pressure (headache and ocular and auditory difficulties). J Am Med Assoc, 1956;161:586-591.
  • 46
    Whizar LV, Carrada PS - Anestesia subaracnóidea. Cien años después. Rev Mex Anest 1999; 22:1-4.
  • 47
    Auroy Y, Benhamou D, Bargues L et al. - Major complications of regional anesthesia in France: The SOS Regional Anesthesia Hotline Service. Anesthesiology, 2002;97:1274-1280.
  • 48
    Fortuna A - Erros fatais e indefensáveis em anestesia regional. Anest Rev, 2007;57(1):25.
  • 49
    Caplan RA, Ward RJ, Posner K et al. - Unexpected cardiac arrest during spinal anesthesia: a closed claims analysis of predisposing factors. Anesthesiology, 1988;68:5-11.
  • 50
    Fortuna A - Complicações em anestesias regionais. Rev Bras Anestesiol, 1988;38(supl 10):CBA 50
  • 51
    Fortuna A - Toxicidade dos Anestésicos Locais, em: Congresso Brasileiro de Anestesiologia, 52., 2005, Goiânia.
  • 52
    Wils JH - Rapid onset of massive subdural anesthesia. Reg Anesth Pain Med, 2005;30:299-302.
  • 53
    Fortuna A - Anestesia peridural torácica para cirurgia em posição sentada/peridural torácica para cirurgia de mama ou abdômen com sedação venosa. Rev Bras Anestesiol, 1989;39:401-408.
  • 54
    Low J, Johnston N, Morris C - Epidural analgesia: first do no harm. Anaesthesia 2008;63:1-3.
  • 55
    Ostwald K - Medico legal issues in regional anesthesia, ASRA NEWS, 1990 Feb;2-3.
  • 56
    Szypula K, Ashpole KJ, Bogod D et al. - Litigation related to regional anaesthesia: an analysis of claims against the NHS in England 1995-2007. Anaesthesia, 2010;65:443-452.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Fev 2011
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org