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Tempo de validade dos exames pré-operatórios normais para uma reintervenção cirúrgica e o impacto nos desfechos pós-operatórios

Resumo

Justificativa e objetivo:

Existem poucos dados que delimitam o período de tempo em que os exames pré-operatórios podem ser considerados válidos. O objetivo deste estudo foi determinar a probabilidade de mudanças nos resultados de exames pré-operatórios previamente normais em relação ao tempo e o impacto dessas alterações nos desfechos pós-operatórios.

Métodos:

Foram incluídos 970 pacientes com exames pré-operatórios normais antes da primeira cirurgia e que requereram uma nova intervenção. Os exames pré-operatórios feitos para o primeiro procedimento foram comparados com aqueles feitos para o segundo procedimento. As seguintes variáveis foram analisadas em relação ao seu potencial para induzir alterações nos resultados dos exames: sexo, idade, risco cirúrgico, quimioterapia ou radioterapia prévia e presença de comorbidades. Desfechos intra-hospitalares foram analisados.

Resultados:

A mediana temporal entre os procedimentos foi de 27 meses (6-84). A probabilidade de alteração em pelo menos um dos exames pré-operatórios foi de 1,7% (IC 95%: 0,5-2,9), 3,6% (IC 95%: 1,8-5,4) e 6,4% (IC 95%: 3,9-8,9) nos intervalos 12, 24 e 36 meses, respectivamente, para pacientes < 50 anos e 2,1% (IC 95%: 0,7-3,5), 9,2% (IC 95%: 5,9-12,5) e 13,4% (IC 95%: 9,3-17,5), respectivamente, para pacientes ≥ 50 anos. Idade (p = 0,009), risco cirúrgico (p < 0,001), quimioterapia (p = 0,001), radioterapia (p = 0,012) e presença de comorbidades (p < 0,001) estavam associadas com a probabilidade de mudanças nos resultados dos exames. Alterações nos exames não se associaram significativamente a desfechos intra-hospitalares adversos (p = 0,426).

Conclusão:

Para pacientes submetidos a um segundo procedimento cirúrgico, a probabilidade de alteração nos exames pré-operatórios previamente normais é baixa durante os primeiros anos após a primeira intervenção cirúrgica e quando ocorreram mudanças não afetaram adversamente os desfechos pós-operatórios intra-hospitalares.

PALAVRAS-CHAVE
Período pré-operatório; Validade; Cirurgia; Desfecho pós-operatório; Testes preoperatórios

Abstract

Background and objective:

There are few data defining the period of time in which preoperative tests can be considered valid. The purpose of this study was to determine the likelihood of changes in the results of preoperative tests previously normal in relation to time, and the impact of these changes on postoperative outcomes.

Methods:

A total of 970 patients with normal preoperative tests before the first surgery and who required a new intervention were included. The preoperative tests performed for the first procedure were compared with those performed for the second procedure. The following variables were assessed regarding their potential to induce changes in test results: sex, age, surgical risk, previous chemotherapy or radiotherapy, and presence of comorbidities. In-hospital outcomes were analyzed.

Results:

The median time between procedures was 27 months (6–84). The probability of change in at least one of the preoperative exams was 1.7% (95% CI: 0.5–2.9), 3.6% (95% CI: 1.8–5.4), and 6.4% (95% CI: 3.9–8.9) during the 12, 24, and 36-month intervals, respectively, for patients aged <50 years and 2.1% (95% CI: 0.7–3.5), 9.2% (95% CI: 5.9–12.5), and 13.4% (95% CI: 9.3–17.5), respectively, for patients ≥50 years of age. Age (p = 0.009), surgical risk (p < 0.001), chemotherapy (p = 0.001), radiotherapy (p = 0.012), and comorbidities (p < 0.001) were associated with the likelihood of changes in test results. Test changes were not significantly associated with in-hospital adverse outcomes (p = 0.426).

Conclusion:

For patients undergoing a second surgical procedure, the probability of change in previously normal preoperative tests is low during the first years after the first surgical intervention, and when changes occurred, they did not adversely affect the in-hospital postoperative outcomes.

KEYWORDS
Preoperative period; Validity; Surgery; Postoperative outcomes; Preoperative tests

Introdução

No mundo são feitos mais de 240 milhões de procedimentos cirúrgicos eletivos anualmente.11 Garcia-Miguel FJ, Serrano-Aguilar PG, López-batista J. Preoperative assessment. Lancet. 2003;362:1749-57.,22 Gualandro DM, Yu PC, Calderaro D, et al. II diretriz brasileira de avaliação pré-operatória. Arq Bras Cardiol. 2011;96:1-68. A grande maioria das instituições faz rotineiramente avaliação clínica e laboratorial antes de uma cirurgia para determinar a condição pré-operatória do paciente com o objetivo de reduzir a morbimortalidade perioperatória.33 Böhmer AB, Wappler F, Zwissler B. Preoperative risk assessment – from routine tests to individualized investigation. Dtsch Arztebl Int. 2014;111:437-46. Assim, um grande número de pacientes é submetido a exames pré-operatórios, como eletrocardiograma (ECG), radiografia de tórax (raios X) e exames laboratoriais (hemograma completo, glicemia, ureia, creatinina e coagulograma).44 Munro J, Booth A, Nicholl J. Routine preoperative testing: a systematic review of the evidence. Health Technol Assess. 1997;1:1-62.,55 Glance LG, Blunberg N, Eaton M. Preoperative thrombocytopenia and postoperative outcomes after noncardiac surgery. Anesthesiology. 2014;120:62-75. No entanto, a eficácia desses exames em identificar doenças não detectadas pela anamnese e/ou exame físico e o seu valor preditivo para complicações perioperatórias tem sido questionada.66 Fritsch G, Flamm M, Hepner DL, et al. Abnormal preoperative tests, pathological findings of medical history and their predictive value for perioperative complications. Acta Anaesthesiol Scand. 2012;56:339-50.1111 Schein OD, Katz J, Bass EB, et al. The value of routine preoperative medical testing before cataract surgery Study of Medical Testing for Cataract Surgery. N Engl J Med. 2000;342:168-75. Além disso, não existem informações seguras sobre o intervalo de tempo em que os resultados dos exames pré-operatórios prévios possam ser usados com segurança em uma segunda intervenção cirúrgica. Portanto, exames são repetidos diversas vezes, levam a um aumento de custo e retardo num segundo procedimento. Devido a dados insuficientes para recomendações baseadas em evidências, a Sociedade Americana de Anestesiologia publicou em 2002 uma orientação,1212 American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation. Practice advisory for preanesthesia evaluation: a report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation. Anesthesiology. 2002;96:485-96. recentemente atualizada,1313 Apfelbaum JL, Connis RT, et al. American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation Practice advisory for preanesthesia evaluation: an update report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation. Anesthesiology. 2012;116:522-38. que afirmou que os resultados dos exames pré-operatórios feitos dentro dos seis meses anteriores à data da cirurgia são aceitáveis a não ser que tenha ocorrido mudança na história clínica do paciente.

O objetivo deste estudo foi determinar a probabilidade de alteração nos exames pré-operatórios previamente normais em relação ao tempo, bem como o impacto dessas alterações nos desfechos pós-operatórios em uma segunda intervenção.

Método

Este estudo foi uma coorte retrospectiva com 970 pacientes diagnosticados com neoplasias que se submeteram a duas intervenções cirúrgicas sob anestesia geral em um intervalo de pelo menos seis meses e que tinham resultados dos exames pré-operatórios dentro dos limites da normalidade no primeiro procedimento cirúrgico. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer sob o número CAAE 06271212.7.0000.0062.

Cada paciente foi submetido a um painel completo de exames pré-operatórios, que incluíam: ECG; raios X de tórax; hemograma; glicemia, ureia e creatinina; e coagulograma.

Os dados foram obtidos por meio de pesquisa eletrônica a partir dos registros hospitalares. Os resultados dos exames da primeira cirurgia foram comparados com aqueles da segunda intervenção. Os pacientes também foram divididos em dois grupos com relação à idade no momento do segundo procedimento (< 50 e ≥ 50 anos). As variáveis que poderiam impactar nos resultados dos exames através do tempo foram analisadas. Entre elas temos: idade, sexo, risco cirúrgico na primeira intervenção (American Society of Anesthesiologists Physical Status Classification [ASA PS]), presença de comorbidades e necessidade de quimioterapia e/ou radioterapia. As comorbidades consideradas importantes focaram os sistemas cardiovascular, pulmonar, endócrino, renal e nervoso. Foi considerado como resultado de exame laboratorial normal qualquer valor menor ou maior do que 5% do limite da referência adotada pelo laboratório da nossa instituição (leucócitos 4.000-12.000 cm; hemoglobina ≥ 12 em homens, ≥ 10 g.dL-1 nas mulheres; plaquetas 140.000-400.000 mcL; TP 70%-100%; TTPA até 35 segundos; glicemia de jejum 60-99 mg.dL-1, ureia 15-40 mg.dL-1; creatinina ≤ 1,4 em homens, ≤ 1,2 mg.dL-1 em mulheres). Anormalidades eletrocardiográficas foram identificadas por um único membro do departamento de cardiologia da instituição e classificadas como distúrbio do ritmo, sobrecargas ventriculares, sobrecargas atriais, alterações da repolarização ventricular, bloqueios intraventriculares, bloqueios atrioventriculares e bradicardia sinusal (< 50 batimentos.min-1. na ausência de drogas). Um membro do Departamento de Radiologia analisou as radiografias de tórax e classificou-as como opacidades pulmonares, aumento do diâmetro cardíaco, infiltrados parenquimatosos, alongamento aórtico, metástase pulmonar e derrame pleural. Os desfechos intra-hospitalares de pacientes com resultados normais antes de ambas as intervenções cirúrgicas foram comparados com os desfechos daqueles que apresentaram alguma anormalidade em qualquer um dos exames pré-operatórios antes da segunda intervenção. As cirurgias foram divididas em três categorias de acordo com o tempo operatório: curto (< 2 horas), intermediário (entre 2 e 4 horas) e longo (> 4 horas). A duração da segunda intervenção feita nos pacientes com exames pré-operatórios normais foi comparada com a duração da cirurgia dos pacientes que apresentaram alguma anormalidade nesses exames. Foram considerados desfechos intra-hospitalares adversos: qualquer complicação clínica que aumentasse o tempo de internação para o procedimento cirúrgico proposto ou óbito.

Análise estatística

Dados descritivos são apresentados como média ± desvio-padrão para variáveis contínuas ou frequência absoluta e relativa para variáveis categóricas, o tempo entre os procedimentos é apresentado como mediana, mínimo e máximo. Função Kaplan-Meier e testes de log-rank foram usados para contabilizar a probabilidade de alteração em pelo menos um exame pré-operatório e em cada exame individualmente e comparar as taxas de alterações nesses exames entre as variáveis de interesse. Modelos de riscos proporcionais de Cox foram usados para avaliar a associação conjunta de todas as variáveis de interesse com qualquer e com cada alteração nos exames pré-operatórios. A associação do desfecho pós-operatório e tempo cirúrgico com alterações em qualquer exame e em cada exame individualmente foi estimada por meio do teste de Fisher e do teste de razão de verossimilhanças. Um valor de p< 0,05 foi considerado significante para todas as análises. As análises foram feitas com os recursos do SPSS para Windows versão 20.0 (IBM, Armonk, New York, USA).

Resultados

Foram analisados retrospectivamente 970 pacientes. A média foi de 49,9 ± 12,3 anos e 91,1% dos pacientes eram do sexo feminino. Da amostra, 843 pacientes (86,9%) permaneceram com todos os exames pré-operatórios sem qualquer alteração no intervalo de tempo entre os procedimentos cirúrgicos. A mediana temporal entre os procedimentos foi de 27 meses (variação: 6-84). Os aspectos básicos relacionados aos pacientes e aos exames pré-operatórios são mostrados na tabela 1.

Tabela 1
Características e exames pré-operatórios da população estudada (n = 970)

Considerando o total da amostra, a probabilidade estimada de ocorrência de pelo menos uma alteração em pelo menos um dos exames pré-operatórios foi de 1,9% (IC 95%: 0,9-2,9); 6% (4,2-7,8); 9,4% (7-11,8); 15,4% (12,1-18,7); 22,4% (18,1-26,7); 34,5% (27,6-41,4) e 62,4% (46,7-78,1) em 12, 24, 36, 48, 60, 72 e 84 meses, respectivamente (tabela 2). Dentre as variáveis analisadas, idade (p = 0,009); classificação ASA (p< 0,001); presença de pelo menos uma comorbidade (p< 0,001); quimioterapia (p = 0,001) e radioterapia (p = 0,012) estavam associadas com a probabilidade estimada de ocorrência de alguma mudança em um dos exames previamente normais (tabela 2 e fig. 1).

Tabela 2
Probabilidades estimadas de alteração dos exames pré-operatórios segundo características de interesse ao longo do tempo e resultados dos testes comparativos
Figura 1
Curvas de Kaplan-Meier que estabelecem a relação entre a probabilidade de alteração em pelo menos um dos exames pré-operatórios normais no momento da primeira intervenção cirúrgica e as variáveis estudadas. Sexo (a), Idade (b), American Society of Anesthesiologists Physical status – ASA (c), Presença de comorbidades (d), Quimioterapia prévia (e) e Radioterapia prévia (f).

A probabilidade de um paciente com menos de 50 anos (n = 537) apresentar alguma alteração em pelo menos um dos exames pré-operatórios previamente normais foi de 1,7%; 3,6% e 20,2% em 12, 24 e 60 meses, respectivamente. Naqueles acima de 50 anos a probabilidade de mudança nos resultados foi de 2,1%; 9,2% e 25% no mesmo intervalo de tempo (tabela 2). Em uma análise isolada, a idade apareceu como fator de risco significante para mudança nos exames, porém quando analisada em conjunto com as outras variáveis essa significância desapareceu (p = 0,335).

Entre os pacientes classificados como ASA I (n = 532) no momento da primeira intervenção a probabilidade estimada de ocorrência de alteração em pelo menos um dos exames pré-operatórios foi de 2%; 5% e 18,7% em 12, 24 e 60 meses, respectivamente. Entre aqueles considerados ASA II (n = 400), a chance de mudança foi de 1,4%, 5,4% e 22,1% em 12, 24 e 60 meses. Já nos pacientes classificados como ASA III (n = 38) alterações podem ser esperadas em 5,5%, 22% e 57% nos mesmo período (tabela 2). Esse grupo (ASA III) tem, na análise conjunta, pouco mais de duas vezes risco de alterações nos exames pré-operatórios quando comparados com os pacientes classificados como ASA I (RP = 2,23; IC 95%: 1,16-4,29; p = 0,016) (tabela 3).

Tabela 3
Resultados para alteração em qualquer dos exames pré-operatórios de acordo com as variáveis estudadas

Probabilidade de alteração em pelo menos um dos exames entre o primeiro e o segundo procedimentos foi 88% maior para pacientes que apresentavam alguma comorbidade quando comparados com aqueles sem qualquer comorbidades (RP = 1,91; IC 95%: 1,25-2,93; p = 0,003) (tabela 3). Mesmo assim, aos 60 meses, aproximadamente 70% dos pacientes com comorbidades e 85% daqueles sem comorbidades tinham exames normais no momento do segundo procedimento (tabela 2 e fig. 1).

Para pacientes submetidos à quimioterapia antes ou após a primeira cirurgia, a probabilidade de alteração nos exames pré-operatórios foi de 2,2%, 8,4% e 27,6% em 12, 24 e 60 meses, respectivamente (tabela 2). Esses pacientes tiveram 1,76 vez mais probabilidade de apresentar alguma alteração em pelo menos um dos exames pré-operatórios quando comparados com pacientes que não foram expostos à quimioterapia (RP = 1,76; IC 95%: 1,23-2,52; p = 0,002) (tabela 3).

Quando analisada individualmente, a radioterapia esteve associada ao aparecimento de anormalidades nos exames pré-operatórios, porém quando esses pacientes foram analisados considerando todas as variáveis, essa influência desapareceu (RP = 1,40; IC 95%: 0,94-2,07; p = 0,098) (tabela 3).

Anormalidades em pelo menos um dos resultados dos exames pré-operatórios não afetaram adversamente os desfechos intra-hospitalares nessa população (p = 0,426). Mesmo quando analisadas individualmente, anormalidades no ECG (p > 0,999), no raios X (p = 0,259) e nos exames laboratoriais (p = 0,441) também não estavam associadas a desfechos intra-hospitalares adversos (quatro).

Em relação à segunda cirurgia, 820 (84,5%) foram consideradas de curta duração, 118 (12,2%) de duração intermediária e 32 (3,3%) de longa duração. Houve quatro mortes (0,4%) e 29 complicações intra-hospitalares (3%). A duração do segundo procedimento foi igualmente distribuída (p = 0,112) entre os pacientes com e sem alteração nos exames pré-operatórios.

Discussão

Este estudo retrospectivo avaliou uma grande coorte de pacientes submetidos a dois procedimentos cirúrgicos não cardíacos eletivos com um intervalo mínimo de seis meses, no que diz respeito a modificações dos exames pré-operatórios e ao impacto dessas alterações na morbidade e na mortalidade intra-hospitalar. Em nossa instituição fazemos ECG, raios X de tórax e exames laboratoriais para todos os pacientes submetidos a algum procedimento cirúrgico sob anestesia geral, visto que as atuais recomendações de diretrizes são baseadas em níveis de evidência B e C e poucos estudos incluíram pacientes com câncer.22 Gualandro DM, Yu PC, Calderaro D, et al. II diretriz brasileira de avaliação pré-operatória. Arq Bras Cardiol. 2011;96:1-68.,1414 Fleisher LA, Fleischmann KE, Auerbach AD, et al. ACC/AHA Guideline on perioperative cardiovascular evaluation and management of patients undergoing non-cardiac surgery. JACC. 2014;64:e77-e137.,1515 Kristensen SD, Knuuti J, Saraste A, et al. ESC/ESA Guideline on non-cardiac surgery: cardiovascular assessment and management. Eur Heart J. 2014;35:2383-431.

De acordo com a hipótese principal deste estudo, de que exames pré-operatórios são feitos de forma rotineira e excessiva, observamos que 58% de nossa coorte não apresentavam qualquer comorbidade e mesmo assim foram submetidos ao mesmo painel de exames pré-operatórios para uma segunda intervenção. Nosso achado foi similar ao de Guerra et al.,1616 Guerra ME, Pereira CS, Falcão DP, et al. Análise da relevância dos exames laboratoriais pré-operatórios solicitados em cirurgias eletivas em um hospital universitário. Rev Med Residente. 2012;14:47-53. que mostraram em uma revisão retrospectiva de 500 pacientes que apesar de 56% dos pacientes não apresentarem comorbidades, foram submetidos a avaliação laboratorial pré-operatória. Em outro estudo que avaliou 1.044 pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos, Narr et al.1717 Narr BJ, Warner ME, Schroeder DR, et al. Outcomes of patients with no laboratory assessment before anesthesia and a surgical procedure. Mayo Clin Proc. 1997;72:505-9. demonstraram que em 97% dos indivíduos considerados saudáveis não houve aumento da morbidade ou da mortalidade, apesar de não terem feito exames pré-operatórios.

Um achado importante deste estudo foi que resultados previamente normais permaneceram inalterados por vários meses. O fato de somente 1,7% dos pacientes < 50 anos e 2,1% daqueles com 50 anos ou mais apresentarem mudança em pelo menos um dos exames em 12 meses é clinicamente relevante, visto que a maior parte dos anestesiologistas aceita exames pré-operatórios feitos há menos de seis meses conforme orientação de algumas publicações.1212 American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation. Practice advisory for preanesthesia evaluation: a report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation. Anesthesiology. 2002;96:485-96.,1313 Apfelbaum JL, Connis RT, et al. American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation Practice advisory for preanesthesia evaluation: an update report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on Preanesthesia Evaluation. Anesthesiology. 2012;116:522-38. Apesar de alguns estudos1818 Levinstein MR, Ouslander JR, Rubenstein LZ, et al. Yield of routine annual laboratory tests in a skilled nursing home population. JAMA. 1987;258:1909-15.

19 Wolf-Klein GP, Holt T, Silverstone FA, et al. Efficacy of routine annual studies in the care of elderly patients. J Am Geriatr Soc. 1985;33:325-9.
-2020 Dzankic S, Pastor D, Gonzalez C, et al. The prevalence and predictive value of abnormal preoperative laboratory tests in elderly surgical patients. Anesth Analg. 2001;93:301-8. demonstrarem que existe uma relação entre a idade e alterações nos exames pré-operatórios, isso não foi observado na nossa análise. Quando analisada isoladamente, a idade se mostrava significante, porém, com a associação das outras variáveis na análise, essa significância desapareceu. Acreditamos que isso tenha ocorrido visto a maior prevalência de comorbidades com o envelhecimento.

MacPherson et al.2121 MacPherson DS, Snow R, Lofgren RP. Preoperative screening: value of previous tests. Ann Intern Med. 1990;113:969-73. avaliaram pacientes com exames normais ou não e observaram que em 47% dos 1.109 pacientes avaliados não houve qualquer alteração nos resultados dos exames feitos dentro de 12 meses. Consistentemente com esses dados, em nossa amostra, na qual analisamos apenas pacientes com resultados normais, não só no primeiro ano, mas ao longo de cinco anos, aproximadamente 80% permaneceram com todos os exames inalterados. Esses achados foram similares para todas as variáveis clínicas analisadas. Dentre essas variáveis, a classificação ASA foi mais estreitamente relacionada a uma maior probabilidade de alteração nos resultados de exames, entretanto a maioria de nossa amostra consistia de pacientes ASA I e ASA II e entre esses dois grupos não foi observada diferença estatisticamente significante. Uma diferença significante foi encontrada quando pacientes ASA III foram incluídos, mas esse paciente torna-se raro em um estudo de coorte no qual o maior critério de inclusão era apresentar todos os exames pré-operatórios normais. Por essa razão também não houve paciente classificado como ASA IV (tabela 4).

Tabela 4
Impacto das alterações nos exames pré-operatórios nos desfechos intra-hospitalares

Em pacientes com comorbidades pré-existentes ou alguma nova condição clínica diagnosticada entre os procedimentos, verificou-se ser mais provável que ocorressem alterações nos exames comparados com os pacientes saudáveis. Isso pode ser explicado pelo fato de que a presença de comorbidades está relacionada a um grupo de pacientes com uma condição clínica mais deteriorada e por isso há uma maior chance de se observar mudanças nos resultados.

Quimioterapia pode ter um grande efeito em uma variedade de exames, particularmente os laboratoriais, no entanto essas alterações geralmente são limitadas ou ocorrem dentro de poucos meses após o tratamento quimioterápico.2222 Hall E, Cameron D, Waters R, et al. Comparison of patient reported quality of life and impact of treatment side effects experienced with a taxane-containing regimen and standard anthracycline based chemotherapy for early breast cancer: 6 year results from the UK TACT trial (CRUK/01/001). Eur J Cancer. 2014;50:2375-89. Devido ao tempo mínimo de seis meses entre os procedimentos cirúrgicos adotado no protocolo do estudo, e com uma mediana observada de 27 meses, pode-se concluir que mesmo naqueles pacientes que fizeram uso de quimioterápicos poderíamos esperar poucas alterações nos exames pré-operatórios para uma segunda intervenção.

Nosso estudo tem implicações práticas imediatas. Independentemente da presença das variáveis que têm potencial para induzir alterações nos exames pré-operatórios, 80% da população do estudo não tiveram mudança nesses exames até cinco anos de observação. E naqueles que apresentaram alguma alteração ao longo do tempo, não foi observado qualquer impacto adverso no desfecho intra-hospitalar. Como observado na figura 1, à curva das diferentes variáveis quase podem ser sobrepostas até 12 meses, indica a baixa probabilidade de alteração nos exames nesse período. Dessa maneira, a probabilidade de essas variáveis induzirem alteração nos resultados dos exames pré-operatórios previamente normais é virtualmente zero durante o primeiro ano. Se levarmos em conta esses resultados, a exigência da repetição de exame pré-operatório (se recomendado) para uma segunda intervenção parece desnecessário e a aceitação de exames posteriores a seis meses por anestesiologistas e cirurgiões parece ser razoável.

Este estudo tem algumas limitações. Primeiro, foi retrospectivo e os dados foram obtidos por meio de prontuários eletrônicos. Assim, existe a possibilidade de dados inadequados e/ou incompletos. Ademais, o estudo foi feito em um único centro e todos os procedimentos cirúrgicos foram feitos em pacientes com tumores malignos. A grande maioria das cirurgias foi considerada como curto período operatório e consequente a isso houve poucas complicações intra-hospitalares.

A probabilidade de alteração em pelo menos um dos exames pré-operatórios previamente normais repetidos durante os primeiros anos após a primeira intervenção cirúrgica é baixa. Se alterações ocorrerem, elas não estão associadas com desfechos adversos na fase intra-hospitalar. Esses resultados sugerem uma profunda reflexão sobre a real necessidade de se repetir os exames pré-operatórios previamente normais para uma segunda intervenção que venha ocorrer nos primeiros anos após o procedimento inicial.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    8 Ago 2016
  • Aceito
    6 Out 2017
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