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Jonnesco: um século de história da anestesia raquídea

CARTA AO EDITOR

Jonnesco: um século de história da anestesia raquídea

RÉPLICA

Sr. Editor,

O que fiz em relação aos 100 anos do estudo de Jonnesco 1 foi pensar por conta própria. De fato, boa parte do que o anestesiologista Fortuna escreveu se baseia em conhecimento anatômico descrito por Leonardo da Vinci, descobridor da Anatomia Humana e Animal. Leonardo da Vinci, na Idade Média, realizou mais de 20 dissecações de cadáveres nas escolas de Medicina, descrevendo magnificamente a coluna vertebral 2, conceitos anatômicos que permanecem até hoje no que tange ao cadáver.

Em termos de anatomia no cadáver, o Professor Fortuna confunde espaço subdural com o espaço subaracnoideo. O complexo dura-aracnoide é formado a partir do espaço peridural até o espaço subaracnoideo, por estruturas laminares distintas que corresponde a dura-máter, o compartimento subdural e a aracnoide 4.

O Professor Fortuna critica o estudo de Jonnesco 1 com dois trabalhos da mesma época: um realizado em 1910 5 com 18 pacientes, no qual o autor termina o artigo dizendo "na minha opinião, a raquianestesia ainda não é reconhe cida como um ramo da anestesia"; o outro em 1911 6, na realidade um editorial, em que são discutidas mais as complicações dos anestésicos locais da época do que a técnica anestésica. É óbvio que os conhecimentos de anatomia pela ressonância nuclear magnética (RNM) ainda não existiam. Ao citar o trabalho de Parsloe 7, o Professor Fortuna omitiu que o conteúdo versava sobre a história da hipotensão deliberada, não condenando, em momento algum, a técnica proposta por Jonnesco. O Editorial do Anaesthesia 8, citado pelo Professor Fortuna, abordou também o custo dos litígios com a anestesia no neuroeixo: 89%. Destes, 81% foram complicações relacionadas à anestesia peridural. O trabalho 9 que gerou o editorial 8 concluiu que fatores associados aos litígios incluíam: peridural, lesão de nervo, anestesia inadequada, pacientes obstétricas e, em menor número, bloqueio oftalmológico. Os três trabalhos citados pelo Professor Fortuna 7-9 não afirmam que a raquianestesia é um procedimento cheio de riscos, de baixa segurança e que deva ser abandonado em pouco tempo. Pelo contrário, afirmam segurança.

A fisiologia, a bioquímica, a microscopia eletrônica e as técnicas de difração com raios X foram aplicadas ao estudo das células, descrevendo suas estruturas em nível molecular. Técnicas de imagem como radiografia, angiografia, tomografia axial computadorizada, ressonância nuclear magnética, ecografia e termografia têm aberto um imenso campo para o estudo da anatomia in vivo. A RNM é uma técnica nova e permite determinar as propriedades de uma substância através da correlação da energia absorvida com a frequência aplicada. A posição supina era mandatória para sua realização. Avanços tecnológicos atuais permitem sua realização com o paciente em posição ortostática, em posição inclinada e em posição supina 10, o que possibilita não só a visualização do espaço subaracnoideo torácico em ângulos inimagináveis, mas também vislumbra a promessa de novos conhecimentos anatômicos in vivo.

A RNM tem merecido destaque em razão de sua promissora aplicação no paciente saudável ou com lesão do SNC 11. Os nervos da cauda equina no interior do saco dural têm sido exaustivamente estudados com o auxílio dessa técnica. As radículas formam um padrão semelhante à lua crescente 12, espalhando-se difusamente e ocupando a região posterior do espaço lombar 13,14. A RNM proporcionou informação detalhada sobre a anatomia do canal vertebral torácico 15-17. Van Zundert 18,19 e Imbelloni 20 descreveram a realização de raquianestesia segmentar através do bloqueio combinado raquiperidural por punção torácica, sem que houvesse complicações.

Embora com os avanços realizados nos meios diagnósticos, mielografias ainda são efetuadas através de punção subaracnoidea nas regiões cervicais e torácicas 21,22, sem que haja lesão do tecido nervoso. Em 1990, foi publicado um estudo envolvendo 220 neurorradiologistas e 187.300 mielografias em que a punção foi realizada entre o espaço intervertebral de C1 e C2, com apenas 68 (0,023%) complicações, sendo 63% delas consequentes à hiperextensão da coluna vertebral durante o exame 21.

É bem conhecido que os anestesiologistas com frequência falham em identificar corretamente o espaço vertebral. Em estudo procurando localizar o espaço L3-L4, obteve-se índice de acerto em apenas 29% 23. Dessa forma, muitas vezes pensamos estar fazendo a punção na região lombar quando, na realidade, estamos puncionando na região torácica.

A anestesia peridural torácica é um método eficaz de anestesia e analgesia pós-operatória, usado no mundo inteiro, e a perfuração acidental da dura-máter é complicação da técnica, mostrada apenas por dois trabalhos brasileiros 24,25 e dois estrangeiros 26,27. A perfuração acidental ocorreu entre 0,4% a 4,4% na série de 6.496 bloqueios peridurais torácicos, e nenhum dos 48 pacientes desenvolveu sequela neurológica 24-27. Possível explicação anatômica para a ausência de lesão medular, durante perfuração acidental da dura-máter torácica, foi proposta por Imbelloni e Gouveia, em trabalho aceito para publicação no número de novembro e dezembro do American Journal NeuroRadiology (AJNR) 28. Nesse trabalho, foram encontradas, com o uso de RNM, as seguintes medidas: 5,19 mm em T2, 7,75 mm em T5 em 5,88 mm em T10, espaço suficientemente amplo para permitir a entrada de uma agulha durante perfuração acidental (um perigo, já que não estamos preparados para isso) ou intencional (menor risco, porque já estamos preparados) com agulhas finas e ponta cortante.

Em relação ao questionamento "se eu permitiria o uso deste bloqueio em mim, minha mulher e filhas", eu responderia, sem dúvida, que sim, principalmente a partir dos estudos anatômicos realizados neste século. Vale salientar que as quatro referências citadas pelo Professor Fortuna (57-60) para fazer esse questionamento não contemplam essa frase. O Professor Fortuna justifica a punção subaracnoidea torácica - e já a realizou diversas vezes em pacientes com dores incoercíveis - e deixa uma plêiade de pacientes com dor aguda sem se beneficiar dessa técnica. Na realidade, ele não é contrário à punção; ele é contrário à realização de anestesia.

Infelizmente, o Professor Fortuna não entendeu a homenagem que fiz ao escrever o Editorial na RBA: uma homenagem a um homem de visão que, sem qualquer exame de imagem, descreveu quase tudo que se sabe hoje sobre punção torácica e, certamente, teria escrito tudo sobre a raquianestesia torácica se vivesse em 2010.

No momento, estou concluindo um trabalho com 400 pacientes (aprovado pela Comissão de Ética e Pesquisa), estudando raquianestesia torácica com baixas doses de anestésico local e evitando todos os comemorativos descritos na carta do Professor Fortuna. É preciso conhecer a fisiologia da moderna raquianestesia que Gouveia e Imbelloni propuseram e que justifica a baixa incidência de efeitos hemodinâmicos 31. O fato de uma técnica anestésica não ser habitual não significa que esteja errada. Verdades científicas, por mais evidentes e corretas que pareçam, em um dado momento do conhecimento universal esvaem-se rapidamente frente a novos conceitos e teorias, ou novas evidências que modificam seus princípios 31. Quem sabe viveremos para assistir à substituição da peridural torácica, tão combatida pelo Professor Fortuna (diversas referências de sua carta, não repetidas aqui), pela raquianestesia torácica?

Não há verdade científica; há tão-somente conhecimentos científicos, que só podem ser encarados como verdades hoje, já que são todos relativos e históricos. A literatura médica nos permite atacar ou defender qualquer colega, já que todos têm direito à defesa.

Atenciosamente,

Luiz Eduardo Imbelloni,

TSA/PB

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Fev 2011
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