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Sugammadex®: novos questionamentos sobre a reversão

CARTA AO EDITOR

Sugammadex®: novos questionamentos sobre a reversão

O Sugammadex®, recentemente lançado no mercado brasileiro, é uma gamaciclodextrina modificada que está apresentando resultados favoráveis no que tange à reversão do bloqueio motor, principalmente a do rocurônio. Uma das grandes vantagens desse agente sobre a neostigmina é possibilitar a reversão do relaxamento quando o paciente ainda está profundamente curarizado. No entanto, ao se empregar Sugammadex® nessa condição de profundo bloqueio, registrou-se um fenômeno até então não observado: a recuperação do TOF (train-of-four) antes da plena recuperação de T1 (single twich), com diferença de até 5 minutos entre essas duas for-mas de neuroestimulação 1. O conceito de recuperação satisfatória inclui apenas o retorno do TOF > 0,9 ou, como trazem recentes recomendações, em torno de 1 2,3.

A monitoração da transmissão neuromuscular (TNM) se diferencia de outras empregadas em anestesia, como, por exemplo, da oximetria de pulso, porque há necessidade de se interpretarem os dados fornecidos pelo estimulador de nervos periféricos.

Para melhor compreensão, é possível dividir os fenômenos da TNM em três partes distintas: os processos pré-sinápticos, os relacionados à fenda e à membrana basal e os pós-sinápticos ou musculares. No primeiro, maior destaque recai sobre o motoneurônio A α, no qual podemos identificar os receptores nicotínicos ditos neuronais, além de canais de cálcio e potássio voltagem-dependentes, estruturas fundamentais ao controle da entrada de cálcio para o neurônio 4. Esses receptores apresentam particularidades que os diferenciam dos denominados musculares, como a presença de apenas dois tipos de subunidades, as α 2-10 e as β 2-4, e a ausência de margem de segurança 4-8. Esta última característica está relacionada, por um mecanismo de feedback positivo pela estimulação do receptor nicotínico do tipo α 3 β 2, à liberação adicional de acetilcolina na presença de estímulos de forte intensidade.

Quando o receptor neuronal é ocupado por um bloqueador neuromuscular (BNM) adespolarizante não ocorre o mecanismo de feedback positivo e de liberação adicional de acetilcolina e, na presença de estímulo de forte intensidade, o músculo não mantém uma contração intensa, isto é, apresenta fadiga. Outros mecanismos, além do bloqueio de receptores nicotínicos neuronais, parecem estar envolvidos com o aparecimento de fadiga, conforme demonstrado em preparação músculo-nervo frênico. Entre eles, citam-se a ação facilitatória dos receptores muscarínicos tipo 1 (M1) e/ou a ação inibitória dos do tipo 2 (M2) 9. Na monitoração clínica, essa fadiga é caracterizada por um TOF < 0,9 2,10,11.

Fisiologicamente, moléculas de acetilcolina que não foram destruídas na fenda sináptica pela acetilcolinesterase chegam ao receptor nicotínico muscular e o ocupam, deflagrando a abertura do poro central do receptor, representado pelas cadeias M2-M4, situadas na porção transmembrânica do sarcolema 4,8. Por esse poro, entram para o meio intracelular moléculas de sódio hidratadas, com a geração de potencial de ação. O potencial elétrico estimula receptores de sódio voltagem-dependentes justapostos aos receptores nicotínicos musculares, que permitem, então, a entrada adicional de sódio, ampliando o potencial de ação. Essa despolarização da membrana libera moléculas de cálcio intracelular, as quais, por sua vez, deflagram a contração muscular. A contração muscular ou o mecanismo pós-sináptico são avaliados no monitor pela resposta ao estímulo isolado, o T1.

Na presença de um BNM adespolarizante que compete com a acetilcolina pelos sítios de ligação nos receptores nicotínicos musculares, há diminuição da contração muscular, representada por uma depressão de T1, uma vez que a ocupação ultrapasse a margem de segurança.

A succinilcolina, único representante dos BNM despolarizantes empregados na prática clínica, não tem afinidade com os receptores nicotínicos neuronais em doses ditas convencionais e, portanto, não se evidencia fadiga no monitor. Ela ocupa os receptores pós-sinápticos e diminui ou abole a contração muscular, isto é, deprime ou anula T1.

A administração de doses elevadas de Sugammadex® para antagonizar bloqueios profundos recupera prontamente o TOF e, portanto, "libera" os receptores nicotínicos neuronais do BNM esteroidal, mais especificamente do rocurônio. No entanto, ao contrário da neostigmina, não promove o restabelecimento de T1 na mesma proporção e velocidade, ou seja, os receptores musculares continuam bloqueados com o rocurônio. Se formos empregar o monitor da TNM, essa resposta segue o padrão de um bloqueio parcial da succinilcolina, ou seja, uma depressão de T1 com manutenção do TOF.

Após essas evidências, ficam as seguintes questões: é possível considerar "reversão completa" do BNM com depressão de T1 ainda presente? Por que a rápida diminuição de moléculas de rocurônio repercute, em primeiro lugar, nos receptores neuronais, que justamente não apresentam mar-gem de segurança? Que efeitos tem essa droga que, no monitor da TNM, apresenta o mesmo padrão de um bloqueio parcial com succinilcolina? Qual a repercussão clínica desse padrão de reversão?

A TNM é um mecanismo complexo, que continua sem respostas definitivas. Muitas explicações têm sido obtidas com estudos em animais de laboratório, em que a manipulação genética, resultando em animais modificados, permite o entendimento de aspectos particulares dos nervos e dos músculos e sua ocupação por venenos ou xenobióticos. Espera-se que, com esse "novo" padrão de reversão após o uso de Sugammadex®, alguns conceitos e mecanismos de ação dos BNMs sobre a TNM, bem como os relacionados à reversão, sejam revistos em anestesiologia.

Dra. Maria Cristina Simões de Almeida

Hospital Universitário

Universidade Federal de Santa Catarina

Dr. Giovani de Figueiredo Locks

Hospital Universitário

Universidade Federal de Santa Catarina

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2011
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