Acessibilidade / Reportar erro

Levosimendana como tratamento para insuficiência renal aguda associada a choque cardiogênico após fratura de quadril

Resumo

Fármacos inotrópicos fazem parte do tratamento de insuficiência cardíaca; no entanto, o tratamento com inotrópicos tem sido amplamente debatido devido ao aumento da incidência de efeitos adversos e da mortalidade. Recentemente, levosimendana, um agente inotrópico positivo, provou ser eficaz na insuficiência cardíaca aguda, reduz a mortalidade e melhora o desempenho cardíaco e renal. Relatamos o caso de uma paciente de 75 anos, com história de insuficiência cardíaca e renal e fratura de quadril. Levosimendana foi usada na preparação do pré-operatório como terapia adjuvante para melhorar a função cardíaca e renal e permitir a cirurgia.

PALAVRAS-CHAVE
Levosimendana; Choque cardiogênico; Insuficiência renal; Fratura de quadril; Cuidados perioperatórios

Abstract

Inotropic drugs are part of the treatment of heart failure; however, inotropic treatment has been largely debated due to the increased incidence of adverse effects and increased mortality. Recently levosimendan, an inotropic positive agent, has been proved to be effective in acute heart failure, reducing the mortality and improving cardiac and renal performance. We report the case of a 75-year-old woman with history of heart and renal failure and hip fracture. Levosimendan was used in preoperative preparation as an adjuvant therapy, to improve cardiac and renal function and to allow surgery.

KEYWORDS
Levosimendan; Cardiogenic shock; Renal failure; Hip fracture; Perioperative care

Introdução

O desenvolvimento de insuficiência cardíaca aguda durante o período perioperatório aumenta a morbidade e mortalidade.11 Toller WG, Metzler H. Acute perioperative heart failure. Curr Opin Anaesthesiol. 2005;18:129-35. A insuficiência cardíaca é um problema de saúde pública importante; sua incidência chega a 6-10% na população com mais de 65 anos. Levosimendana (Simdax® - Orionpharma) é um tratamento recomendado para insuficiência cardíaca aguda.22 Falk S. Anesthetic considerations for the patient undergoing therapy for advanced heart failure. Curr Opin Anaesthesiol. 2011;24:314-9. Seu mecanismo de ação permite um aumento da contratilidade33 Lilleberg J, Nieminem S, Akkila J, et al. Effects of a new calcium sensitizer, levosimendan, on hemodynamics, coronary blood flow an myocardial substrate utilization early after coronary artery bypass grafting. Eur J Heart Fail. 1998;19:660-8. e uma redução tanto da pré-carga quanto da pós-carga e melhora o volume sistólico e o débito cardíaco sem afetar de forma adversa a função diastólica.44 Follath F. Newer treatments for decompensated heart failure: focus on levosimendan. Drug Des Dev Ther. 2009;3:73-8.,55 Tavares M, Rezlan E, Vostroknoutova I, et al. New pharmacologic therapies for acute heart failure. Crit Care Med. 2008;36:S112-20. Os efeitos hemodinâmicos positivos de levosimendana também induzem um resultado positivo sobre a perfusão tecidual, como relatado com o seu uso para o tratamento de choque cardiogênico associado à insuficiência renal.66 Yilmaz MB, Yalta K, Yontar C, et al. Levosimendan improves renal function in patients with acute decompensated heart failure: comparison with dobutamine. Cardiovasc Drugs Ther. 2007;21:431-5. Atualmente, há poucos estudos sobre o uso pré-operatório de levosimendana em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos não cardíacos.77 Ponschab M, Hochmair N, Ghazwinian N, et al. Levosimendan infusion improves haemodynamics in elderly heart failure patients undergoing urgent hip fracture repair. Eur J Anaesthesiol. 2008;25:627-33.

Relatamos o caso de uma paciente com fratura de quadril que desenvolveu insuficiência renal aguda secundária a choque cardiogênico antes de ser submetida à cirurgia para redução de fratura. Levosimendana foi introduzida no tratamento com o objetivo de melhorar as funções cardíaca e renal. Resulta em uma ferramenta eficaz para o desmame do paciente da hemofiltração antes da cirurgia.

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, 75 anos, com história de hipertensão arterial, fibrilação atrial crônica, insuficiência cardíaca congestiva com fração de ejeção de ventrículo esquerdo (FEVE) basal de 30%, um episódio de embolia pulmonar em 2004, insuficiência renal crônica (creatinina basal em 2,2 mg.mL-1), síndrome de apneia obstrutiva do sono associada à obesidade mórbida e com dislipidemia foi admitida no setor de emergência devido à queda acidental com fratura pertrocantérica do fêmur direito.

Durante a internação em enfermaria, enquanto aguardava a cirurgia, apresentou taquiarritmia, provavelmente associada à anemia aguda, que provocou tanto uma insuficiência cardíaca aguda quanto uma insuficiência renal aguda. Foi transferida para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

Recebeu o monitoramento básico (ECG, oximetria de pulso) e monitoramento avançado hemodinâmico, com uso de acesso venoso central (veia jugular interna direita), linha arterial central (artéria femoral esquerda) e sistema de monitoração hemodinâmico LiDCO (LiDCO™ plus Ltd, Cambridge, RU). Os parâmetros à admissão em UTI eram: pressão arterial invasiva de 90/60 mmHg; frequência cardíaca de 120 batimentos por minuto (ECG mostrou fibrilação atrial); SpO2 de 93% (com FiO2 = 0,5); índice cardíaco de 2,4 L.min-1.m-2 e resistência vascular sistêmica de 2500 dyn.s-1.cm-5. Apresentou insuficiência renal oligúrica aguda (creatinina sérica: 4,7 mg.dL-1; urea: 155 mg.dL-1) e sobrecarga de líquidos (saldo positivo de 1.787 mL nas últimas 24 h) refratária ao tratamento com diuréticos. Por essas razões, a terapia de substituição renal foi iniciada com hemofiltração venovenosa contínua (HFVVC), juntamente com ventilação não invasiva com dois níveis de pressão positiva (Bi-level Positive Airway Pressure - BiPAP).

Instabilidade hemodinâmica persistente e hipotensão foram tratadas inicialmente com o agente vasopressor e noradrenalina, em doses de 0,04 mcg.kg-1.min-1. Na ausência de melhoria, uma ecocardiografia transtorácica foi feita e diagnosticou disfunção sistólica e diastólica associadas à hipertensão arterial pulmonar, sem sinais de tromboembolismo recente.

Para criar condições mais favoráveis para a paciente no pré-operatório e melhorar a função renal, decidimos iniciar um tratamento com levosimendana a 0,05 mcg.kg-1.min-1, evitar a indução em bolus e aumentar gradualmente a dose até 0,1 mcg.kg-1.min-1, de acordo para a resposta hemodinâmica e a tolerância da paciente.

A melhoria progressiva da função renal, a recuperação espontânea e satisfatória da produção urinária e melhores valores analíticos permitiram suspender a terapia de substituição renal antes da cirurgia.

A paciente foi submetida à cirurgia no dia 17 da admissão, sob raquianestesia. A intervenção foi marcada pela perda significativa de sangue que exigiu transfusão intraoperatória de três unidades de concentrado de hemácias e duas unidades de plasma fresco congelado e transfusão de pós-operatório de quatro unidades de concentrado de hemácias e duas unidades de plasma fresco congelado, sem registro de qualquer disfunção do desempenho cardíaco. No dia 24, a paciente recebeu alta para a enfermaria, sem qualquer terapia de substituição renal ou tratamento com vasoativo.

Discussão

Devido à alta morbidade e mortalidade no período perioperatório, a insuficiência cardíaca em pacientes submetidos à cirurgia não cardíaca deve ser identificada e tratada em fase precoce para garantir um aprimoramento adequado no pré-operatório e obter melhores condições hemodinâmicas antes da cirurgia.

A insuficiência renal é altamente prevalente em pacientes com insuficiência cardíaca crônica e sua incidência pode chegar a 25%.88 Hillege HL, Nitsch D, Pfeffer MA, et al. Renal function as a predictor of outcome in a broad spectrum of patients with heart failure. Circulation. 2006;113:671-8. Além disso, essa queda da filtração glomerular pode piorar as taxas de morbidade e mortalidade em insuficiência cardíaca aguda.99 Smith GL, Vaccarino V, Kosiborod M, et al. Worsening renal function: what is a clinically meaningful change in creatinine during hospitalization with heart failure? J Card Fail. 2003;9:13-25.

Há poucos estudos sobre a eficácia da terapia pré-operatória para prevenir e tratar a deterioração da função cardíaca em pacientes submetidos à cirurgia de grande porte.77 Ponschab M, Hochmair N, Ghazwinian N, et al. Levosimendan infusion improves haemodynamics in elderly heart failure patients undergoing urgent hip fracture repair. Eur J Anaesthesiol. 2008;25:627-33.,1010 Stilianos K, Athina K, Panagiotis D, et al. Prophylactic preoperative levosimendan administration in heart failure patients undergoing elective non-cardiac surgery: a preliminary report. Hellenic J Cardiol. 2009;50:185-92. O uso profilático de agentes inotrópicos convencionais é controverso, pois pode causar um aumento do consumo de oxigênio pelo miocárdio, vasodilatação e risco de arritmias.1111 Tamargo J, López-Sendón J. Bases y evidencias clínicas de los efectos de los nuevos tratamientos farmacológicos en la insuficiencia cardiaca. Rev Esp Cardiol. 2004;57:447-64.

Após a sua recente introdução na prática clínica, levosimendana, graças a um mecanismo original de ação, tem provado ser eficaz para proporcionar uma melhoria da função cardíaca e da perfusão dos tecidos e estar associada à redução significativa da mortalidade em pacientes criticamente doentes.1212 Landoni G, Mizzi A, Biondi-Zoccai G, et al. Levosimendan reduces mortality in critically ill patients. A meta-analysis of randomized controlled studies. Minerva Anestesiol. 2010;76:276-86. Há relato de que o medicamento também apresenta efeitos anti-inflamatório, antioxidante e antiapoptótico.1313 Adamopoulos S, Parissis JT, Iliodromitis EK, et al. Effects of levosimendan versus dobutamine on inflammatory and apoptotic pathways in acutely decompensated chronic heart failure. Am J Cardiol. 2006;98:102-6. Levosimendana mostrou um efeito benéfico na função renal em pacientes com insuficiência renal estabelecida, provavelmente por causa do aumento do fluxo sanguíneo renal, devido ao aumento do débito cardíaco, à vasodilatação e a possíveis propriedades anti-inflamatórias.66 Yilmaz MB, Yalta K, Yontar C, et al. Levosimendan improves renal function in patients with acute decompensated heart failure: comparison with dobutamine. Cardiovasc Drugs Ther. 2007;21:431-5.,1414 Zorlu A, Yücel H, Yontar O, et al. Effect of levosimendan in patients with severe systolic heart failure and worsening renal function. Arq Bras Cardiol. 2012;98:537-43.

No presente caso, levosimendana foi usada como tratamento no período pré-operatório para aprimorar o desempenho cardíaco e melhorar a função renal antes da cirurgia. O tratamento provou ser eficaz; a paciente foi retirada com sucesso da substituição renal, foi submetida à intervenção e mostrou ter uma função cardíaca eficaz, pois resistiu às grandes e agudas alterações do volume intravascular.

O protocolo de tratamento recomendado pela bula de levosimendana consiste em uma dose de carga de 2,4 mcg.kg-1, em uma infusão rápida de aproximadamente 10 minutos, seguida de uma infusão contínua de 0,1 mcg.kg-1.min-1 durante 24 horas. Em pacientes com insuficiência miocárdica aguda, a administração de uma dose de carga tem sido associada a episódios de hipotensão difíceis de controlar com fármacos vasopressores.1515 Álvarez J, Bouzada M, Fernandez AL, et al. Comparación de los efectos hemodinámicos del Levosimendan con la dobutamina en pacientes con bajo gasto después de cirugía cardiaca. Rev Esp Cardiol. 2006;59:338-45. Para evitar esses episódios de hipotensão que podem piorar o prognóstico do paciente, alguns autores recomendam um protocolo mais cuidadoso: sem dose de carga e com um aumento gradual na taxa de infusão.1515 Álvarez J, Bouzada M, Fernandez AL, et al. Comparación de los efectos hemodinámicos del Levosimendan con la dobutamina en pacientes con bajo gasto después de cirugía cardiaca. Rev Esp Cardiol. 2006;59:338-45. No presente caso, a introdução progressiva da infusão de levosimendana não foi associada a episódios de hipotensão ou aumento da necessidade de vasoconstritores. A resistência sistêmica reduzida mostrou uma condição favorável, aumentou a perfusão renal e melhorou a microcirculação.

Conclusão

Levosimendana pode ser uma escolha válida a ser considerada no tratamento pré-operatório de insuficiência cardíaca descompensada associada à insuficiência renal. A principal propriedade do fármaco (efeitos inotrópicos e vasodilatadores positivos) permitiu a restauração da função renal e a preparação da paciente para a intervenção. Além disso, o novo equilíbrio entre o aumento da função cardíaca e a vasodilatação benéfica foi útil durante e após a intervenção, pois permitiu que o sistema cardiovascular de nossa paciente lidasse com as consequências da hemorragia e da fluidoterapia.

References

  • 1
    Toller WG, Metzler H. Acute perioperative heart failure. Curr Opin Anaesthesiol. 2005;18:129-35.
  • 2
    Falk S. Anesthetic considerations for the patient undergoing therapy for advanced heart failure. Curr Opin Anaesthesiol. 2011;24:314-9.
  • 3
    Lilleberg J, Nieminem S, Akkila J, et al. Effects of a new calcium sensitizer, levosimendan, on hemodynamics, coronary blood flow an myocardial substrate utilization early after coronary artery bypass grafting. Eur J Heart Fail. 1998;19:660-8.
  • 4
    Follath F. Newer treatments for decompensated heart failure: focus on levosimendan. Drug Des Dev Ther. 2009;3:73-8.
  • 5
    Tavares M, Rezlan E, Vostroknoutova I, et al. New pharmacologic therapies for acute heart failure. Crit Care Med. 2008;36:S112-20.
  • 6
    Yilmaz MB, Yalta K, Yontar C, et al. Levosimendan improves renal function in patients with acute decompensated heart failure: comparison with dobutamine. Cardiovasc Drugs Ther. 2007;21:431-5.
  • 7
    Ponschab M, Hochmair N, Ghazwinian N, et al. Levosimendan infusion improves haemodynamics in elderly heart failure patients undergoing urgent hip fracture repair. Eur J Anaesthesiol. 2008;25:627-33.
  • 8
    Hillege HL, Nitsch D, Pfeffer MA, et al. Renal function as a predictor of outcome in a broad spectrum of patients with heart failure. Circulation. 2006;113:671-8.
  • 9
    Smith GL, Vaccarino V, Kosiborod M, et al. Worsening renal function: what is a clinically meaningful change in creatinine during hospitalization with heart failure? J Card Fail. 2003;9:13-25.
  • 10
    Stilianos K, Athina K, Panagiotis D, et al. Prophylactic preoperative levosimendan administration in heart failure patients undergoing elective non-cardiac surgery: a preliminary report. Hellenic J Cardiol. 2009;50:185-92.
  • 11
    Tamargo J, López-Sendón J. Bases y evidencias clínicas de los efectos de los nuevos tratamientos farmacológicos en la insuficiencia cardiaca. Rev Esp Cardiol. 2004;57:447-64.
  • 12
    Landoni G, Mizzi A, Biondi-Zoccai G, et al. Levosimendan reduces mortality in critically ill patients. A meta-analysis of randomized controlled studies. Minerva Anestesiol. 2010;76:276-86.
  • 13
    Adamopoulos S, Parissis JT, Iliodromitis EK, et al. Effects of levosimendan versus dobutamine on inflammatory and apoptotic pathways in acutely decompensated chronic heart failure. Am J Cardiol. 2006;98:102-6.
  • 14
    Zorlu A, Yücel H, Yontar O, et al. Effect of levosimendan in patients with severe systolic heart failure and worsening renal function. Arq Bras Cardiol. 2012;98:537-43.
  • 15
    Álvarez J, Bouzada M, Fernandez AL, et al. Comparación de los efectos hemodinámicos del Levosimendan con la dobutamina en pacientes con bajo gasto después de cirugía cardiaca. Rev Esp Cardiol. 2006;59:338-45.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2017

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2014
  • Aceito
    7 Jul 2014
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org