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Conhecimento dos anestesiologistas sobre transfusão de concentrado de hemácias em pacientes cirúrgicos

Resumo

Introdução

O sangue é importante recurso em diversas intervenções mantenedoras da vida, como corrigir a anemia e melhorar a capacidade de transporte de oxigênio. Apesar dos avanços, a transfusão de concentrado de hemácias (TCH) ainda envolve riscos. O objetivo deste estudo foi descrever o conhecimento dos anestesiologistas sobre as indicações, os efeitos adversos e as opções ao procedimento de transfusão de concentrado de hemácias no intraoperatório.

Método

Estudo transversal que usou questionário com perguntas de múltipla escolha e casos clínicos, referentes a fatores relevantes na decisão de transfundir concentrado de hemácias, seus efeitos adversos, gatilhos de hemoglobina, suas medidas preventivas e estratégias de conservação de sangue. Respondido sem a presença do pesquisador. Usada a escala de Likert e feito cálculo do ranking médio das respostas. Análise dos dados feita com programa Epi Info 7.

Resultados

Dos anestesiologistas da instituição, 79% responderam ao questionário e 100% identificaram os principais efeitos adversos relacionados à hemotransfusão. Questionados sobre os fatores que influenciariam na decisão de transfundir, o nível de hemoglobina obteve a maior concordância (RM = 4,46), seguido de cardiopatia (RM = 4,26), níveis de hematócrito (RM = 4,34), idade (RM = 4,1) e avaliação da microcirculação (RM = 4,22). Dos entrevistados, 82,3% identificaram níveis de Hb = 6 g.dL-1 como gatilho para transfundir paciente sadio. Quanto às estratégias de conservação de sangue, a hemodiluição hipervolêmica (RM = 2,81) e a deliberada por medicamentos (RM = 2,95) foram as menos citadas.

Conclusão

Identificou-se uma boa compreensão dos anestesiologistas a respeito da TCH. No entanto, há necessidade de cursos de atualização sobre o tema.

Palavras-chave
Transfusão sanguínea; Anestesiologia; Conhecimento; Riscos; Efeitos adversos

Abstract

Introduction

Blood is an important resource in several lifesaving interventions, such as anemia correction and improvement of oxygen transport capacity. Despite advances, packed red blood cell (PRBC) transfusion still involves risks. The aim of this study was to describe the knowledge of anesthesiologists about the indications, adverse effects, and alternatives to red blood cell transfusion intraoperatively.

Method

Cross-sectional study using a questionnaire containing multiple choice questions and clinical cases related to relevant factors on the decision whether to perform PRBC transfusion, its adverse effects, hemoglobin triggers, preventive measures, and blood conservation strategies. The questionnaire was filled without the presence of the investigator. Likert scale was used and the average rank of responses was calculated. The Epi Info 7 software was used for data analysis.

Results

79% of the institution's anesthesiologists answered the questionnaire; 100% identified the main adverse effects related to blood transfusion. When asked about the factors that influence the transfusion decision, hemoglobin level had the highest agreement (MR = 4.46) followed by heart disease (MR = 4.26); hematocrit (MR = 4.34); age (RM = 4.1) and microcirculation evaluation (MR = 4.22). Respondents (82.3%) identified levels of Hb = 6 g.dL-1 as a trigger to transfuse healthy patient. Regarding blood conservation strategies, hypervolemic hemodilution (MR = 2.81) and decided by drugs (MR = 2.95) were the least reported.

Conclusion

We identify a good understanding of anesthesiologists about PRBC transfusion; however, there is a need for refresher courses on the subject.

Keywords
Blood transfusion; Anesthesiology; Knowledge; Risks; Adverse effects

Introdução

O sangue é usado como um importante recurso em diversas intervenções mantenedoras da vida.11 Silva M, Zago G, Moraes R. Adequabilidade da transfusão de concentrado de hemácias em hospital terciário de Porto Alegre, RS. Rev AMRIGS. 2011;55:130-3. A transfusão de glóbulos vermelhos alogênicos é um tratamento bastante usado para corrigir a anemia e melhorar a capacidade de transporte de oxigênio do sangue durante o período perioperatório e em pacientes criticamente enfermos.22 Shah A, Stanworth SJ, McKechnie S. Evidence and triggers for the transfusion of blood and blood products. Anaesthesia. 2015;70:10-9. Estudos mostram que aproximadamente 85 milhões de concentrados de hemácias são transfundidos anualmente no mundo todo.33 Takei T, Amin NA, Schmid G, et al. Progress in global blood safety for HIV. J Acquir Immune Defic Syndr. 2009;52:S127-31. Apesar dos avanços da medicina transfusional, a transfusão de concentrado de hemácias (TCH) ainda envolve riscos, resulta, por vezes, em um amplo espectro de reações adversas.44 Callera F, Silva ACO, Moura AF, et al. Descriptions of acute transfusion reactions in a Brazilian transfusion service. Rev Bras Hematol Hemoter. 2004;26:78-83. O uso de hemoderivados também é uma prática dispendiosa para o sistema de saúde.55 Engelbrecht S, Wood EM, Cole-Sinclair MF. Clinical transfusion practice update: haemovigilance, complications, patient blood management, and national standards. Med J Aust. 2013;199:397-401. Tal problemática despertou um debate na literatura médica, sobretudo quanto ao uso correto dos hemocomponentes.33 Takei T, Amin NA, Schmid G, et al. Progress in global blood safety for HIV. J Acquir Immune Defic Syndr. 2009;52:S127-31.,66 Sharma S, Sharma P, Tyler LN. Transfusion of blood and blood products: indications and complications. Am Fam Physician. 2011;83:719-24. Nos últimos anos observa-se uma queda significativa na THC. São justificadas por iniciativas de ensino destinadas a aumentar a sensibilização aos riscos de transfusão e às técnicas cirúrgicas melhoradas, bem como à necessidade de considerar opções.22 Shah A, Stanworth SJ, McKechnie S. Evidence and triggers for the transfusion of blood and blood products. Anaesthesia. 2015;70:10-9. Assim, a decisão em se transfundir deve considerar o balanço entre riscos e benefícios e avaliar, além dos valores de hemoglobina, os aspectos clínicos do paciente. Nas últimas duas décadas, a introdução de testes laboratoriais e a melhoria na triagem dos doadores reduziu radicalmente a mortalidade e os riscos de infecções relacionadas ao procedimento e tornaram-se mais frequentes as complicações de causas não infecciosas.77 Eder AF, Chambers LA. Noninfectious complications of blood transfusion. Arch Pathol Lab Med. 2007;131:708-18.

8 Lavoie J. Blood transfusion risks and alternative strategies in pediatric patients. Paediatr Anaesth. 2011;21:14-24.
-99 Kato H, Uruma M, Okuyama Y. Incidence of transfusion-related adverse reactions per patient reflects the potential risk of transfusion therapy in Japan. Am J Clin Pathol. 2013;140:219-24. Estudo britânico revelou que erros de manejo dos derivados, erros de armazenamento e transfusões de componentes incorretos permanecem ainda frequentes, a maior parte dos relatos está relacionada às falhas humanas.1010 Bolton-Maggs P, Cohen H, Watt A. Annual SHOT report 2011. [on-line]. Manchester, British: SHOT; 2012. July. Available from: http://www.shotuk.org [accessed 10.05.14].
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Uma política transfusional mais restrita (que usa níveis mais baixos de hemoglobina como gatilho para transfusão) diminui o número de transfusões desnecessárias, de infecções e de complicações respiratórias.1111 So-Osman C, Nelissen R, Brand R. The impact of a restrictive transfusion trigger on post-operative complication rate and well-being following elective orthopaedic surgery: a post-hoc analysis of a randomised study. Blood Transfus. 2013;11:289-95. Há mais de 50 anos existe a preocupação de se desenvolverem estratégias de conservação do sangue com o intuito de minimizar a necessidade de transfusões. Não obstante, elas têm suas limitações, são pouco usadas e boa parte ainda necessita de estudos para determinar riscos e benefícios.1212 Lawrence TG, Shander A. Evolution in alternatives to blood transfusion. Hematol J. 2003;4:87-91.

13 Donat RS, Lawrence TG. Alternatives to blood transfusion. Lancet. 2013;381:1855-65.
-1414 Mozzarelli A, Ronda L, Bruno S, et al. Haemoglobin-based oxygen carriers: research and reality towards an alternative to blood transfusions. Blood Transfus. 2010;3:1-76. Neste estudo, pretendeu-se verificar o conhecimento teórico dos anestesiologistas do IMIP a despeito de alguns aspectos da TCH, como indicações, opções e efeitos adversos.

Método

Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira, foi feito um estudo descritivo transversal com os médicos anestesiologistas da instituição entre outubro de 2013 e outubro de 2015. Para esse fim, foi desenvolvido um questionário com perguntas de múltipla escolha e casos clínicos a respeito dos fatores relevantes na decisão de transfundir concentrado de hemácias, seus efeitos adversos, gatilhos de hemoglobina, suas medidas preventivas e estratégias de conservação de sangue. O questionário foi construído com base numa escala (Likert) na qual os entrevistados especificam seu nível de concordância com uma afirmação. Para cada pergunta o entrevistado tinha as seguintes opções: discordo totalmente, discordo, não concordo e nem discordo, concordo e concordo totalmente e as respostas pontuavam 1, 2, 3, 4 e 5, respectivamente. Na última sessão do instrumento de coleta, constavam quatro casos clínicos com diferentes cenários em pacientes, das diversas faixas etárias, submetidos a cirurgias de urgência seguidos da pergunta (Nesse caso acima, sua conduta seria transfundir previamente?) e as respostas continham as mesmas opções e pontuações das questões simples. Ainda o entrevistado tinha de responder de forma cursiva qual o nível de hemoglobina pré-operatório aceitável para cada caso. A pré-validação do questionário foi feita em duas etapas. Na primeira foram selecionados aleatoriamente cinco anestesiologistas com os mesmos critérios de inclusão do estudo, mas que não tomaram parte dele, para de forma presencial opinar sobre o instrumento quanto à inteligibilidade, aos aspectos abordados e à clareza dos itens, entre outros. As sugestões de mudança sugeridas foram incorporadas quando houve consenso. Na segunda etapa foram convidados cinco hematologistas para avaliar, individualmente e de forma não presencial, a adequação do conteúdo do instrumento. Nessa etapa as modificações sugeridas foram automaticamente incorporadas. Foram incluídos anestesiologistas que atuavam no IMIP. Não houve critérios de exclusão. Os participantes foram convidados, em seu local de trabalho, a participar da pesquisa. Informava-se ao médico a finalidade da pesquisa e solicitava-se sua colaboração. Após sua aceitação e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, entregava-se o questionário no início da manhã ou da tarde e era recolhido no fim do turno. Ele era orientado a não fazer pesquisa sobre o tema para responder as perguntas contidas no questionário. O avaliador não ficava presente durante o preenchimento do questionário. A verificação da concordância ou discordância das questões avaliadas foi obtida por meio do ranking médio (RM), que é calculado através da média ponderada de cada resposta. Considerara-se valor menor do que três discordante, três como indiferente ou “sem opinião” e maior do que três concordante. As respostas em branco também foram computadas e consideradas como não concordo nem discordo. O cálculo do RM foi feito de acordo com o método indicado para a análise da escala Likert.

Resultados

Atuam no IMIP 114 anestesiologistas, divididos em cinco centros cirúrgicos (bloco geral, pediátrico, obstétrico, ambulatorial e transplante), além do centro de diagnóstico/imagem e hemodinâmica. Desse total, 90 entrevistados aceitaram participar da pesquisa, cinco contribuíram com a validação do questionário e 19 se recusaram ou não foram localizados. A média etária dos participantes foi igual a 37,94 anos (27 a 76). A mediana foi igual a 33,5 anos. A figura 1 representa uma distribuição dos entrevistados por faixa etária. Dos 90 entrevistados, 49 (54,4%) eram do sexo feminino e 41 (46,6%) do masculino. Todos os entrevistados tinham especialização em anestesiologia. Quando perguntados sobre quais dos efeitos adversos listados estavam relacionados à prática de hemotransfusão, infecções e reação febril não hemolítica alcançaram os maiores índices de concordância (RM = 4,63; 96,7% concordaram totalmente ou apenas concordaram). Retinopatia foi a com maior discordância (RM = 2,64; 42,2% discordaram totalmente ou apenas discordaram). Os dados se encontram na tabela 1. Com relação aos fatores que poderiam modificar a decisão de transfundir, “níveis de hemoglobina” foi o mais lembrado (RM = 4,46; 94,4% concordaram totalmente ou apenas concordaram). Por outro lado, o fator “etnia” obteve os resultados mais desfavoráveis (70% discordaram totalmente ou apenas discordaram), conforme a tabela 2. Sobre os valores de hemoglobina que justificariam a transfusão de concentrado de hemácias em pacientes classificados como ASA I em cirurgia de baixo risco, os entrevistados discordaram ou discordaram totalmente quase com unanimidade dos valores 10 g.dL-1 e 9 g.dL-1. Valores expressivos de concordância foram observados em níveis menores do que 8 g.dL-1 (60% concordaram ou concordaram totalmente com o nível 7 g.dL-1), o valor 6 g.dL-1 foi o mais apreciado (82,3% concordaram ou concordaram totalmente; (RM = 4,17), conforme a tabela 3. Quando perguntados quanto às ações que poderiam prevenir ou amenizar os riscos relacionados à hemotransfusão, a checagem do nome do paciente na bolsa do hemoderivado obteve os índices mais favoráveis (RM = 4,7; 100% concordaram totalmente ou apenas concordaram). Por outro lado, a prática de hemodiluição hipervolêmica obteve 37,8% de respostas “discordo” ou “discordo totalmente” (tabela 4). Os cenários clínicos e os resultados quanto à opinião dos anestesiologistas com relação à necessidade de se transfundir previamente o paciente e qual o nível de hemoglobina pré-operatório aceitável podem ser visualizados na tabela 5. Em resposta ao primeiro caso clínico, (tabela 6), a grande maioria dos entrevistados discordou ou discordou totalmente da decisão de transfundir previamente (46,7% e 27,8% respectivamente, com RM = 2,09). Quanto ao nível de hemoglobina pré-operatório aceitável, foi obtida uma média igual a 9,32 g.dL-1, houve uma variância de 1,35 e uma mediana igual a 10 g.dL-1. Na análise do segundo caso clínico, vide tabela 6, houve uma equivalência entre os participantes: concordaram/concordaram totalmente (50%) e discordaram/discordaram totalmente (48,9%). O RM = 3; a média de hemoglobina aceitável foi igual a 8,4 g.dL-1 com variância de 1,32 e mediana igual a 8 g.dL-1. O terceiro caso também obteve os índices de concordância e discordância semelhantes (40% concordaram totalmente ou apenas concordaram e 46,6% discordaram totalmente ou apenas discordaram. O RM = 2,91 e o nível de hemoglobina médio = 7,86 g.dL-1 (variância = 1,15 e mediana = 8 g.dL-1). O último caso (tabela 6) seguiu a tendência do primeiro, obteve 74,5% de “discordo” e 12,5% de “discordo totalmente”. Para esse, o RM = 2,28 e a média de hemoglobina = 8,58 g.dL-1 (variância = 1,13 e mediana = 8,00 g.dL-1).

Tabela 1
Resultados relacionados aos efeitos adversos inerentes à hemotransfusão
Tabela 2
Resultados relacionados aos fatores relevantes na decisão de transfundir
Tabela 3
Resultados relacionados aos gatilhos de hemoglobina para paciente ASA I
Tabela 4
Resultados relacionados às medidas preventivas e estratégias de conservação de sangue
Tabela 5
Resultados relacionados aos cenários clínicos fornecidos
Tabela 6
Cenários clínicos fornecidos

Figura 1
Grupo etário dos anestesiologistas.

Discussão

Este estudo avaliou o conhecimento dos anestesiologistas de uma única instituição sobre hemotransfusão. Observou-se uma boa compreensão dos anestesiologistas a respeito do tema. A transfusão de hemocomponentes está relacionada a eventos adversos e é imprescindível que todos os profissionais envolvidos na sua administração estejam capacitados e preparados para prontamente identificar e lidar com as adversidades inerentes ao procedimento.1515 Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada. Guia para o uso de Hemocomponentes. Brasília: Editora do Ministério da Saúde; 2010. Evitar transfusões desnecessárias, usar estratégias para diminuir o sangramento durante o perioperatório e instituir rotinas relacionadas à hemotransfusão podem minimizar esses riscos. A transfusão sanguínea pode estar associada ao desenvolvimento de infecções em pacientes cirúrgicos (mais frequentemente infecções bacterianas, HIV, hepatite B, hepatite C e HTLV), porém a evolução da medicina transfusional tem reduzido satisfatoriamente esses números. A despeito disso, os relatos de reações não infecciosas têm se intensificado nos últimos anos.1010 Bolton-Maggs P, Cohen H, Watt A. Annual SHOT report 2011. [on-line]. Manchester, British: SHOT; 2012. July. Available from: http://www.shotuk.org [accessed 10.05.14].
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A frequência das reações transfusionais agudas (aquelas que ocorrem nas primeiras 24 horas após o procedimento) é estimada entre 0,2%-10%, a reação febril não hemolítica é a mais frequente, seguida das reações alérgicas.1616 Nawaz S, Ikram N, Tufail S, et al. Blood transfusion reactions during pregnancy. J Rawalpindi Med Col (JMRC). 2013;17:240-2.,1717 Fiona R, Taylor C. Recent developments: blood transfusion medicine. BMJ. 2002;325:143-7. Dentre os anestesiologistas que participaram do estudo, a maioria identificou adequadamente as principais infecções e reações transfusionais, como reação febril não hemolítica e alérgica, hemólise e hipotermia, e demonstraram preparo para identificação de tais reações. A lesão pulmonar relacionada à transfusão e hemólise também receberam índices de concordância significativos. Atualmente sabe-se que essas reações, juntas, correspondem a mais de 70% das mortes causadas por reações transfusionais.1818 US Food and Drug Administration, Silver Spring, MD Fatalities reported to FDA following blood collection and transfusion: Annual summary for fiscal year 2010. [on-line]; 2011. Available from: http://www.fda.gov [accessed 05.03.14].
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Outras reações adversas lembradas foram: hipocalemia, hemossiderose, púrpura, recidiva de neoplasia, kernicterus, claudicação e alucinações visuais; demonstrou-se preparo desses profissionais para identificação de tais reações e assistir adequadamente o paciente. Também se observou concordância que pancreatite aguda seria uma reação adversa a hemotransfusão. No entanto, não encontramos respaldo científico que justifique essa afirmação. O Serious Hazards of Transfusion registrou, em 15 anos, 49 casos confirmados de púrpura pós-transfusional, 40 de infecções bacterianas e 22 de infecções virais e parasitárias.1010 Bolton-Maggs P, Cohen H, Watt A. Annual SHOT report 2011. [on-line]. Manchester, British: SHOT; 2012. July. Available from: http://www.shotuk.org [accessed 10.05.14].
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O item “púrpura” obteve um RM maior do que três, porém nos chama a atenção o baixo nível de concordância, o que reforça a necessidade de atualização dos anestesistas sobre a ocorrência dessa complicação. É consenso que a transfusão deve ser guiada não apenas por um gatilho (nível de hemoglobina), porque, apesar dos níveis de hemoglobina amplamente aceitos iguais a 7 g.dL-1, a decisão de transfundir deve levar em consideração o nível de hemoglobina atual, a perda estimada de sangue, a reserva cardíaca, os sinais vitais, a probabilidade de hemorragia em curso, bem como o risco de isquemia tecidual.22 Shah A, Stanworth SJ, McKechnie S. Evidence and triggers for the transfusion of blood and blood products. Anaesthesia. 2015;70:10-9. Ao se pesquisar a opinião dos profissionais sobre quais os principais fatores relevantes na decisão de transfundir, na visão dos entrevistados, o nível de hemoglobina foi o fator mais importante, seguido de níveis de hematócrito, presença de cardiopatia, resultados da avaliação da microcirculação. Idade e o sexo apareceram como fatores de menor importância. Em relação aos pacientes cardiopatas, esses realmente necessitam de uma avaliação diferenciada, visto que têm menor tolerância às quedas acentuadas no nível de hemoglobina.22 Shah A, Stanworth SJ, McKechnie S. Evidence and triggers for the transfusion of blood and blood products. Anaesthesia. 2015;70:10-9. No que se refere à incidência de efeitos adversos em menores de 18 anos, estima-se que seja superior àquela encontrada em adultos. Ainda com relação à idade, a incidência desses efeitos quase triplica em menores de 12 meses quando comparados com os adultos.1919 Stainsby D, Jones H, Wells AW, et al. Adverse outcomes of blood transfusion in children: analysis of UK reports to the serious hazards of transfusion Scheme 1996-2005. Br J Haematol. 2008;141:73-9. Esse estudo britânico estimou a incidência de eventos adversos de 18:100.000 para crianças com menos de 18 anos, 37:100.000 para crianças com menos de 12 meses e 13:100.000 para adultos. Uma revisão sistemática da Cochrane encontrou uma associação moderada entre recorrência de câncer colorretal e transfusão alogênica de glóbulos vermelhos. Essa associação aumenta com a administração de grandes volumes de sangue.22 Shah A, Stanworth SJ, McKechnie S. Evidence and triggers for the transfusion of blood and blood products. Anaesthesia. 2015;70:10-9. Com relação à técnica cirúrgica, estudos demonstram perda sanguínea significativamente maior na cirurgia colorretal convencional comparada com a via laparoscópica, resulta em maior necessidade de transfusões e possivelmente maior recorrência de câncer colorretal, fato de conhecimento da maioria dos entrevistados.2020 Seid VE, Pinto RA, Caravato PPP, et al. Custo benefício em operações colorretais laparoscópicas: análise comparativa com acesso convencional. Rev Bras Coloproctol. 2008;28:465-9. Os resultados referentes à terceira questão do instrumento de coleta realçam a tendência dos anestesiologistas de optar por um gatilho de hemoglobina mais restrito, em consonância com a literatura.22 Shah A, Stanworth SJ, McKechnie S. Evidence and triggers for the transfusion of blood and blood products. Anaesthesia. 2015;70:10-9. Uma metanálise com 2.364 pacientes evidenciou que o uso de um gatilho de hemoglobina menor do que 7 g.dL-1 resulta em diminuição de mortalidade intra-hospitalar, mortalidade geral, risco de novo sangramento, síndrome coronariana aguda, edema pulmonar e infecções bacterianas, comparado com uma estratégia transfusional mais liberal.2121 Salpeter SR, Buckley JS, Chatterjee S. Impact of more restrictive blood transfusion strategies on clinical outcomes: a meta-analysis and systematic review. Am J Med. 2014;127:124-31. A mesma estratégia parece ter resultados positivos em pacientes pediátricos gravemente enfermos.88 Lavoie J. Blood transfusion risks and alternative strategies in pediatric patients. Paediatr Anaesth. 2011;21:14-24. Entretanto, nos casos que envolvem pacientes pediátricos, os anestesiologistas entrevistados apresentaram opinião discordante em relação à decisão de transfusão.

Quanto às ações que poderiam prevenir ou minimizar os riscos relacionados às transfusões, apenas metade dos profissionais concordou ou concordou totalmente com o item “uso de antifibrinolíticos”. De fato, estudos com uso de aprotinina e ácido tranexâmico em cirurgias ortopédicas demonstraram que o uso de antifibrinolíticos reduz o risco de transfusão de concentrado de hemácias.2222 Zufferey P, Merquiol F, Latorpe S, et al. Do antifibrinolytics reduce allogeneic blood transfusion in orthopedic surgery? Anesthesiology. 2006;105:1034-46. Chama atenção o fato dos anestesiologistas concordarem com o item “Prática de hemodiluição normovolêmica”, porém discordarem da “Prática de hemodiluição hipervolêmica”. O conceito de hemodiluição hipervolêmica é relativamente novo, contudo estudos mostram ser tão efetivo quanto a hemodiluição normovolêmica em reduzir a necessidade de componentes sanguíneos, além de ser de mais fácil aplicação.2323 Entholzner E, Mielke L, Werner P, et al. Hypervolemic hemodilution as a means of preventing homologous blood transfusion. A simple alternative to acute normovolemic hemodilution. Fortschr Med. 1994;112:410-4. Apesar de necessitar de mais estudos, ambas as práticas têm se mostrado viáveis e seguras na redução da necessidade de transfusão em pacientes adultos classificados como ASA 1 e 2.2424 Kumar R, Chakraborty I, Sehgal R. A prospective randomized study comparing two techniques of perioperative blood conservation: isovolemic hemodilution and hypervolemic hemodilution. Anesth Analg. 2002;95:1154-61. Aproximadamente 50% dos relatos de eventos adversos de um centro de hemovigilância britânico são devidos a erros humanos, resultam em transfusões desnecessárias, inapropriadas, atrasadas, de componentes errados ou do manejo e armazenamento inadequado dos componentes.1010 Bolton-Maggs P, Cohen H, Watt A. Annual SHOT report 2011. [on-line]. Manchester, British: SHOT; 2012. July. Available from: http://www.shotuk.org [accessed 10.05.14].
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Apesar de ser totalmente prevenível, essa é também a principal causa de incompatibilidade ABO e uma importante causa de mortalidade.1010 Bolton-Maggs P, Cohen H, Watt A. Annual SHOT report 2011. [on-line]. Manchester, British: SHOT; 2012. July. Available from: http://www.shotuk.org [accessed 10.05.14].
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,2525 Hill GE, Frawleey WH, Griffith KE, et al. Allogeneic blood transfusion increases the risk of postoperative bacterial infection: a meta-analysis. J Trauma. 2003;54:908-14. Considerando esse dado, quase a totalidade dos entrevistados concordou com a importância da coleta de uma história pré-transfusional detalhada e a checagem do nome do paciente na bolsa do hemoderivado. Foi possível observar uma divergência entre os participantes em relação ao item “Prática de hipotensão deliberada por medicamentos”, o RM permaneceu desfavorável, porém os índices de concordância e discordância foram idênticos (40%). No entanto, uma metanálise de ensaios clínicos randomizados com 636 pacientes observou que a hipotensão deliberada por medicamentos se mostrou significativamente eficaz ao reduzir a necessidade de transfusão sanguínea.2626 Paul JE, Ling E, Lalonde C, et al. Deliberate hypotension in orthopedic surgery reduces blood loss and transfusion requirements: a meta-analysis of randomized controlled trials. Can J Anesth. 2007;54:799-810. Dessa forma, se contrapõe aos dados sobre o conhecimento nesse assunto observado nesse estudo. Doação autóloga antes de um procedimento cirúrgico eletivo e transfusão no paciente durante a cirurgia diminuem a exposição alogênica em cirurgia cardíaca e ortopédica eletivas.22 Shah A, Stanworth SJ, McKechnie S. Evidence and triggers for the transfusion of blood and blood products. Anaesthesia. 2015;70:10-9. Mas doação prévia nem sempre elimina a necessidade de sangue alogênico.22 Shah A, Stanworth SJ, McKechnie S. Evidence and triggers for the transfusion of blood and blood products. Anaesthesia. 2015;70:10-9. Os participantes concordaram com o item reposição de ferro em pacientes com anemia ferropriva e a literatura mostra que terapia com ferro intravenoso é associada com uma redução da necessidade de transfusão de glóbulos vermelhos alogênico em pacientes com anemia, porém esse benefício é contrabalançado por um potencial risco aumentado de infecção.2727 Litton E, Xiao J, Ho KM, et al. Safety and efficacy of intravenous iron therapy in reducing requirement for allogeneic blood tranfusion: systematic review and meta-analysis of randomised clinical trials. BMJ. 2013;347:4822. Houve concordância entre os entrevistados sobre o uso de eritropoetina como medida preventiva. O tratamento com eritropoetina subcutânea aumenta a quantidade de sangue autóloga que pode ser recolhida e minimiza a exposição de sangue alogênico em crianças submetidas à cirurgia de coração aberto.2828 Sonzogni V, Crupi G, Poma R, et al. Erythropoietin therapy and preoperative autologous blood donation in children undergoing open heart surgery. Br J Anaesth. 2001;87:429-34. Na análise das respostas aos cenários clínicos, observamos a rejeição dos entrevistados à transfusão prévia em todos os casos apresentados. Essa rejeição foi maior nos casos I e IV, porém a divergência constatada no segundo e terceiro caso nos faz refletir sobre qual seria a conduta correta e quando uma TCH seria desnecessária. Estudos mostram que o uso de protocolos tem o potencial de reduzir significativamente transfusões sem afetar a taxa de mortalidade.2929 Craighead IB, Knowles JK. Prevention of transfusion-associated HIV transmission with the use of a transfusion protocol for under 5s. Trop Doct. 1993;23:59-61.

Conclusão

A maioria dos anestesiologistas da instituição foi concordante com a literatura sobre os efeitos adversos das hemotransfusões, fatores relevantes na decisão de hemotransfundir e gatilho de hemoglobina para pacientes ASA I. Entretanto, foi possível constatar algumas divergências, principalmente acerca das medidas preventivas e estratégias de conservação de sangue. Necessita-se assim de um treinamento para os profissionais de saúde e implantação de protocolos mais atualizados, para uniformizar as condutas. Além da ampliação deste estudo para outros centros.

Agradecimentos

Aos anestesiologistas do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    8 Mar 2016
  • Aceito
    13 Set 2016
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