Acessibilidade / Reportar erro

Bloqueio do quadrado lombar em dor crônica pós-hernioplastia abdominal: relato de caso

Resumo

Justificativa e objetivos:

O bloqueio da fáscia do músculo quadrado lombar foi descrito por R. Blanco nas suas duas abordagens (I e II). A deposição de anestésico local nessa localização pode conferir bloqueio dos dermátomos T6-L1. Os autores fizeram esse bloqueio de fáscia, guiado por ultrassom, para tratamento de uma dor crônica neuropática da parede abdominal.

Relato de caso:

Paciente do gênero masculino, 61 anos, 83 kg, com antecedentes de trombocitopenia por hepatopatia alcoólica, entre outros, apresentava dor crônica da parede abdominal após hernioplastias abdominais múltiplas havia um ano e meio, com má resposta ao tratamento com neuromoduladores e opioides. No exame clínico, apresentava uma dor neuropática, com predomínio de alodinia ao toque, que abrangia toda a parede abdominal anterior, desde os dermátomos T7 a T12. Optou-se pela realização de um bloqueio do quadrado lombar tipo II bilateral, guiado por ultrassom, com administração de 25 mL de ropivacaína 0,2% e 20 mg de metilprednisolona depot (ampola) em cada um dos lados. O procedimento conferiu alívio imediato da sintomatologia e, após seis meses, o paciente mantinha redução significativa da alodinia, sem compromisso da qualidade de vida.

Conclusões:

Os autores consideram que a realização do bloqueio do quadrado lombar tipo II foi uma opção analgésica relevante no tratamento de um paciente com dor crônica pós-hernioplastia abdominal e salientaram os efeitos da dispersão do anestésico local até o espaço paravertebral torácico. A técnica mostrou ser segura e bem tolerada. É desejável a publicação de mais casos clínicos que reproduzam a eficácia desse bloqueio no contexto de dor crônica.

PALAVRAS-CHAVE
Dor; Crônica; Neuropática; Quadrado lombar; Ultrassonografia

Abstract

Background and objectives:

The quadratus lumborum blockade was described by R. Blanco in its two approaches (I and II). The local anesthetic deposition in this location can provide blockade to T6-L1 dermatomes. We performed this fascia blockade guided by ultrasound for treating a chronic neuropathic pain in the abdominal wall.

Case report:

Male patient, 61 years old, 83 kg, with a history of thrombocytopenia due to alcoholic cirrhosis, among others; had chronic pain in the abdominal wall after multiple abdominal hernia repairs in the last year and a half, with poor response to treatment with neuromodulators and opioids. On clinical examination, he revealed a neuropathic pain, with prevalence of allodynia to touch, covering the entire anterior abdominal wall, from T7 to T12 dermatomes. We opted for a quadratus lumborum block type II, guided by ultrasound, with administration of 0.2% ropivacaine (25 mL) and depot (vial) methylprednisolone (20 mg) on each side. The procedure gave immediate relief of symptoms and, after six months, the patient still had a significant reduction in allodynia without compromising the quality of life.

Conclusions:

We consider that performing the quadratus lumborum block type II was an important analgesic option in the treatment of a patient with chronic pain after abdominal hernia repair, emphasizing the effects of local anesthetic spread to the thoracic paravertebral space. The technique has proven to be safe and well tolerated. The publication of more clinical cases reporting the effectiveness of this blockade for chronic pain is desirable.

KEYWORDS
Pain; Chronic; Neuropathic; Quadratus lumborum; Ultrasonography

Introdução

Descrito por R. Blanco,11 Blanco R. Optimal point of injection: the quadratus lumborum type I and II blocks. Anaesthesia. 2014. o bloqueio do plano fascial do músculo quadrado lombar confere um bloqueio unilateral da parede abdominal, que se pode estender desde T6-L1.22 Visoiu M, Yakovleva N. Continuous postoperative analgesia via quadratus lumborum block - an alternative to transversus abdominis plane block. Pediatr Anesth. 2013;23:959-61.,33 Kadam VR. Ultrasound-guided quadratus lumborum block as a postoperative analgesic technique for laparotomy. J Anaesthesiol Clin Pharmacol. 2013;29:550-2. O músculo quadrado lombar insere-se no bordo inferior da última costela e, por quatro tendões, nos ápices das apófises transversas das vértebras L1 a L4. O anestésico local depositado na fáscia desse músculo pode ser transportado ao longo dela até o espaço paravertebral, mas também ao longo dos rolos vasculo-nervosos,22 Visoiu M, Yakovleva N. Continuous postoperative analgesia via quadratus lumborum block - an alternative to transversus abdominis plane block. Pediatr Anesth. 2013;23:959-61. o que confere o bloqueio dos dermátomos citados.

Os autores relatam um caso no qual fizeram um bloqueio do quadrado lombar tipo II bilateral para abordagem de uma dor crônica pós-cirúrgica.

Relato do caso

Paciente do gênero masculino, 61 anos, 83 kg, referenciado para a Unidade de Dor Crônica por quadro de dor crônica da parede abdominal após hernioplastias abdominais múltiplas. Apresentava antecedentes de diabetes melito tipo 2, hipertensão arterial, status pós-perfuração de úlcera do duodeno, hepatopatia alcoólica e consequente trombocitopenia (79,109/L).

O doente tinha sido submetido a quatro procedimentos cirúrgicos de correção da parede abdominal com colocação de prótese. O último fora feito um ano e meio antes. Desenvolveu um quadro de dor crônica de características neuropáticas após a terceira intervenção cirúrgica, com má resposta ao tratamento com fármacos neuromoduladores e opioides. A alteração da função hepática e a intolerância aos fármacos analgésicos constituíram uma limitação à subida das doses terapêuticas.

O paciente apresentava uma dor neuropática, com predomínio de alodinia ao toque, que abrangia toda a parede abdominal anterior, desde os dermátomos T7 a T12, limitados lateralmente pela linha axilar anterior. Obtinha uma pontuação de 8/10 na escala visual analógica (EVA) e de 9/10 no questionário específico para rastreio de dor neuropática (DN4), com grande interferência na qualidade de vida.

Pela insatisfatória resposta analgésica obtida, limitada pela intolerância medicamentosa e morbilidade hepática associada, decidiu-se fazer um bloqueio do quadrado lombar tipo II bilateral guiado por ultrassom, após obtenção do paciente de consentimento informado.

A técnica foi feita em decúbito dorsal, com elevação da pelve ipsilateral. Sob condições de assepsia, foi usada uma sonda de alta frequência (5-10 MHz), conectada a um aparelho de ultrassonografia, em orientação transversal entre a crista ilíaca e a margem costal, posterior à linha médio-clavicular. Foram identificados os planos musculares, escaneados posteriormente até visualizar o músculo quadrado lombar, no mesmo plano que o músculo psoas major e o eretor da espinha (fig. 1).

Figura 1
Ultrassonografia da abordagem do quadrado lombar tipo II (descrita por R. Blanco). EO, músculo oblíquo externo; IO, músculo oblíquo interno; QL, músculo quadrado lombar; P, músculo psoas major; seta, local de injeção.

Uma agulha de neuroestimulação, com 100 mm de comprimento, foi introduzida fora de plano ecográfico e procedeu-se à infiltração subcutânea com 3 mL de lidocaína a 2% sob visualização com ultrassom. A ponta da agulha foi posicionada entre a face posterior do músculo quadrado lombar e a face anterior do músculo eretor da espinha. O trajeto da agulha foi acompanhado por ultrassom e a posição correta da agulha confirmada com a injeção de 2 mL de soro fisiológico. Após aspiração negativa, foram injetados 25 mL de ropivacaína 0,2% e 20 mg de metilprednisolona depot, com visualização da difusão do anestésico local em direção ao espaço paravertebral.

O procedimento foi repetido contralateralmente e decorreu sem incidentes ou complicações. Durante o procedimento manteve-se sempre contato verbal com o paciente, o qual nunca manifestou desconforto.

Após 60 minutos do procedimento, o paciente revelou-se assintomático, sem alodinia em toda a parede abdominal, e reportou uma pontuação da VAS 0/10 na dor em repouso e em movimento. Teve alta para o domicílio após duas horas do procedimento e reportou uma grande satisfação com o controle da sua dor.

Avaliado aos cinco dias do procedimento, o paciente mantinha alívio sintomático e reportava apenas uma sensação de pressão num dos lados da injeção, não objetivável.

Ao primeiro mês do procedimento, o paciente apresentava redução da alodinia a uma área circunscrita periumbilical de aproximadamente um quarto da área inicial e com uma pontuação VAS 2/10 em repouso e 6/10 em movimento. Pela trombocitopenia subjacente, decidiu-se não repetir o bloqueio e programar tratamento local com patch de capsaicina a 8%.

Aos seis meses do procedimento e após um tratamento local com patch de capsaicina a 8%, o paciente mantinha a zona de alodinia circunscrita à área periumbilical, com uma pontuação VAS 3-4/10, em repouso e em movimento, e retornara à sua atividade diária de qualidade.

Conclusões

Do nosso conhecimento, este é o primeiro caso publicado sobre a realização de um bloqueio do quadrado lombar tipo II guiado por ultrassom em contexto de dor crônica pós-cirúrgica.

Os autores consideram que a realização do bloqueio do quadrado lombar tipo II foi uma opção analgésica relevante no tratamento de um paciente com dor crônica pós-hernioplastia abdominal refratária ao tratamento convencional.

A dispersão do anestésico local e do adjuvante analgésico para o espaço paravertebral torácico foi fundamental para o alívio sintomático nesse paciente.11 Blanco R. Optimal point of injection: the quadratus lumborum type I and II blocks. Anaesthesia. 2014. O seguimento após o procedimento permitiu concluir tratar-se de uma técnica segura e bem tolerada, com efeitos laterais irrelevantes. A sua utilidade clínica viu-se limitada pela contingência hematológica do paciente à realização de técnicas terapêuticas invasivas. Os autores optaram posteriormente por outra opção terapêutica da dor neuropática, como a capsaicina a 8%.44 Dworkin R, O'Connor A, Audette J, et al. Recommendations for the pharmacological management of neuropathic pain: an overview and literature update. Mayo Clin Proc. 2010;85(Suppl.):S3-14.

Os autores consideram necessária a publicação de mais casos clínicos que reproduzam a eficácia analgésica desse bloqueio no contexto de dor crônica.55 Carney J, Finnerty O, Rauf J, et al. Studies on the spread of local anaesthetic solution in transversus abdominis plane blocks. Anaesthesia. 2011;66:1023-30.,66 Børglum J, Christensen A, Hoegberg L. Bilateral-dual transversus abdominis plane (BD-TAP) block or thoracic paravertebral block (TVPB)? Distribution patterns, dermatomal anaesthesia, and LA pharmacokinetics. Reg Anesth Pain Med. 2012;37:E137-9.

References

  • 1
    Blanco R. Optimal point of injection: the quadratus lumborum type I and II blocks. Anaesthesia. 2014.
  • 2
    Visoiu M, Yakovleva N. Continuous postoperative analgesia via quadratus lumborum block - an alternative to transversus abdominis plane block. Pediatr Anesth. 2013;23:959-61.
  • 3
    Kadam VR. Ultrasound-guided quadratus lumborum block as a postoperative analgesic technique for laparotomy. J Anaesthesiol Clin Pharmacol. 2013;29:550-2.
  • 4
    Dworkin R, O'Connor A, Audette J, et al. Recommendations for the pharmacological management of neuropathic pain: an overview and literature update. Mayo Clin Proc. 2010;85(Suppl.):S3-14.
  • 5
    Carney J, Finnerty O, Rauf J, et al. Studies on the spread of local anaesthetic solution in transversus abdominis plane blocks. Anaesthesia. 2011;66:1023-30.
  • 6
    Børglum J, Christensen A, Hoegberg L. Bilateral-dual transversus abdominis plane (BD-TAP) block or thoracic paravertebral block (TVPB)? Distribution patterns, dermatomal anaesthesia, and LA pharmacokinetics. Reg Anesth Pain Med. 2012;37:E137-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2017

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2014
  • Aceito
    26 Ago 2014
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org