Acessibilidade / Reportar erro

Uso de sugamadex em doença de Strumpell-Lorrain: relato de dois casos

Resumos

CONTEÚDO: A doença de Strumpell-Lorrain, ou paraparesia espástica familiar (PEF), é uma doença hereditária neurológica rara, caracterizada principalmente por graus variáveis de rigidez e enfraquecimento dos músculos, com comprometimento cognitivo, surdez e ataxia nos casos mais graves. Descrevemos os casos de duas irmãs com PEF, agendadas para colecistectomia e colectomia subtotal, respectivamente. Também descrevemos o manejo anestésico em ambos os casos e revisamos a literatura sobre essa doença em relação à anestesia.

BLOQUEADOR MUSCULAR, Rocurônio; DOENÇAS, Raras; Paraplegia Espástica Hereditária


CONTENT: Strumpell-Lorrain disease - or familial spastic paraplegia (FSP) - is a rare hereditary neurological disorder, mainly characterized by variable degrees of stiffness and weakening of the muscles, with cognitive impairment, deafness, and ataxia in the more severe cases. We describe two female siblings with FSP programmed for cholecystectomy and subtotal colectomy, respectively, and also how we dealt with the anesthetic management in both cases and review the literature on this disease in relation to anesthesia.

Spastic Paraplegia, Hereditary; Anesthesia; Neuromuscular blockade


CONTENIDO: La enfermedad de Strumpell-Lorrain, o paraparesia espástica familiar (PEF), es una enfermedad hereditaria neurológica rara, caracterizada principalmente por grados variables de rigidez y debilitamiento de los músculos, con el compromiso cognitivo, la sordera y la ataxia en los casos más graves. Describimos aquí dos casos de dos hermanas con PEF, citadas para colecistectomía y colectomía subtotal respectivamente. Describimos también el manejo anestésico en ambos casos y revisamos la literatura sobre esa enfermedad con relación a la anestesia.

BLOQUEO NEUROMUSCULAR, Rocurónio; ENFERMIDAD, Pocos; Paraplejia Espástica Hereditaria


INFORMAÇÃO CLÍNICA

Uso de sugamadex em doença de Strumpell-Lorrain: relato de dois casos

José Antonio Franco-HernándezI; Luis Muñoz RodríguezII; Pilar Jubera Ortiz de LandázuriII; Alejandra García HernándezII

IMédico Residente do Departamento de Anestesiologia e Reanimação, Hospital Universitário Miguel Servet, Zaragoza, Espanha

IIMedico da Equipe do Departamento de Anestesiologia e Reanimacao, Hospital Universitario Miguel Servet, Zaragoza, Espanha

Correspondência para Correspondencia para: José Antonio Franco-Hernández C/Condes de Aragón 18-7B 50009 - Zaragoza, España E-mail: jafh73@hotmail.com; jafh73@gmail.com

RESUMO

CONTEÚDO: A doença de Strumpell-Lorrain, ou paraparesia espástica familiar (PEF), é uma doença hereditária neurológica rara, caracterizada principalmente por graus variáveis de rigidez e enfraquecimento dos músculos, com comprometimento cognitivo, surdez e ataxia nos casos mais graves. Descrevemos os casos de duas irmãs com PEF, agendadas para colecistectomia e colectomia subtotal, respectivamente. Também descrevemos o manejo anestésico em ambos os casos e revisamos a literatura sobre essa doença em relação à anestesia.

Unitermos: BLOQUEADOR MUSCULAR, Rocurônio; DOENÇAS, Raras; Paraplegia Espástica Hereditária.

Introdução

A doença Strumpell-Lorrain - também conhecida como paraplegia espástica familiar ou hereditária (PEF ou PEH) - abrange um grupo de distúrbios neurológicos raros que afetam principalmente os neurônios motores superiores e causam rigidez e fraqueza nas pernas1.

Estima-se que a PEF afete 7,4 indivíduos em 100.000. É uma doença genética hereditária. A forma predominante da doença é autossômica dominante (AD), representando 70-80% de todos os casos1,2.

A paraplegia espástica hereditária é caracterizada principalmente por graus variáveis de rigidez e enfraquecimento dos músculos das pernas, espasmos musculares e problemas de controle da bexiga. Um número limitado de famílias afetadas pode apresentar algumas das seguintes alterações mais graves: retardo mental, demência, epilepsia, neuropatia periférica, retinopatia, surdez, ataxia, disartria e distúrbios do sistema extrapiramidal3.

O início da doença é normalmente gradual, lento e insidioso, com sintomas que tipicamente pioram progressivamente ao longo do tempo. A idade de início dos sintomas pode ser extremamente variável entre diferentes famílias, bem como entre os membros afetados da mesma família1-3.

O diagnóstico da PEF é normalmente feito com base em uma avaliação cuidadosa da história familiar e pessoal do paciente, exame físico completo e avaliação dos sintomas e achados característicos. A avaliação diagnóstica também pode incluir diferentes testes especializados (estudos neurofisiológicos ou genéticos)4.

O tratamento da doença envolve controle médico dos sintomas e fisioterapia. Atualmente, nenhum tratamento é capaz de retardar ou modificar o curso da doença, mas o baclofen pode ajudar a reduzir a espasticidade em alguns pacientes1,4.

Os pacientes com doenças neurológicas representam um desafio ao se planejar a anestesia. Em tais situações, uma seleção cuidadosa do tipo de fármaco e da dosagem é necessária. A anestesia é especialmente rara, notadamente em dois pacientes em um intervalo muito curto de tempo.

Descrevemos os casos de duas irmãs com PEF, respectivamente programadas para colecistectomia e colectomia subtotal, com intervalo de dois meses entre as duas cirurgias. O interesse principal deste trabalho é o fato de que ambas foram submetidas a anestesia geral, com o uso de um agente de reversão específico para bloqueio neuromuscular não despolarizante.

Relato de Caso 1

O primeiro caso foi o de uma mulher de 47 anos, com diagnóstico de PEF aos 23 anos, que era hipertensa e dependia de outras pessoas para praticar suas atividades básicas. O tratamento mantido com hidroclorotiazida e baclofeno. Os exames laboratoriais pré-operatórios (hemograma completo, bioquímica e coagulação) e radiografias de tórax não revelaram alterações relevantes.

Após entrada no centro cirúrgico, um cateter venoso foi inserido e midazolam (2 mg) administrado por via intravenosa. Na sala de cirugia, ECG, oxímetro de pulso, pressão arterial não invasiva, índice bispectral (BIS) e bloqueio neuromuscular (TOF e razão de TOF no músculo adutor do polegar) foram realizados. Após pré-oxigenação da paciente, indução anestésica foi realizada com fentanil (2 µg.kg-1), propofol (1,5 mg.kg-1) e rocurônio (0,6 mg.kg-1); a intubação orotraqueal não teve intercorrências. A manutenção foi feita com sevoflurano para uma concentração alveolar mínima (CAM) de 0,6 e remifentanil em perfusão contínua (0,1-0,2 µg.kg-1. min-1), com ajuste da dose para atingir os valores de BIS entre 35-50. O uso de bloqueador neuromuscular (BNM) não foi necessário durante a cirurgia.

Não houve incidentes hemodinâmicos ou respiratórios durante a cirurgia. Antes do fim da operação, 50 mg de dexcetoprofeno, 4 mg de ondansetron e 1 g de acetaminofeno foram administrados intravenosamente. A extubação transcorreu sem problemas após administração de sugamadex (2 mg.kg-1, peso corporal) por causa da presença de bloqueio neuromuscular moderado até que uma razão TOF superior a 0,9 foi obtida. A paciente recebeu alta da unidade de recuperação pós-anestésica e foi levada para a enfermaria do hospital dentro de três horas, sem efeitos adversos.

Relato de Caso 2

O segundo caso é referente à irmã mais jovem (43 anos) da paciente mencionada acima, que foi diagnosticada com PEF aos 16 anos. Nesse caso, o curso clínico foi mais grave, com surdez profunda, déficit cognitivo, déficit de visão importante, bexiga neurogênica, episódios recorrentes de volvo de sigmoide e megacolo ("dólicomegacolo"). O tratamento habitual da paciente era com baclofen, tizanidina, clonazepam e nicardipina. A paciente foi programada para colectomia subtotal laparoscópica e ileostomia como tratamento para os episódios recorrentes de volvo. Os exames laboratoriais préoperatórios (hemograma completo, bioquímica e coagulação) e radiografias de tórax não mostraram alterações além de uma leve anemia (hemoglobina 10 g.dL-1).

Após entrada no centro cirúrgico, um cateter venoso foi inserido e midazolam (1,5 mg) administrado por via intravenosa. A exploração não revelou nenhum sinal clínico que previsse uma intubação difícil. Na sala de operação, ECG, oxímetro de pulso, pressão arterial não invasiva, índice bispectral (BIS) e bloqueio neuromuscular (TOF e razão de TOF no músculo adutor do polegar) foram realizados. Após pré-oxigenação da paciente, indução anestésica foi realizada com fentanil (1,5 µg.kg-1), propofol (1,5 mg.kg-1) e rocurônio (0,6 mg.kg-1); não houve intercorrências durante a intubação orotraqueal. Um cateter venoso central foi inserido na veia jugular interna direita, sem incidentes. A manutenção foi realizada com infusão contínua de propofol (4-8 mg.kg-1.h-1) e remifentanil em perfusão contínua (0,1-0,2 µg.kg-1.min-1) até atingir os valores de BIS entre 35-50. O uso de relaxante não foi necessário durante a cirurgia.

Não houve alterações hemodinâmicas e respiratórias durante a cirurgia e problemas ventilatórios não foram observados na execução do pneumoperitônio para a laparoscopia. Antes do fim da operação, 4 mg de ondansetron, 1 g de paracetamol, 50 mg de dexcetoprofeno e 150 mg de fentanil foram administrados intravenosamente. A extubação transcorreu sem problemas após administração de sugamadex (2 mg.kg-1, peso corporal) por causa de presença de bloqueio neuromuscular moderado até que uma razão TOF superior a 0,9 foi obtida. A paciente foi transferida para a unidade de recuperção pós-anestésica, onde permaneceu por 48 horas com evolução favorável. Testes laboratoriais e estudos seriados de imagem foram feitos e apresentaram normalidade em todos os casos. A paciente recebeu alta hospitalar oito dias após o procedimento cirúrgico.

Discussão

Quase não há estudos na literatura sobre a segurança da anestesia geral versus raquianestesia em doença de Strumpell-Lorrain. Uma busca no banco de dados PubMed com as palavras-chave "Strumpell-Lorrain", "hereditary spastic paraplegia" e "anesthesia" rendeu um número muito limitado de artigos, principalmente no campo da anestesia obstétrica5.

Três dos artigos publicados usaram a raquianestesia: McTiernan e col.5 descreveram o uso da anestesia peridural para cesariana, enquanto Thomas e col.6 e Deruddre e col.7 usaram anestesia intradural também para cesariana. McIver e col.8, Kunisawa e col.9 e Dallman e col.10 decidiram usar anestesia geral para cesariana, cirurgia ortopédica e cirurgia abdominal, respectivamente.

O uso de bloqueadores neuromusculares é complicado em pacientes com paraplegia espástica familiar. A succinilcolina é contraindicada, pois pode induzir hipercalemia, e deve-se ter cuidado no uso de relaxantes musculares não despolarizantes, por causa do risco de relaxamento muscular exagerado. As fontes literárias não demonstraram que a anestesia regional exacerba os sintomas neurológicos11. Porém, a anestesia regional não é sempre possível. Portanto, a anestesia geral com bloqueadores neuromusculares não despolarizantes representaria uma opção segura, especialmente se considerarmos que agora temos medicamentos que oferecem reversão rápida e segura do bloqueio muscular induzido por rocurônio e vecurônio.

Em nossas duas pacientes, optamos pela anestesia geral por causa da duração e complexidade de ambas as operações.

A extubação de pacientes com PEF exige muito cuidado, especialmente se bloqueadores neuromusculares foram administrados durante a operação. Quando possível, os bloqueadores neuromusculares de ação prolongada devem ser evitados, com monitorização de rotina do relaxamento neuromuscular durante toda a operação e uso de um estimulador de nervos periféricos12. Uma razão TOF superior a 0,9 deve ser confirmada antes do despertar e a recuperação do paciente deve ser acelerada com neostigmina ou medicamentos, como o sugamadex, que tenham ligação seletiva com os bloqueadores neuromusculares aminoesteroides.

Embora a abordagem anestésica tenha diferido entre as duas operações (Anestesia venosa versus anestesia inalatória), houve concordância quanto à escolha do relaxante muscular (rocurônio) por causa da possibilidade de antagonizar seus efeitos com sugamadex.

Porque as deficiências funcionais foram semelhantes àquelas que antecederam a anestesia geral, o acompanhamento posterior de ambas as pacientes não revelou nenhuma piora significativa dos sinais neurológicos.

Conclusão

O principal destaque deste estudo é que ambas as pacientes foram submetidas à anestesia geral, com o uso de um agente de reversão específico para bloqueio neuromuscular não despolarizante, com total recuperação e sem agravamento dos sinais neurológicos preexistentes.

Este artigo é uma obra original que não foi apresentada em nenhum congresso e que não recebeu apoio financeiro.

Submetido em 2 de abril de 2012.

Aprovado para publicacao em 7 de maio de 2012.

Recebido do Hospital Universitario Miguel Servet, Zaragoza, Espanha

  • 1. McDermott CJ, White K, Bushby K, Shaw P - Hereditary spastic paraparesis: new developments. J Neurol Neurosurg Psychiatry, 2000;69:150-160.
  • 2. Scheltens P, Bruyn RPM, Hazenburg GJ - A Dutch family with autosomal dominant pure spastic paraparesis (Strumpell's disease). Acta Neurol Scand, 1990;82:169-173.
  • 3. Fink JK - Hereditary spastic paraplegia. Neurol Clin, 2002;20:711-726.
  • 4. Bruyn RP - The neuropathology of hereditary spastic paraparesis. Clin Neurol Neurosurg, 1992;94(suppl):S16-S18.
  • 5. McTiernan C, Haagenvik B - Strumpell's disease in a patient presenting for caesarean section. Can J Anaesth, 1999;46:679-682.
  • 6. Thomas I, Thomas M, Scrutton M - Spinal anaesthesia in a patient with hereditary spastic paraplegia: case report and literature review. Int J Obstet Anesth, 2006;15:254-256.
  • 7. Deruddre S, Marie M, Benhamou D - Subarachnoid anesthesia for cesarean delivery in a parturient with Strumpell-Lorrain disease. Anesth Analg, 2006;102:1910-1911.
  • 8. McIver T, Jolley D, Pescod D - General anaesthesia and caesarean section for a patient with hereditary spastic paraparesis (Strumpell's disease). Int J Obstet Anesth, 2007;16(2):190-191.
  • 9. Kunisawa T, Takahata O, Takayama K, Sengoku K, Suzuki A, Iwasaki H - Anaesthetic management of a patient with hereditary spastic paraplegia. Masui, 2002;51:64-66.
  • 10. Dallman M - Hereditary spastic paraplegia and neuromuscular blockade. Int Stud J Nurse Anesth, 2010;9(2):28-32.
  • 11. Aldrete JA, Reza-Medina M, Daud O et al. - Exacerbation of preexisting neurological deficits by neuraxial anesthesia: report of 7 cases. J Clin Anesth, 2005;17:304-313.
  • 12. Murphy GS - Residual neuromuscular blockade: incidence, assessment, and relevance in the postoperative period. Minerva Anestesiol, 2006;72:97-109.
  • Correspondencia para:

    José Antonio Franco-Hernández
    C/Condes de Aragón 18-7B
    50009 - Zaragoza, España
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013

    Histórico

    • Recebido
      02 Abr 2012
    • Aceito
      07 Maio 2012
    Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: bjan@sbahq.org