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Sedação com dexmedetomidina para realização de eletroencefalograma em paciente portadora de síndrome de Angelmann: relato de caso

RESUMO

INTRODUÇÃO:

a síndrome de Angelman (SA) é caracterizada por retardo mental grave, distúrbio da fala e desordem convulsiva. Essa condição genética rara está associada a alterações do receptor GABA-A. Pacientes portadores de SA necessitam ser sedados durante a feitura de eletroencefalograma (EEG), indicado para fins diagnósticos ou controle evolutivo. A dexmedetomidina, cuja ação independe do receptor GABA, promove sono semelhante ao fisiológico e pode viabilizar a feitura desse exame em pacientes com SA.

RELATO DE CASO:

paciente feminina, 14 anos, portadora de SA, fez EEG sob sedação com dexmedetomidina. O procedimento transcorreu sem intercorrências e não foi registrada bradicardia ou depressão respiratória. O exame foi interpretado com sucesso e atividade epileptiforme não foi observada.

CONCLUSÃO:

a dexmedetomidina promoveu sedação satisfatória, foi bem tolerada e possibilitou a interpretação do EEG em paciente com SA e desordem convulsiva.

Palavras-chave:
Síndrome de Angelman; Eletroencefalograma; Sedação profunda; Dexmedetomidina

ABSTRACT

INTRODUCTION:

Angelman syndrome is characterized by severe mental retardation and speech and seizure disorders. This rare genetic condition is associated with changes in GABAA receptor. Patients with Angelman syndrome need to be sedated during an electroencephalogram ordered for diagnostic purposes or evolutionary control. Dexmedetomidine, whose action is independent of GABA receptor, promotes a sleep similar to physiological sleep and can facilitate the performing of this examination in patients with Angelman syndrome.

CASE REPORT:

Female patient, 14 years old, with Angelman syndrome; electroencephalogram done under sedation with dexmedetomidine. The procedure was uneventful and bradycardia or respiratory depression was not recorded. The examination was successfully interpreted and epileptiform activity was not observed.

CONCLUSION:

Dexmedetomidine promoted satisfactory sedation, was well tolerated and enabled the interpretation of the electroencephalogram in a patient with Angelman syndrome and seizure disorder.

Keywords:
Angelman syndrome; EEG; Deep sedation; Dexmedetomidine

Introdução

Pacientes portadores de desordens genéticas comuns ou não, com ou sem anormalidades congênitas, apresentam desafios únicos para o profissional responsável por administrar sedação ou anestesia durante procedimentos cirúrgicos ou técnicos. A síndrome de Angelman (SA) é um claro exemplo dessa situação, que requer cuidados especiais por causa do risco aumentado de complicações.11 Butler MG, Hayes BG, Hathaway MM, Begleiter ML. Specific genetic diseases at risk for sedation/anesthesia complications. Anesth Analg. 2000;91:837-55. Pacientes com SA apresentam desordem convulsiva, fazem uso regular de anticonvulsivantes e necessitam de fazer eletroencefalograma (EEG) para o diagnóstico ou controle evolutivo. Porém, por causa da alteração de comportamento, comum a várias outras condições neurológicas, a sedação durante EEG é frequentemente necessária. Essa é peculiar porque os fármacos sedativos e hipnóticos habitualmente usados em anestesia interferem nos padrões basais do EEG22 Jan MMS, Aquino MF. The use of chloral hydrate in pediatric electroencephalography. Neurosciences. 2001;6:99-102. e inviabilizam seu uso durante o exame. Além disso, na SA observam-se particularidades genéticas relacionadas ao receptor do ácido gama-amino-butírico do tipo A (GABAA),33 Ramanathan KR, Muthuswamy D, Jenkins BJ. Anaesthesia for Angelman syndrome. Anaesthesia. 2008;63:659-61. que é alvo de alguns fármacos sedativos e hipnóticos. O objetivo do presente relato é discutir o uso de dexmedetomidina para sedação durante EEG, com foco nos aspectos singulares da SA.

Relato de caso

Paciente feminina, 14 anos, 43 kg, com diagnóstico de SA, cursando com crises convulsivas, em uso regular de fenobarbital. Relato de asma brônquica e cifoescoliose, em uso de colete toracocervical. Os exames laboratoriais e o eletrocardiograma pré-operatório foram normais. Na sala de exames a paciente foi monitorada com eletrocardiografia, oximetria de pulso e mensuração da pressão arterial não invasiva. Acesso venoso periférico foi puncionado para permitir a infusão contínua de dexmedetomidina (bolus de 1 µg.kg-1 e manutenção entre 0,05 a 0,2 µg.kg.h-1). A paciente manteve relativa estabilidade durante o procedimento. Houve moderada queda da pressão arterial média (PAM) durante a infusão da dose inicial, quando a PAM variou de 59 mmHg até 40 mmHg. A frequência cardíaca oscilou entre 80 a 85 bpm e não foi observada bradicardia. Apresentou episódio de obstrução da via aérea alta, corrigida com cânula orofaríngea, porém a saturação de oxigênio manteve-se acima de 92% sem necessidade de oxigênio suplementar. As doses de dexmedetomidina foram ajustadas conforme o nível de sedação e os efeitos hemodinâmicos e não se constatou movimentação espontânea durante os 20 minutos de gravação do EEG. A paciente despertou espontaneamente 20 minutos após o término do exame e foi liberada da unidade após 90 minutos. A análise do EEG foi feita por médico neurologista que constatou estágios I e II de sono NREM e ausência de potenciais epileptiformes.

Discussão

De incidência rara, estimada em 1/10.000 a 1/40.000,44 Laan LA, Vein AA. Angelman syndrome: is there a characteristic EEG? Brain Dev. 2005;27:80-7. a SA foi descrita inicialmente por Harry Angelman, em 1965.55 Angelman H. ''Puppet'' children. A report on three cases. Dev Med Child Neurol. 1965;7:681-8. Essa síndrome clínica inclui desordem do desenvolvimento neurológico caracterizada por graves dificuldades de aprendizagem, ataxia, convulsões e características faciais dismórficas. A expressão facial sociável e feliz motivou a denominação inicial de "criança fantoche". A maioria das crianças apresenta retardo de desenvolvimento e atraso no crescimento da cabeça durante o primeiro ano de vida. A fala também não se desenvolve na maior parte dos pacientes. A SA é causada por uma variedade de anormalidades genéticas que incluem a região cromossômica 15q11-13, segmento esse responsável por codificar a subunidade gama do receptor GABAA.66 Clayton-Smith J, Laan L. Angelman syndrome: a review of the clinical and genetic aspects. J Med Genet. 2003;40:87-95.

Alguns pontos relevantes merecem destaque em relação às particularidades da sedação para EEG em pacientes portadores de SA. O primeiro deles inclui problemas anestésicos comuns, como aqueles decorrentes de alterações anatômicas ou respostas hemodinâmicas. Anormalidades craniofaciais, incluindo microcefalia, olhos profundos, palato alto e arqueado e protrusão da língua,33 Ramanathan KR, Muthuswamy D, Jenkins BJ. Anaesthesia for Angelman syndrome. Anaesthesia. 2008;63:659-61. podem representar problemas no manuseio da via aérea e na intubação traqueal. Na paciente em questão, obstrução alta associada à macroglossia foi corrigida com cânula orofaríngea, mas não se constatou depressão respiratória e nem mesmo ventilação sob máscara foi necessária. A despeito disso, todo o suporte para abordagem de via aérea difícil esteve disponível, até porque a asma, a cifoescoliose e o uso de colete toracocervical representariam fatores agravantes para complicações caso uma abordagem mais invasiva da via aérea fosse necessária. Bradicardia relacionada ao predomínio vagal e enfatizada em outros relatos prévios77 Errando CL. Comments on a case report of Angelman syndrome anaesthesia. Anaesthesia. 2008;63:1145-6. não foi reportada durante a infusão da dexmedetomidina. Ao contrário, hipotensão moderada foi observada, porém sem necessidade de intervenção específica.

O segundo ponto refere-se às alterações do receptor GABAA, tendo em vista sua importância como alvo de ação de fármacos comumente usados em sedação e anestesia,33 Ramanathan KR, Muthuswamy D, Jenkins BJ. Anaesthesia for Angelman syndrome. Anaesthesia. 2008;63:659-61. como o propofol. Apesar da relevância desse aspecto, informações clínicas sobre os efeitos de tais medicamentos nesse grupo especial de pacientes são escassas e não estão totalmente esclarecidas. Estima-se que ocorra uma variação da resposta clínica ou mesmo uma resistência a tais fármacos, motivo pelo qual alguns autores sugerem que sua associação a outros fármacos que atuam em vias diferentes seria uma boa estratégia para a sedação e/ou anestesia geral.77 Errando CL. Comments on a case report of Angelman syndrome anaesthesia. Anaesthesia. 2008;63:1145-6. A dexmedetomidina, cujo alvo de ação é o receptor a2, representaria, portanto, uma opção, não somente como agente único, mas também como adjuvante de sedação ou anestesia geral.

O último aspecto relevante refere-se à interpretação do traçado do EEG, considerando-se as possíveis interferências no seu padrão basal, resultantes da administração de vários anestésicos e sedativos, incluindo proprofol, benzodiazepínicos e anestésicos inalatórios. Mesmo o hidrato de cloral, que é tradicionalmente usado para esse fim,22 Jan MMS, Aquino MF. The use of chloral hydrate in pediatric electroencephalography. Neurosciences. 2001;6:99-102. pode interferir no padrão do EEG,88 Thoresen M, Henriksen O, Wannag E, Laegreid L. Does a sedative dose of chloral hydrate modify the EEG of children with epilepsy? Electroencephalogr Clin Neurophysiol. 1997;102:152-7. além de apresentar falha da sedação em 27% dos pacientes com alteração de comportamento.99 Rumm PD, Takao RT, Fox DJ, Atkinson SW. Efficacy of sedation of children with chloral hydrate. South Med J. 1990;83:1040-3. No presente relato, embora alterações eletroencefalográficas comumente vistas na SA44 Laan LA, Vein AA. Angelman syndrome: is there a characteristic EEG? Brain Dev. 2005;27:80-7. não tenham sido observadas, a análise desse exame foi feita com sucesso e favoreceu o controle clínico.

Por todos os motivos citados, a dexmedetomidina aparece como um recurso promissor para pacientes portadores de SA, especialmente aqueles candidatos ao EEG sob sedação. Sendo um agonista adrenérgico a2 altamente seletivo, ela tem mecanismo de ação independente do receptor GABA e promove sedação muito semelhante ao sono fisiológico, com depressão respiratória mínima. Tem ainda propriedade antipruriginosa, antiemética, analgésica e simpaticolítica. Atua em vários locais no sistema nervoso central, mas os efeitos sedativos e ansiolíticos resultam principalmente de sua atividade no locus ceruleus do tronco cerebral. No corno dorsal da medula espinhal modula a liberação de substância P e produz seus efeitos analgésicos. A sedação é acompanhada de mínimos efeitos na função respiratória. 1010 Gertler R, Brown HC, Mitchell DH, Silvius EM. Dexmedetomidine: a novel sedative-analgesic agent. Proc (Bayl Univ Med Cent). 2001;14:13-21. Em adultos voluntários nenhuma interferência no padrão basal do EEG foi observada, comparando-se o sono natural com o sono induzido com a dexmedetomidina.1111 Huupponen E, Maksimow A, Lapinlampi P, et al. Electroencephalogram spindle activity during dexmedetomidine sedation and physiological sleep. Acta Anaesthesiol Scand. 2008;52:289-94. Considerando-se que esses resultados se apliquem também aos pacientes com epilepsia e alterações de comportamento, esse fármaco tende a configurar-se como uma boa escolha para sedação durante o EEG. Alguns estudos retrospectivos apontam para a eficácia e segurança desse fármaco em sedação para exames complementares, incluindo EEG, 1212 Lubisch N, Roskos R, Berkenbosch JW. Dexmedetomidine for procedural sedation in children with autism and other behavior disorders. Pediatr Neurol. 2009;41:88-94.and1313 Ray T, Tobias JD. Dexmedetomidine for sedation during electroencephalographic analysis in children with autism, pervasive developmental disorders, and seizure disorders. J Clin Anesth. 2008;20:364-8. embora não se tenham localizado estudos prospectivos que avaliassem as possíveis interferências da dexmedetomidina sobre o EEG em pacientes especiais.

Portanto, a despeito de todas as limitações, o presente relato destaca a boa tolerância e a adequada sedação promovida pela dexmedetomidina, que viabilizou a gravação e a interpretação do EEG. Apesar da pouca evidência, esse fármaco pode representar uma opção para sedação durante esse exame em pacientes com disfunções neurológicas crônicas e alteração de comportamento, incluindo aqueles portadores de SA. Entretanto, estudos prospectivos e controlados que foquem especialmente os efeitos do fármaco sobre o EEG são necessários para corroborar tais benefícios.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2013
  • Aceito
    10 Jun 2013
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