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Manejo da via aérea na angina de Ludwig - um desafio: relato de caso

Resumo

Justificativa

A angina de Ludwig (AL) constitui uma infecção do espaço submandibular, primeiramente descrita por Wilhelm Frederick von Ludwig em 1836. Representa uma entidade de difícil manejo devido à rápida progressão e dificuldade na manutenção da via aérea pérvia, um importante desafio na prática médica, que culmina em asfixia e morte em 8-10% dos pacientes.

Objetivo

Descrever o caso clínico de um paciente com angina de Ludwig submetido a procedimento cirúrgico, com ênfase no manejo da via aérea, além de revisar os artigos disponíveis na literatura médica a respeito desse tema.

Relato de caso

Paciente masculino, 21 anos, drogadito, admitido pelo pronto socorro e diagnosticado com AL. Na propedêutica anestésica constatou-se via aérea difícil. Nos exames complementares foi possível observar importante desvio do eixo traqueal. Submetido à toracoscopia bilateral com drenagem pleural, optou-se pelo manejo da via aérea através de intubação nasotraqueal por fibrobroncoscopia e foi proposta anestesia geral balanceada. Não houve intercorrência durante o ato cirúrgico-anestésico. Após procedimento paciente permaneceu intubado e em ventilação mecânica na Unidade de Terapia Intensiva.

Conclusões

O manejo da via aérea nos pacientes com angina de Ludwig permanece desafiador. A escolha da técnica mais segura deve ser embasada no quadro clínico, nas condições técnicas disponíveis e na necessidade premente de preservação da vida do paciente.

Palavras-chave
Vias aéreas; Angina de Ludwig; Mediastinite

Abstract

Background

Ludwig's angina (LA) is an infection of the submandibular space, first described by Wilhelm Frederick von Ludwig in 1836. It represents an entity difficult to manage due to the rapid progression and difficulty in maintaining airway patency, a major challenge in medical practice, resulting in asphyxia and death in 8-10% of patients.

Objective

Describe a case of a patient with Ludwig's angina undergoing surgery, with emphasis on airway management, in addition to reviewing the articles published in the literature on this topic.

Case report

Male patient, 21 years, drug addict, admitted by the emergency department and diagnosed with LA. Difficult airway was identified during the anesthetic examination. In additional tests, significant deviation from the tracheal axis was seen. Undergoing bilateral thoracoscopic pleural drainage, we opted for airway management through tracheal intubation using fiberoptic bronchoscopy, and balanced general anesthesia was proposed. There were no complications during the surgical-anesthetic act. After the procedure, the patient remained intubated and mechanically ventilated in the intensive care unit.

Conclusions

Airway management in patients with Ludwig's angina remains challenging. The choice of the safest technique should be based on clinical signs, technical conditions available, and the urgent need to preserve the patient's life.

Keywords
Airways; Ludwig's angina; Mediastinitis

Introdução

A angina de Ludwig (AL) é uma infecção do espaço submandibular, primeiramente descrita por Wilhelm Frederick von Ludwig em 1836.11 Chow AW. Submandibular space infections (Ludwig's angina). Uptodate [serial on the Internet]. 2013. http://www.uptodate.com/contents/submandibular-space-infections-ludwig-angina?source=search_result&search=Angina+de+Ludwig&selectedTitle=1%7E8.
http://www.uptodate.com/contents/submand...
A presença de cáries dentárias, traumas bucais, imunodepressão e o uso contínuo de substâncias psicoativas, como álcool e drogas de abuso, são fatores predisponentes para o surgimento dessa infecção.22 Finch RG, Snider GE, Sprinkle PM. Ludwig's angina. JAMA. 1980;243:1171-3. A progressão da infecção pode causar o envolvimento do espaço retrofaríngeo delimitado pela fáscia cervical profunda que inicia na base do crânio e estende-se até o mediastino superior.33 Spitalnic SJ, Sucov A. Ludwig's angina: case report and review. J Emerg Med. 1995;13:499-503.

Constitui uma entidade de difícil manejo devido à rápida progressão e à dificuldade na manutenção da via aérea pérvia e culmina em asfixia e morte em 8%-10% dos pacientes.44 Fritsch DE, Klein DG. Curriculum in critical care: Ludwig's angina. Heart Lung: J Crit Care. 1992;1:39-47.

O desafio de estabelecer uma via aérea pérvia em um paciente de alto risco motivou o relato deste caso.

Relato de caso

Paciente masculino, branco, 21 anos, usuário de cocaína e crack, dá entrada no pronto socorro e relata dispneia e dor de forte intensidade em região cervical e mandibular à direita, a qual piorava durante a tentativa de abertura bucal. Ao exame físico apresentava dentes sépticos, odinofagia, dor retroesternal, edema, hiperemia e enfisema subcutâneo em região cervical anterior e mandibular à direita e estridor inspiratório e esforço ventilatório. Febril (temperatura axilar de 38 °C), PA de 80 × 45 mmHg, FC de 113 bpm, FR de 25 mrpm e SpO2 de 88% em ar ambiente. A tomografia computadorizada de região cervical e tórax mostrou comprometimento da região mediastinal, na qual foi observada importante quantidade de gás que dissecava os planos musculares e adiposos, especialmente à direita, e determinava significativo desvio do eixo traqueal contralateralmente. Mostrou também gás que dissecava o espaço posterior da rinofaringe e estendia-se para o mediastino superior. As estruturas vasculares estavam preservadas. Após o diagnóstico de angina de Ludwig, foi iniciada antibioticoterapia com ampicilina e gentamicina nas doses recomendadas e proposta toracoscopia bilateral com drenagem pleural.

O paciente foi monitorado com eletrocardioscopia nas derivações DII e V5, oximetria de pulso e pressão arterial não invasiva. A venóclise foi feita com cateter venoso 18G.

A avaliação da via aérea mostrou a impossibilidade de intubação ortoraqueal devido à dificuldade de abertura bucal (< 1 cm), ao paciente apresentar Mallampati 4 e imobilidade da região cervical por dor e edema em hemimandíbula direita. Optou-se pela intubação nasotraqueal por fibrobroncospia.

A sedação anestésica foi feita com midazolam (2 mg) associado ao fentanil (100 mcg) ambos pela via venosa. Durante o procedimento o paciente recebeu O2 por cateter nasal a 3 L.min-1.

Não houve intercorrências durante a intubação por fibra óptica. Após a insuflação do balonete e a confirmação da intubação por capnografia, propofol (150 mg), fentanil (350 mcg) e rocurônio (35 mg) foram infundidos. Foi iniciada a ventilação controlada mecânica, com volume de 600 mL a cada ventilação, 12 ciclos ventilatórios/.min-1, com uma razão inspiração/expiração de 1:2 e PEEP de 5 cm H2O. Manteve-se a monitoração da curva capnográfica, que variava de 35-40 mmHg.

Foi usado um FiO2 de 60%, o qual era suficiente para estabelecer uma saturação de hemoglobina em 99%-100%. Optou-se pelo uso do anestésico inalatório sevofluorano em concentração de 2%, estabelecida com vaporizador do tipo calibrado, durante o transoperatório. Após o procedimento cirúrgico, o paciente permaneceu intubado e em ventilação mecânica na Unidade de Terapia Intensiva e evoluiu para o óbito, por choque séptico, no sexto dia de pós-operatório.

Discussão

A angina de Ludwig compromete os espaços submandibular, sublingual e submaxilar que se comunicam posteriormente. Acomete a região abaixo do assoalho da boca e envolve os músculos trigonossubmentoneal e submandibulares limitados pela fáscia cervical profunda. A progressão da infecção pode causar o envolvimento da região cervical e do mediastino com o comprometimento grave da via aérea.11 Chow AW. Submandibular space infections (Ludwig's angina). Uptodate [serial on the Internet]. 2013. http://www.uptodate.com/contents/submandibular-space-infections-ludwig-angina?source=search_result&search=Angina+de+Ludwig&selectedTitle=1%7E8.
http://www.uptodate.com/contents/submand...
,33 Spitalnic SJ, Sucov A. Ludwig's angina: case report and review. J Emerg Med. 1995;13:499-503.

O estabelecimento de uma via aérea pérvia é a principal preocupação e pode-se necessitar de traqueostomia de urgência.55 Vieira F, Allen SM, Stocks RM, et al. Deep neck infection. Otolaryngol Clin North Am. 2008;41:459-83.,66 Ovassapian A, Tuncbilek M, Weitzel EK, et al. Airway management in adult patients with deep neck infections: a case series and review of the literature. Anesth Analg. 2005;100:585-9. A suspeita do comprometimento da via aérea difícil recomenda a intubação com fibra óptica por via nasal.77 Saifeldeen K, Evans R. Ludwig's angina. Emerg Med J. 2004;21:242-3.,88 Barton ED, Bair AE. Ludwig's angina. J Emerg Med. 2008;34:163-9.

A intubação orotraqueal ou nasotraqueal pode ser impossibilitada pelo comprometimento anatômico da infecção, pelo risco de trauma da via aérea, pela ruptura de pus para cavidade oral com aspiração broncopulmonar e ainda pelo potencial de induzir laringoespasmo grave.99 Kassam K, Messiha A, Heliotis M. The original angina. Case Rep Surg. 2013;2013:1-4.

Nesse contexto, Spitalnic e Sucov relataram o caso de uma paciente com angina de Ludwig no qual o manejo da via aérea através de intubação com laringoscopia com fibra óptica não obteve sucesso, devido ao edema e à distorção da anatomia. Foi então necessária traqueostomia.33 Spitalnic SJ, Sucov A. Ludwig's angina: case report and review. J Emerg Med. 1995;13:499-503.

Na impossibilidade da intubação com fibra óptica, a indicação para o manejo da via aérea torna-se cirúrgica através de traqueostomia, embora alguns autores defendam a cricotireoidotomia, por apresentar menos complicações, como via aérea emergencial.88 Barton ED, Bair AE. Ludwig's angina. J Emerg Med. 2008;34:163-9.,1010 Lindner HH. The anatomy of the fasciae of the face and neck with particular reference to the spread and treatment of intraoral infections (Ludwig's) that have progressed into adjacent fascial spaces. Ann Surg. 1986;204:705-14.,1212 Neff SP, Merry AF, Anderson B. Airway management in Ludwig's angina. Anaesth Intensive Care. 1999;27:659-61.

No presente relato, a observação da dificuldade na abertura bucal, com a ocorrência de trismo, estabeleceu a situação de via aérea difícil e os sinais de obstrução da via aérea e de insuficiência ventilatória foram determinantes para opção do manejo da via aérea com fibra ótica através do fibrobroncoscópio. A fibrobroncoscopia foi feita por meio de sedação consciente sem bloqueio anestésico da traqueia ou da inervação da laringe devido ao comprometimento anatômico que a doença apresentava.

Os estudos, independentemente da abordagem de via aérea recomendada, reforçam a importância de uma criteriosa avaliação clínica do paciente com a rápida decisão sobre o manejo da via aérea.

Brommelstroet et al. relataram dois casos de pacientes com diagnóstico de mediastinite necrotizante após angina de Ludwig, cuja origem fora uma infecção odontogênica. Em ambos os casos fez-se traqueostomia para manutenção da via aérea devido à pioria do estado geral e à necessidade de drenagem de abscessos submandibular e cervical.1313 Brommelstroet M, Rosa JFT, Boscardim PCB, et al. Mediastinite descendente necrosante pós-angina de Ludwig. J Pneumologia. 2001;27.
https://doi.org/10.1590/S1806-3713200500...

Em 2002, Potter estudou retrospectivamente os prontuários de 85 pacientes com infecções nos espaços cervicais profundos e não recomendou, nas suas conclusões, a intubação traqueal nos casos graves por apresentarem riscos de extubação não planejada com dificuldade de reintubação devido ao edema e à possibilidade de propagação de infecção durante a intubação. Esse autor acredita que a análise criteriosa do paciente e a disponibilidade de equipamentos são fundamentais na hora da escolha do método de manutenção da via aérea.1111 Potter JK, Herford AS, Ellis E. Tracheotomy versus endotracheal intubation for airway management in deep neck space infections. J Oral Maxillofac Surg. 2002;60:349-54.

Apesar dos riscos da IOT, no caso reportado por Kassam et al. demonstrou-se um paciente com AL submetido a IOT para cirurgia de extração dentária e descompressão dos espaços acometidos pela infecção que permaneceu intubado por 72 horas após o término do procedimento. Nesse estudo os autores enfatizam a importância da manutenção da IOT por um período após o procedimento, até redução do edema e consequentemente menor risco de obstrução da via aérea no pós-operatório.99 Kassam K, Messiha A, Heliotis M. The original angina. Case Rep Surg. 2013;2013:1-4. No presente caso, o paciente permaneceu intubado pela via nasotraqueal, durante o pós-operatório imediato, como forma de evitar complicações relacionadas ao controle da via aérea, uma vez que as dificuldades encontradas permanecem até a resolução da doença.99 Kassam K, Messiha A, Heliotis M. The original angina. Case Rep Surg. 2013;2013:1-4.

Ao fazer uma análise retrospectiva de 29 casos de abscessos de garganta, Wolfe et al. demonstraram que em 19 casos (65,5%) já tinham evidências de comprometimento respiratório e em oito dos 19 casos (42%) os pacientes necessitaram de técnicas avançadas para o manejo da via aérea. Nesse estudo, nenhum caso exigiu controle cirúrgico e não houve mortalidade devido à gerência da ventilação.1414 Wolfe MM, Davis JW, Parks SN. Is surgical airway necessary for airway management in deep neck infections and Ludwig's angina? J Crit Care. 2011;26:11-4.

A urgência no estabelecimento da via aérea no nosso paciente e as condições adversas de manejo da mesma não possibilitaram o uso do tubo de duplo lúmen (Carlens) conforme o planejamento pré-operatório. A possibilidade de seletivar a ventilação pulmonar para drenagem do mediastino foi suplantada pela necessidade do rápido estabelecimento de uma via aérea pérvia e segura nesse paciente. Poderíamos ter usado um bloqueador brônquico, mas o hospital não dispunha dele no momento do atendimento.

Outras técnicas, como GlideScope®, AirTraq® e laringoscopia por fibra óptica, permitem melhor acesso à via aérea e evitam o manejo cirúrgico.1414 Wolfe MM, Davis JW, Parks SN. Is surgical airway necessary for airway management in deep neck infections and Ludwig's angina? J Crit Care. 2011;26:11-4.,1515 Greenberg SL, Huang J, Chang RS, et al. Surgical management of Ludwig's angina. ANZ J Surg. 2007;77:540-3.

Em conclusão, o manejo da via aérea nos pacientes com angina de Ludwig permanece desafiador. A escolha da técnica mais segura deve ser embasada no quadro clínico, nas condições técnicas disponíveis e na necessidade premente de preservação da vida do paciente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2014
  • Aceito
    8 Out 2014
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