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Cicloplegia no pós-operatório de cirurgia oftalmológica: NÃO é a anestesia

Caro Editor,

Há muito que a prática da anestesia vive cercada por uma aura mística. Isso pode ser demonstrado, por exemplo, pela atual falta de provas concretas sobre o mecanismo de ação dos anestésicos voláteis que, na maioria das vezes, é conjetural.1. McKay RE. Inhaled anesthetics. In: Miller RD, Pardo MC, editors. Basics of anesthesia. 6th ed. Philadelphia: Elsevier; 2011. p. 82. Essas margens obscuras do conhecimento chegam aos profissionais não-anestesiologistas que usam técnicas anestésicas, às vezes, sem compreender total-mente a gama do conhecimento associado a essas técnicas (isto é, infiltração de anestésicos locais, sedação). Essa mistificação da anestesia também é exemplificada por anestésicos e anestesiologistas que são injustamente acusados devido a complicações pós-operatórias que não podem ser explicadas de outra forma.

Uma paciente saudável, de 55 anos de idade, apresentou-se para o implante de lente fácica de câmara anterior para correção de miopia do olho esquerdo. Algumas semanas antes, o mesmo procedimento foi realizado no olho direito sem intercorrências, com o uso de anestesia retrobulbar. Monitores padrão, de acordo com a Sociedade Americana de Anestesiologistas (ASA), foram colocados; a paciente foi pré-medicada com 2mg de midazolam por via intravenosa e o bloqueio retrobulbar foi realizado em seguida. Com o globo ocular em posição primária, uma agulha de 31mm e calibre 23G foi inserida através da pele do aro orbital ínfero-temporal. A agulha foi tangencialmente avançada 15mm e, subsequentemente, redirecionada para cima e para o interior para atingir a proximidade do cone muscular. Com aspiração prévia negativa, 3mL de bupivacaína a 0,75% foram injetados. Após cinco minutos, oftalmoplegia interna e externa, bem como anestesia ocular foram obtidas, e a cirurgia prosseguiu sem intercorrências.

No primeiro dia de pós-operatório a paciente queixou-se de dor equivalente ao escore 7/10 (em uma escala visual analógica EVA] de 11 pontos, ancorada com 0=sem dor e 10=pior dor imaginável) no olho esquerdo, com midríase fixa associada, e os movimentos extraoculares dos olhos estavam preservados. A paciente foi avaliada pelo oftalmologista, os achados foram considerados como bloqueio anestésico residual e analgésicos foram prescritos. A paciente foi rea-valiada três dias mais tarde com sintomas persistentes; o aumento da pressão intraocular foi observado e tratado pelo oftalmologista que, novamente, considerou os achados secundários à anestesia; e posteriormente discutidos com o anestesiologista.

Uma revisão anatômica mostrou o gânglio ciliar como a única estrutura no caminho da agulha que, quando comprometida, poderia levar à cicloplegia.2. Putz R, Pabst R. Atlas de Anatomia Humana Sobotta, vol. 1, 21st ed. Madrid: Panamericana; 2001. p. 377. Uma revisão bibliográfica minuciosa não mostrou casos de lesões gangli-onares ciliares ou cicloplegia a longo prazo após bloqueios retrobulbares. Contudo, dois casos semelhantes foram descritos após o implante intraocular de lente fácica,3. Park SH, Kim SY, Kim HI, et al. Urrets-Zavalia syndrome following iris-claw phakic intraocular lens implantation. J Refract Surg. 2008;24:959-61.,4. Yuzbasioglu E, Helvacioglu F, Sencan S. Fixed, dilated pupil after phakic intraocular lens implantation. J Cataract Refract Surg. 2006;32:174- 6. pro-duzindo o diagnóstico de Síndrome de Urrets-Zavalia, uma complicação pós-operatória rara, geralmente presente após ceratoplastia penetrante.3. Park SH, Kim SY, Kim HI, et al. Urrets-Zavalia syndrome following iris-claw phakic intraocular lens implantation. J Refract Surg. 2008;24:959-61.5. Urrets Zavalia Jr A. Fixed, dilated pupil, iris atrophy and secondary glaucoma. Am J Ophthalmol. 1963;56:257- 65. O enchimento tardio dos capi-lares da íris e a perfusão diminuída foram observados por meio de angiofluoresceinografia, confirmando o diagnóstico.

Podemos extrair duas lições do caso exposto acima: 1) Urrets-Zavalia é uma complicação rara após a cirurgia intraocular para o implante de lente fácica, da qual os anes-tesiologistas que aplicam bloqueios oculares precisam estar cientes; 2) a importância da disponibilidade de literatura para esclarecer as acusações indevidas com base na mística da anestesia.

References

  • 1
    McKay RE. Inhaled anesthetics. In: Miller RD, Pardo MC, editors. Basics of anesthesia. 6th ed. Philadelphia: Elsevier; 2011. p. 82.
  • 2
    Putz R, Pabst R. Atlas de Anatomia Humana Sobotta, vol. 1, 21st ed. Madrid: Panamericana; 2001. p. 377.
  • 3
    Park SH, Kim SY, Kim HI, et al. Urrets-Zavalia syndrome following iris-claw phakic intraocular lens implantation. J Refract Surg. 2008;24:959-61.
  • 4
    Yuzbasioglu E, Helvacioglu F, Sencan S. Fixed, dilated pupil after phakic intraocular lens implantation. J Cataract Refract Surg. 2006;32:174- 6.
  • 5
    Urrets Zavalia Jr A. Fixed, dilated pupil, iris atrophy and secondary glaucoma. Am J Ophthalmol. 1963;56:257- 65.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2014
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