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Opioides e o sistema imunológico: relevância clínica

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVO: O crescente uso de opioides para o tratamento da dor é uma realidade em vários países. Com o aumento do uso aparecem questionamentos menos usuais, como a influência dos opioides nas respostas imunológicas. O presente estudo tem como objetivo detalhar a resposta imunológica explorando as influências dos efeitos dos opioides sobre a resposta inflamatória em situações experimentais e clínicas, bem como sua importância para a prática diária. CONTEÚDO: Após revisão de artigos publicados em revistas indexadas no Medline, foi descrita a resposta imunológica de forma geral, especialmente em seu aspecto celular. Após essa abordagem, foram identificados os mecanismos de liberação dos opioides endógenos e a modulação da resposta imune aos opioides exógenos na dor aguda e crônica, sempre finalizando com as implicações clínicas e sua aplicabilidade na rotina de atendimento. CONCLUSÕES: Embora vários estudos apontem para um efeito imunodepressor dos opioides, a relevância clínica dessas observações continua incerta e serve apenas como um prerrequisito para que novas investigações nessa área sejam conduzidas. Recomendações definitivas para a aplicação de opioides, nas mais variadas situações da prática clínica em relação às consequências imunológicas desses fármacos, ainda não podem ser dadas até o momento presente.

ANALGÉSICOS, Opioides; DOR; SISTEMA IMUNOLÓGICO


BACKGROUND AND OBJECTIVES: The increasing use of opioids for pain treatment is a reality in several countries and, therefore, unusual questions arise, such as the influence of opioids on immune responses. The present study aims to detail the immune response by exploring the influences of opiate effects on inflammatory response in experimental and clinical situations, as well as its importance in daily practice. CONTENT: After reviewing the articles published in journals indexed in Medline, we found that immune response has been generally described, especially regarding its cellular aspect. Following this approach, we identified the mechanisms of endogenous opioid release, modulation of immune response to exogenous opioids in acute and chronic pain, always ending with the clinical implications and applicability in routine care. CONCLUSIONS: Although several studies point to an immunosuppressive effect of opioids, the clinical relevance of these observations remains uncertain and only serves as a prerequisite for further investigations in this area. Definitive recommendations for the use of opioids in various situations of clinical practice regarding the immunological consequences of these drugs still cannot be provided until the present moment.

Analgesics, Opioids; Immune System; Pain


JUSTIFICATIVA Y OBJETIVOS: El creciente uso de opioides para el tratamiento del dolor es una realidad en varios países. Con el incremento de su uso van surgiendo cuestionamientos menos comunes, como la influencia de los opioides en las respuestas inmunológicas. El presente estudio tiene el objetivo de detallar la respuesta inmunológica explorando las influencias de los efectos de los opioides sobre la respuesta inflamatoria en situaciones experimentales y clínicas, como también su importancia para la práctica diaria. CONTENIDO: Después de la revisión de los artículos publicados en revistas indexadas en el Medline, se describió la respuesta inmunológica de forma general, especialmente en su aspecto celular. Después de ese abordaje, se identificaron los mecanismos de liberación de los opioides endógenos y la modulación de la respuesta inmune a los opioides exógenos en el dolor agudo y crónico, siempre finalizando con las implicaciones clínicas y con su aplicabilidad en la rutina de atención. CONCLUSIONES: Aunque varios estudios nos indiquen un efecto inmunodepresor de los opioides, la relevancia clínica de esas observaciones continúa sin conocerse por completo y solo sirve como un prerrequisito para que nuevas investigaciones en esa área puedan llegar a buen puerto. Las recomendaciones definitivas para la aplicación de los opioides en las más variadas situaciones de la práctica clínica con relación a las consecuencias inmunológicas de esos fármacos, todavía no han salido a la luz.

ANALGÉSICOS, Opioides; DOLOR; SISTEMA IMUNOLÓGICO


ARTIGO DE REVISÃO

Opioides e o sistema imunológico: relevância clínica

João Batista Santos Garcia, TSAI; Mirlane Guimarães de Melo CardosoII; Maria Cristina Dos-SantosIII

IDoutor; Professor Adjunto, Disciplinas de Anestesiologia, Dor e Cuidados Paliativos, Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Responsável pelo Ambulatório de Dor do Hospital Universitário da UFMA e pelo Serviço de Terapia Antiálgica do Instituto Maranhense de Oncologia Aldenora Belo (Imoab); Presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (Sbed) no biênio 2011-2012

IIDoutora; Professora Adjunta, Disciplina de Farmacologia, Universidade Federal do Amazonas; Anestesiologista; Certificado de Atuação na Área de Dor; Responsável pelo Serviço de Terapia da Dor e Cuidados Paliativos da Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas

IIIDoutora; Professora Associada, Disciplina de Imunologia, Departamento de Parasitologia; Coordenadora 2008-2012 do Programa de Pós-graduação em Imunologia Básica e Aplicada (ICB/Ufam), Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Amazonas

Correspondência para Correspondência para: Dr. João Batista Santos Garcia Avenida São Marcos, Lote 4, Quadra C Edifício Varandas do Atlântico, apto. 502 Ponta d'Areia 65077-310 - São Luís, MA, Brasil E-mail: jbgarcia@uol.com.br

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVO: O crescente uso de opioides para o tratamento da dor é uma realidade em vários países. Com o aumento do uso aparecem questionamentos menos usuais, como a influência dos opioides nas respostas imunológicas. O presente estudo tem como objetivo detalhar a resposta imunológica explorando as influências dos efeitos dos opioides sobre a resposta inflamatória em situações experimentais e clínicas, bem como sua importância para a prática diária.

CONTEÚDO: Após revisão de artigos publicados em revistas indexadas no Medline, foi descrita a resposta imunológica de forma geral, especialmente em seu aspecto celular. Após essa abordagem, foram identificados os mecanismos de liberação dos opioides endógenos e a modulação da resposta imune aos opioides exógenos na dor aguda e crônica, sempre finalizando com as implicações clínicas e sua aplicabilidade na rotina de atendimento.

CONCLUSÕES: Embora vários estudos apontem para um efeito imunodepressor dos opioides, a relevância clínica dessas observações continua incerta e serve apenas como um prerrequisito para que novas investigações nessa área sejam conduzidas. Recomendações definitivas para a aplicação de opioides, nas mais variadas situações da prática clínica em relação às consequências imunológicas desses fármacos, ainda não podem ser dadas até o momento presente.

Unitermos: ANALGÉSICOS, Opioides; DOR; SISTEMA IMUNOLÓGICO.

INTRODUÇÃO

Dados da literatura mundial demonstram que o consumo de opioides vem crescendo nas últimas décadas de forma importante. Muitos de seus efeitos primariamente nos sistemas orgânicos são diversos e não completamente conhecidos. Atualmente, identificamos um grande interesse em elucidar as influências do uso dos opioides nas respostas imunológicas no manejo de pacientes com dor1.

Trabalhos sobre as interações entre o cérebro e o sistema imune revelaram conexões bidirecionais entre os sistemas: neural, endócrino e imunológico. O sistema nervoso central (SNC) regula o sistema imunológico pelas vias neuronais e neuroendócrinas; por sua vez, o sistema imunológico que é inervado pelo sistema nervoso simpático sinaliza o cérebro por meio das vias neurais e humorais. Células do sistema imunológico expressam receptores para hormônios provenientes de diversos eixos e para numerosos neurotransmissores e mediadores bioquímicos excitatórios (glutamato, substância P, fatores de crescimento) e inibitórios (opioides, ácido gamaaminobutírico/GABA e glicina)1,2.

O presente artigo se propõe a detalhar a resposta imunológica explorando as influências dos efeitos dos opioides sobre a resposta inflamatória em situações experimentais e clínicas, bem como sua importância para a prática diária.

VISÃO GERAL DA RESPOSTA IMUNOLÓGICA

A resposta imunológica é realizada pela colaboração dos componentes pertencentes aos sistemas imunológicos: Inato (SII) e Adaptativo (SIA). O SII constitui a primeira linha de defesa do organismo, pois reconhece rapidamente o patógeno devido à presença de Receptores de Reconhecimento de Padrões (PRR), presentes nas membranas plasmáticas, no citosol, endossoma, lisossomo ou endolisossoma das células imunes, que se ligam às estruturas presentes nos patógenos denominadas de padrões moleculares associados aos patógenos (PAMP)2,3,4, desencadeando a resposta inflamatória e direcionando a resposta imune adaptativa. As células da imunidade inata não se dividem, não formam clones e não produzem células de memória. No entanto, uma forma de memória imunológica tem sido atribuída para algumas células da imunidade inata, como mastócitos5 e Natural Killer (NK)6.

Quando o organismo é infectado, os patógenos são reconhecidos pelas células dendríticas, presentes no epitélio, que exercem a função de apresentadoras de antígenos aos linfócitos T virgens, do SIA, nos órgãos linfoides secundários. As células fagocíticas, como macrófagos, neutrófilos e as células dendríticas, possuem PRR que se ligam diretamente aos seus respectivos PAMP, presentes nas paredes dos patógenos, ou podem reconhecê-los de maneira indireta, por meio da ligação de seus receptores de membrana com as proteínas séricas ou salivares, os PRR solúveis (Proteína C reativa, proteína ligadora de manose - MBL) ou opsoninas (C3b, C4b, MBL - componentes do Sistema Complemento), que se ligaram ao patógeno. Os macrófagos, os mastócitos, as células dendríticas, os linfócitos Tγ:Δ, os neutrófilos, as células epiteliais da mucosa, as células endoteliais, dentre outras, expressam outra família de receptores que interagem com os PAMP, denominados de receptores do tipo Toll (TLR), que estão envolvidos com a sinalização intracelular para a transcrição de citocinas e de outras moléculas indutoras da resposta imune e inflamatória. Esses receptores são proteínas transmembrânicas do tipo I compostas por ectodomínios contendo uma região rica em leucina que medeia o reconhecimento do PAMP; um domínio transmembrânico; e um domínio intracelular TIR (Toll-interleukin 1 receptor), responsável pela tradução dos sinais.

Atualmente, para camundongos foram descritos 12 e para humanos, 10 receptores do tipo Toll funcionais. Esses receptores podem ser encontrados expressos na membrana celular (TLR1, 2, 4, 5 e 6) para reconhecer componentes da parede microbiana, como lipídeos, lipoproteínas e proteínas; ou presentes em vesículas intracelulares (TLR3, 7, 8 e 9), como endossoma, lisossoma, endolisossoma e retículo endoplasmático, para detectar ácidos nucleicos oriundos da degradação de patógenos. Na célula dendrítica, a interação de seus receptores do tipo Toll com os PAMP correspondentes desencadeia uma série de reações, tais como: a produção de PRR envolvidos com a fagocitose; a produção de citocinas próinflamatórias (ou produção de interferon do tipo I); a expressão de moléculas coestimuladoras na membrana e a maturação dessas células dendríticas virgens. Portanto, quando ocorre essa interação inicia-se não apenas a resposta inflamatória aguda, mas também o direcionamento de uma resposta mais específica - a do SIA - contra o patógeno invasor2,4.

A ativação do SIA ocorre com a apresentação do agente invasor pelas células dendríticas aos linfócitos T auxiliares virgens (Th). Os macrófagos, os linfócitos B, os linfócitos Tγ:Δ e, esporadicamente, as células epiteliais desempenham a função de apresentadoras de antígenos aos linfócitos T efetores. Na sequência, as células dendríticas residentes capturam, englobam, o agente invasor e, logo após, migram para os órgãos linfoides secundários. Nesse trajeto, as células dendríticas iniciam o processamento dos peptídeos patogênicos em suas vesículas citoplasmáticas e a síntese das proteínas do complexo principal de histocompatibilidade de classes II (MHC ou CHP ou, em humanos, HLA) no retículo endoplasmático. Ainda, no citoplasma ocorre a fusão da vesícula que contém os peptídeos processados com a que possui as moléculas de MHC de classe II. Nesse momento, os peptídeos são encaixados na fenda do MHC II, formando os complexos peptídeo-MHCII, que serão exteriorizados na membrana, para que os peptídeos sejam reconhecidos pelos linfócitos T CD4+ correspondentes. Os linfócitos TCD4+ virgens (Th0) que reconhecem os peptídeos na fenda do MHC de classe II, após receber o estímulo das moléculas coestimuladoras de membrana e a influência das citocinas, sofrem expansão clonal e se diferenciam em células efetoras Th1, Th2 ou Th17, na presença de IL-12 e INF-; IL-4 e IL-2; ou TGF-β, IL-6 e IL21, respectivamente. Essa diferenciação depende do agente invasor e dessas citocinas, liberadas pela célula dendrítica ou presentes no microambiente onde ocorreu a apresentação do antígeno7.

Os linfócitos B expressam, na superfície da membrana, imunoglobulinas que atuam como receptores de antígenos. Portanto, cada linfócito B, semelhante aos linfócitos T, constrói, na linhagem somática, seu próprio sítio de reconhecimento do epítopo, o qual estará presente em todas as imunoglobulinas produzidas pelas células B oriundas de um mesmo clone. Os linfócitos B, presentes nos órgãos linfoides secundários, que reconhecem os epítopos do agente invasor, na estrutura de toxinas ou na superfície das células dendríticas foliculares e que recebem estímulo dos linfócitos T auxiliares, também sofrem expansão clonal. As células produzidas diferenciam-se em plasmócitos e produzem e secretam as imunoglobulinas, que auxiliam na neutralização e eliminação do invasor7.

OPIOIDES ENDÓGENOS E O SISTEMA IMUNOLÓGICO

Receptores opioides periféricos

Há alguns anos, estudos passaram a mostrar que os opioides não apenas tinham uma ação em receptores cerebrais e da medula espinal, mas também em neurônios sensoriais periféricos, o que levou a um detalhamento da via de atuação dessas substâncias fora do sistema nervoso central (SNC)8,9.

O estímulo doloroso inflamatório nos tecidos periféricos é considerado um gatilho para a regulação de receptores opioides em neurônios sensoriais adultos. A resposta inflamatória é acompanhada pela proliferação de receptores opioides nos terminais sensoriais periféricos, através da ruptura de uma barreira perineural que facilita o acesso dessas substâncias aos seus receptores e, em baixo pH, pode aumentar o efeito agonista por interferir na interação dos receptores opioides com as proteínas G10,11, responsáveis pela sinalização desses fármacos. Durante a inflamação, há uma regulação ascendente de receptores opioides no corno dorsal da medula espinal e, consequentemente, há um aumento do transporte axonal de receptores para a periferia, estimulado por citocinas (IL-1, IL-6 e TNF-α) e pelo fator de crescimento neuronal, provenientes do local da inflamação. As citocinas são proteínas produzidas e liberadas por todas as células, exceto os eritrócitos, que apresentam ação pleiotrópica - agindo em várias células-alvo e com múltiplas ações biológicas sobrepostas por sua ligação a receptores específicos, de alta afinidade, presentes na membrana celular. As citocinas, então, regulam o crescimento e a proliferação das células gliais, modulam a atividade dos peptídeos opioides endógenos e ativam o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA). Todo esse processo resulta em uma alta densidade de receptores opioides nos terminais nervosos periféricos, que contribuem para a eficácia antinociceptiva dos opioides nos tecidos inflamados. Nos estágios iniciais (primeiras horas) da resposta inflamatória, há uma contribuição tanto dos receptores opioides centrais quanto dos periféricos; entretanto, nos estágios mais tardios (vários dias), a analgesia endógena é mediada predominantemente por receptores periféricos, tornando-se, então, mais prevalente com a duração e intensidade da inflamação8,12.

Opioides endógenos

A descoberta de receptores opioides em neurônios sensoriais gerou a pesquisa de peptídeos ligantes endógenos nos tecidos com processos inflamatórios. Atualmente conhecemse três famílias desses peptídeos, que são expressos e regulados em granulócitos, macrófagos e linfócitos, tanto em roedores quanto em humanos. Cada família se origina de um gene distinto e de um dos três precursores proteicos - a proopiomelanocortina (POMC), a proencefalina (PENK) e a prodinorfina - em que são processados a endorfina, a encefalina e a dinorfina, respectivamente. Esses peptídeos exibem diferentes afinidades pelos receptores opioides: µ (endorfina e encefalina), Δ (encefalina e endorfina) e (dinorfina) e são detectados em várias células imunes13.

Tornou-se claro a partir de modelos animais que, concomitantemente com os efeitos proinflamatórios e proálgicos, mediados por uma miríade de mediadores liberados nos tecidos lesados, há mecanismos endógenos que contrarregulam a dor e a inflamação. Consistentemente, em experimentos com câncer ósseo, bem como em humanos submetidos a cirurgias de joelho, a injeção local de antagonistas de opioides nos locais inflamados causou exacerbação do quadro álgico14. Isso indica fortemente que peptídeos opioides endógenos são continuadamente liberados e têm uma ação de combate à dor.

Em estudos com ratos, demonstrou-se que nos leucócitos atraídos e migrados em direção ao local de lesão tecidual e que contêm opioides endógenos há uma coexpressão de receptores de quimiocinas e de bradicinina. Quando há depleção de granulócitos, imunossupressão ou bloqueio de quimiocinas e neurocininas, há uma redução significante da antinocicepção15-17. Em contrapartida, há uma melhoria da analgesia quando se transferem linfócitos alogênicos ou leucócitos polimorfonucleares (PMN) nos casos de imunossupressão18,19. Outros locais de produção de opioides endógenos são conhecidos, tais como as adrenais, a hipófise e os neurônios aferentes; entretanto, não têm a mesma relevância do que as células produtoras dos locais de inflamação20.

Implicações clínicas

Receptores opioides estão presentes em terminais periféricos de neurônios sensoriais e são capazes de produzir analgesia. Peptídeos opioides são produzidos por células sinoviais, mastócitos, linfócitos, neutrófilos e monócitos que migram para os locais de lesão21,22. O bloqueio de receptores da região intra-articular de joelhos de humanos, com a administração local de naloxona, resultou em aumento significante da dor pós-operatória23. Analisados conjuntamente, esses dados sugerem que em situações de stress os opioides são tonicamente liberados nos tecidos inflamados e ativam receptores periféricos opioides capazes de atenuar a dor. Isso constitui um novo conceito de controle intrínseco da dor que envolve mecanismos tradicionalmente usados pelas células do sistema imunológico para responder aos seus agressores. Também provê novas questões em dor associada a um comprometimento do sistema imunológico, como em pacientes com câncer e outras afecções. O aumento da produção, migração e liberação de opioides endógenos a partir das células imunes pode ser uma nova opção para o desenvolvimento de agentes que atuem perifericamente e sejam destituídos dos efeitos centrais indesejáveis dos opioides exógenos.

OPIOIDES EXÓGENOS E O SISTEMA IMUNOLÓGICO

A administração de opioides pode afetar o sistema imunológico de várias formas; entretanto, muitas dúvidas cercam esse fenômeno, tais como qual a melhor maneira de mensurá-las, qual o valor de ensaios com a proliferação e funcionalidade de linfócitos e das demais células imunes; ou com a avaliação da comunicação entre as células; ou com a expressão de receptores envolvidos no reconhecimento e na apresentação de antígenos; ou ainda em relação ao balanço de citocinas, além da necessidade de entender qual o significado biológico de tais mudanças. Adicionalmente, a maioria dos estudos sobre o assunto é com organismos não submetidos à dor, o que pode alterar a interpretação dos resultados24.

Mecanismos de imunomodulação induzidos por opioides

Há dois mecanismos diferentes de imunomodulação pelos opioides, um in vitro e outro in vivo. No primeiro caso, os experimentos têm demonstrado que a morfina e outros opioides prejudicam a função quimiotáxica e fagocítica de neutrófilos e monócitos e reduzem as respostas efetoras de linfócitos B e T, bem como aumentam a apoptose de linfócitos e células fagocíticas25-27. Os estudos in vivo demonstraram ainda um efeito indireto dos opioides, especialmente da morfina, envolvendo redução da função de células NK e da atividade proliferativa linfocítica em resposta a mitógenos, supressão de citocinas inflamatórias, além da ativação do sistema nervoso simpático que promove elevados níveis de noradrenalina e está relacionada à imunodepressão28,29. Esses efeitos parecem estar relacionados à regulação descendente da proteína cinase C, a ações mediadas pela somatostatina, ao engajamento de enzimas proapoptóticas e à alteração da liberação de óxido nítrico30-33.

Administração aguda de opioides e o sistema imunológico

Vários estudos em animais mostram que a morfina administrada agudamente tem efeito imunossupressor, mesmo em doses bem diversas, que variam de 5 a 50 mg.kg-1 34-38. Em humanos há menos estudos, mas os resultados são consistentes com a imunodepressão. Entretanto, em relação aos outros opioides, esse quadro muda, pois com o fentanil o efeito é transitório e inexistente com a buprenorfina e o tramadol39,40. Os opioides sintéticos possivelmente exibam esse efeito por sua interação mais fraca com os receptores opioides presentes nos leucócitos.

Um aspecto importante dos casos agudos é o fato de o estímulo doloroso estar relacionado por si só com a imunossupressão (pela liberação de cortisol), alterando a recuperação de eventos agressivos, como os procedimentos cirúrgicos. Pacientes em recuperação pós-cirúrgica apresentam redução importante da atividade proliferativa linfocitária, da imunidade mediada por células, além da alteração no balanço dos linfócitos T41,42. Essas repercussões são tão maiores quanto maior a cirurgia e a intensidade da dor. Daí, o emprego dos opioides pode ser considerado benéfico.

Em um estudo analisando a presença de pneumonia em pacientes idosos submetidos a revascularização do miocárdio, a análise multivariada mostrou uma associação entre a doença e doses elevadas de morfina, apesar do número do grupo ser pequeno, com intervalo de confiança largo43. Outros autores observaram, em contrapartida, que pequenas doses de morfina (15 mcg.kg-1.h-1) por via endovenosa protegeram pacientes alcoólatras de desenvolverem pneumonia após operações para câncer44. Esses estudos mostram claramente dados contraditórios em relação à ação imunológica dos opioides no perioperatório.

Administração crônica de opioides e o sistema imunológico

Em animais, o estudo do uso crônico de opioides tem sido feito através de injeções repetidas em vários períodos de tempo ou de dispositivos implantáveis, comumente usados para avaliação de tolerância e dependência. Injeções diárias de doses maiores de morfina (30-50 mg.kg-1) suprimiram a atividade de células do tipo NK (ACLNK), que não foi observado nos controles em ratos45. Em outro estudo, injeções subcutâneas de 40 mg.kg-1 de morfina durante 24 horas resultaram em prejuízo da atividade de macrófagos e, após três dias, houve bacteremia, bem como crescimento bacteriano em líquido peritoneal, fígado, baço, rins, coração e pulmão. Esses efeitos foram bloqueados quando se administrou naloxona, antagonista puro dos opioides, antes de cada dose de morfina, o que implica um mecanismo dependente do receptor opioide46. Outros autores, usando modelos animais parecidos, sugerem que o hospedeiro fica mais suscetível a alguns tipos de infecções e até a disseminação metastática de doenças neoplásicas47,48. Em contrapartida, num interessante trabalho feito com ratos que tinham hiperalgesia importante associada a melanoma, o pré-tratamento com morfina reduziu de forma significante a propagação tumoral metastática, demonstrando um efeito benéfico da morfina no caso do tratamento da dor de origem oncológica49.

Em humanos, estudo feito com doses de morfina oral que variaram de 90 a 150 mg durante 36 a 60 horas resultou em significante supressão da atividade citotóxica celular dependente de anticorpos (ADCC) em comparação com controles; entretanto, em relação à ACLNK não foi observada diferença significante entre os grupos50.

Não foram encontrados trabalhos que examinem o papel da exposição aos opioides em relação à piora de indicadores em indivíduos infectados que estejam em unidades de terapia intensiva51. Em pacientes hospitalizados com queimaduras, autores observaram algum tipo de prejuízo, como menor tempo para a primeira infecção; entretanto, esse resultado não pode ser generalizado, em virtude da dificuldade de replicação do modelo do estudo e da grande possibilidade de viés52.

No estudo Neopain, um grande número de pacientes foi aleatório para receber doses liberais de morfina versus doses mínimas em prematuros intubados em ventilação mecânica. O objetivo do estudo não foi examinar complicações infecciosas, mas outras complicações, como hemorragia ventricular e óbito, e os autores não relataram diferenças entre os grupos em relação ao aparecimento de infecção53.

Relevância clínica

Embora vários estudos apontem para um efeito imunodepressor dos opioides, a relevância clínica dessas observações continua incerta e serve apenas como um prerrequisito para que novas investigações nesta área sejam conduzidas. Recomendações definitivas para a aplicação de opioides, nas mais variadas situações da prática clínica em relação às consequências imunológicas desses fármacos, ainda não podem ser dadas até o momento presente. Como cada substância parece ter um efeito diferente, estudos adicionais com outros opioides, além da morfina, devem ser feitos. Ainda, subpopulações específicas, tais como imunodeprimidos e pacientes em estado crítico, também devem ser objeto de pesquisa.

Submetido em 28 de agosto de 2011.

Aprovado para publicação em 19 de janeiro de 2012.

Recebido da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2012

    Histórico

    • Recebido
      28 Ago 2011
    • Aceito
      19 Jan 2012
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