Acessibilidade / Reportar erro

Analgesia neuraxial em uma parturiente com síndrome de Vacterl em trabalho de parto normal

Resumo

Introdução:

O termo Vacterl é um acrônimo para uma associação de malformacões congênitas que inclui anomalias vertebral, anal, cardíaca, traqueal, esofágica, renal e dos membros (Limbs em inglês). As anomalias Vacterl representam um enorme desafio para os anestesiologistas. Descrevemos o manejo anestésico de uma parturiente com síndrome de Vacterl submetida à analgesia neuraxial para parto normal.

Relato de caso:

Paciente primípara, 23 anos, 39 semanas de gestação, apresentava em trabalho de parto 4 cm de dilatação cervical, apagamento completo, exigiu analgesia de parto. A história médica incluía síndrome de Vacterl com ânus imperfurado e defeito parcial do coxim endocárdico, ambos corrigidos na primeira infância. A paciente também apresentava escoliose dorso-lombar acentuada com uma vértebra lombar adicional. Uma RM feita aos 14 anos revelou os achados mencionados acima sem anormalidades na medula espinhal. Com um exame neurológico normal, a técnica anestésica combinada raquiperidural (CRP) foi usada. Apesar de escoliose significativa, o espaço peridural foi identificado próximo ao interespaço L3-L4 a uma profundidade de 5 cm. Fentanyl (25 mcg) foi administrado por via espinhal, seguido de analgesia peridural contínua controlada pela paciente. A paciente sentiu grande alívio da dor durante todo o trabalho de parto; o parto vaginal ocorreu 5 horas após a anestesia CRP sem intercorrências.

Discussão:

A raridade da síndrome de Vacterl na população obstétrica com suas extensas anomalias exige uma abordagem multidisciplinar no pré-natal porque pode representar grandes desafios para todos os prestadores de cuidados de saúde, inclusive problemas respiratórios, de ventilação, cardíacos e do neuroeixo. Este é o primeiro caso relatado de uma técnica neuraxial bem-sucedida e segura em uma paciente em trabalho de parto com síndrome de Vacterl, embora com anomalias limitadas da coluna vertebral e medula espinhal.

PALAVRAS-CHAVE
Síndrome de Vacterl; Epidural analgesia; Dor obstétrica

Abstract

Introduction:

The term VACTERL is an acronym for an association of congenital malformations: including vertebral, anal, cardiac, tracheo-esophageal, renal and limb anomalies. VACTERL anomalies pose a formidable challenge to anesthesiologists. We describe the anesthetic management of a parturient with VACTERL association, who underwent neuraxial analgesia for labor and vaginal delivery.

Case report:

A 23 year old primigravida at 39 weeks gestation presented in labor at 4 cm cervical dilatation, completely effaced, requesting labor analgesia. Past medical history included VACTERL association with an imperforate anus and a partial endocardial cushion defect, both repaired in early childhood. She also had significant dorso-lumbar scoliosis with an extra lumbar vertebra. An MRI performed at 14 years age revealed the above findings with no spinal cord abnormalities. With a normal neurologic exam, a combined spinal epidural technique was performed. Despite significant scoliosis, the epidural space was identified at approximately the L3–L4 interspace at a depth of 5 cm. Spinal Fentanyl 25 mcg was administered followed by continuous patient-controlled epidural analgesia. The patient experienced excellent pain relief throughout her labor, and had an uneventful vaginal delivery 5 h after epidural placement.

Discussion:

The rarity of VACTERL association in the obstetric population with its extensive anomalies mandates a multidisciplinary approach in the prenatal period as it can pose major challenges to all health care providers, including airway, ventilatory, cardiac and neuraxial problems. This is the first reported case of a successful and safe neuraxial technique in a laboring patient with the VACTERL association with albeit limited vertebral and spinal cord anomalies.

KEYWORDS
VACTERL association; Epidural analgesia; Obstetric pain

Introdução

Vacterl é uma associação rara de distúrbios congênitos de vários órgãos, geralmente definida como a presença simultânea de pelo menos três das seguintes anomalias de sua sigla: defeitos vertebrais, atresia anal, defeitos cardíacos, fístula traqueoesofágica, displasia renal e anomalias dos membros, sem evidência clínica ou laboratorial que sugira outro diagnóstico diferencial (tabela 1).11 Solomon BD. VACTERL/VATER association. Orphanet J Rare Dis. 2011;6:56.44 Raam MS, Pineda-Alvarez DE, Hadley DW, et al. Long-term outcomes of adults with features of VACTERL association. Eur J Med Gene. 2011;54:34-41. Embora descrita pela primeira vez há 40 anos por Quan e Smith,55 Quan L, Smith DW. The VATER association. Vertebral defects, anal atresia, T-E fistula with esophageal atresia, radial and renal dysplasia: a spectrum of associated defects. J Pediatr. 1973;82:104-7. uma única causa unificadora permanece sem explicação. A explicação mais aceita é a que relaciona o distúrbio a defeitos no campo do desenvolvimento durante a blastogênese que, fenotipicamente, afeta múltiplos sistemas orgânicos.11 Solomon BD. VACTERL/VATER association. Orphanet J Rare Dis. 2011;6:56.,66 Hersh JH, Angle B, Fox TL, et al. Developmental field defects: coming together of associations and sequences during blastogenesis. Am J Med Genet. 2002;110:320-3.

Tabela 1
Síndrome de Vacterl com seu grupo de anomalias congênitas

Os avanços nas técnicas cirúrgicas e nos cuidados especializados têm melhorado bastante o prognóstico e a sobrevida em lactentes com a síndrome de Vacterl,11 Solomon BD. VACTERL/VATER association. Orphanet J Rare Dis. 2011;6:56. tornaram-na mais comum de ser encontrada pelos anestesiologistas da atualidade em pacientes adultos na prática clínica diária. Apresentamos um caso de bloqueio neuraxial bem-sucedido em uma parturiente com síndrome de Vacterl.

Relato de caso

Paciente primigrávida, 23 anos, 165 cm de estatura, 73,5 kg de peso e IMC de 27 kg.m−2; 39 semanas de gravidez intrauterina, deu entrada na sala de parto em trabalho de parto, com escore 8 (baseado em uma escala visual analógica de 10 pontos). Infelizmente, embora tenha feito um acompanhamento pré-natal adequado, a paciente nunca foi encaminhada para avaliação pré-natal em departamento de anestesia obstétrica de alto risco por razões desconhecidas. Ao exame obstétrico na admissão, a paciente estava com 4 cm de dilatação cervical, apagamento cervical completo e em estação –2. Consultamos a anestesiologia sobre analgesia neuraxial. No momento da consulta, a paciente relatou história pregressa de síndrome de Vacterl, diagnosticada quando criança, e não havia sido consultada anteriormente pelo serviço de anestesia. A síndrome de Vacterl incluía as seguintes anomalias nessa paciente: levoescoliose toracolombar, vértebra lombar extra, defeito do coxim endocárdico incompleto e atresia anal. Para a atresia anal, a feitura de uma colostomia foi necessária ao nascimento e retirada aos dois anos, com procedimentos subsequentes que incluíram várias correções de hérnias e revisões das cicatrizes. Aos três anos, a paciente foi submetida à correção de seu defeito do coxim endocárdico incompleto, que incluiu a correção de defeito do septo atrial, correção do canal de transição e correção com sutura de válvula mitral palatina. A paciente negou quaisquer sintomas cardíacos no momento da admissão. O exame cardíaco atual da paciente incluiu um murmúrio de ejeção sistólica de Grau II-III/VI na borda esternal esquerda. O eletrocardiograma revelou ritmo sinusal normal. Um ecocardiograma feito durante essa gestação e cinco meses antes da admissão revelou uma fração de ejeção de 65%, leve regurgitação aórtica e mitral e leve obstrução do fluxo ventricular esquerdo. Infelizmente, as informações sobre suas anomalias vertebrais eram escassas, sem estudos de imagem da anatomia da coluna vertebral e/ou medula espinhal. Porém, a documentação do cirurgião ortopédico pediátrico da paciente e um laudo de ressonância magnética feita nove anos antes não revelaram quaisquer manifestações da medula espinhal ou outros problemas vertebrais. O exame das vias aéreas identificou Mallampati Classe II, distância tireomentoniana (7 cm) e amplitude de movimento cervical intacta. Os valores laboratoriais da paciente na admissão incluíram hemoglobina (12,5 g.dL−1) e contagem de plaquetas (274,000 µL).

Apesar da escassez de dados sobre sua anatomia esquelética, exceto pela escoliose óbvia e um laudo ortopédico antigo e devido a sua falta de sintomas neurológicos e o agravamento da dor do parto, um bloqueio neuraxial para dor e parto vaginal foi considerado uma opção razoável e a paciente foi submetida à analgesia combinada raquiperidural (CRP). A anatomia escoliótica da paciente era acentuada e com aplicação de referência anatômica intercristal o interespaço da região lombar (L3-4 ou 4-5) foi usado. Excelentes processos espinhosos e interespaços foram palpados e por isso o uso de ultrassom foi adiado com base no sofrimento iminente da paciente. O espaço peridural foi identificado em 5 cm, com a técnica de perda de resistência com solução salina e uma agulha Tuohy de 3,5 polegadas e calibre 17G; em seguida, uma punção subaracnoidea com agulha espinhal ponta de lápis de 5 polegadas e calibre 25G (Pencan®) e administração intratecal de 25 µg de fentanil foram feitas. Subsequentemente, um cateter ponta fechada (calibre 20G) foi inserido e fixado à pele a 9 cm. Após a aspiração negativa, uma infusão peridural de bupivacaína a 0,1% e 2 µg por mL de fentanil foi iniciada via analgesia peridural controlada pelo paciente (PCEA), que consiste em uma infusão contínua de 6 mL.h−1 com bolus de 5 mL e intervalo de 20 minutos (min). A paciente sentiu alívio da dor dentro de 5 min da administração da dose espinhal que prosseguiu até atingir um nível satisfatório (T10). Cinco horas após o bloqueio neuraxial, a paciente foi submetida a um parto vaginal sem complicações de uma criança do sexo masculino viável, com 2,65 kg e Apgar de 9 (1º minuto) e 9 (5º minuto). O cateter peridural foi removido intacto, sem qualquer complicação anestésica.

Discussão

A síndrome de Vacterl é um aglomerado de malformações congênitas que, com mais frequência, se apresenta em conjunto e não por acaso. Sua frequência é estimada entre 1/10.000 e 1/40.000 lactentes,77 Botto LD, Khoury MJ, Mastroiacovo P, et al. The spectrum of congenital anomalies of the VATER association: an international study. Am J Med Genet. 1997;71:8-15. com aproximadamente 70% de preponderância do sexo masculino,88 Czeizel A, Ludanyi I. An aetiological study of the VACTERL-association. Eur J Pediatr. 1985;144:331-7. o que torna a síndrome uma raridade, especialmente na população obstétrica. Uma revisão da literatura identificou apenas dois casos (um relato de caso e uma carta ao editor) nos quais a anestesia foi providenciada para cesariana eletiva em duas pacientes grávidas com síndrome de Vacterl.99 Hilton G, Mihm F, Butwick A. Anesthetic management of a parturient with VACTERL association undergoing cesarean delivery. Can J Anaesth. 2013;60:570-6.,1010 Luce V, Mercier FJ, Benhamou D. Anesthetic management for a parturient affected by the VACTERL association. Anesth Analg. 2004;98:874. No primeiro caso, a anestesia peridural foi usada e, no segundo caso, a técnica usada foi anestesia combinada geral-peridural. Em contraste, nosso caso foi o primeiro que envolveu analgesia neuraxial bem-sucedida (CRP) em uma paciente que se apresentou em trabalho de parto ativo com síndrome de Vacterl, sem consulta anestésica prévia para o trabalho de parto vaginal. Vários desafios e aprendizados podem ser determinados a partir dessa experiência e da literatura disponível, especialmente se considerarmos o número baixo de candidatas para anestesia obstétrica de alto risco (< 25%),1111 Bharwani F, Macarthur A. Review of a high-risk obstetric anesthesia antepartum consult clinic. Can J Anaesth. 2014;61:282-3. que, na verdade, são encaminhadas e avaliadas por um anestesiologista na fase pré-natal.

Anomalias cardíacas ocorrem em 50-80% dos casos e anomalias cardíacas graves estavam presentes em nosso caso. Contudo, a correção dessas anomalias cardíacas ocorreu aos três anos, mas felizmente resultou em sinais residuais menores e sintomas que restringiam minimamente as atividades cotidianas de nossa paciente. Obviamente, o comprometimento cardíaco teria aumentado nossas preocupações anestésicas neste caso. Anomalias vertebrais são um marco da síndrome de Vacterl, presentes em aproximadamente 60-80% dos pacientes. O espectro das anomalias vertebrais é amplo, abrange defeitos de formação (hemivértebras), fusões vertebrais e vértebras ausentes ou supranumerárias e vértebras displásicas, como “vértebras em borboleta”, “vértebras em cunha”.11 Solomon BD. VACTERL/VATER association. Orphanet J Rare Dis. 2011;6:56.,33 Lawhon SM, MacEwen GD, Bunnell WP. Orthopaedic aspects of the VATER association. J Bone Joint Surg Am. 1986;68:424-9. Em alguns casos, a escoliose clínica pode ser o primeiro sinal de anomalias vertebrais44 Raam MS, Pineda-Alvarez DE, Hadley DW, et al. Long-term outcomes of adults with features of VACTERL association. Eur J Med Gene. 2011;54:34-41. e deve ser investigada a fundo com exames de imagem, pode também levar a distúrbio ventilatório restritivo importante. Além disso, anomalias neurológicas como medula presa (MP), siringe, filamentos terminais constritos e lipomeningomielocele também foram descritas em pacientes com anormalidades colorretais e urogenitais na síndrome de Vacterl, geralmente com manifestações neurológicas.33 Lawhon SM, MacEwen GD, Bunnell WP. Orthopaedic aspects of the VATER association. J Bone Joint Surg Am. 1986;68:424-9.,44 Raam MS, Pineda-Alvarez DE, Hadley DW, et al. Long-term outcomes of adults with features of VACTERL association. Eur J Med Gene. 2011;54:34-41. Em um pequeno estudo prospectivo,22 Kuo MF, Tsai Y, Hsu WM, et al. Tethered spinal cord and VACTERL association. J Neurosurg. 2007;106:201-4. sete de nove (78%) lactentes com síndrome de Vacterl apresentaram MP à ressonância magnética. Esses achados destacam a importância de um acompanhamento neurológico/ortopédico atento desses pacientes. Felizmente, apesar da falta de consulta ou conhecimento dessa paciente na fase inicial da gestação, juntamente com a falta de imagem de suas anomalias esqueléticas, o laudo do cirurgião ortopédico pediátrico, a negação de sinais e sintomas neurológicos e as anomalias vertebrais limitadas da paciente permitiram a aplicação de uma técnica analgésica neuraxial bem-sucedida. Porém, em muitos casos de síndrome de Vacterl as técnicas neuraxiais podem ser difíceis ou contraindicadas, secundárias a escoliose grave, anatomia obscura ou anomalias vertebrais mais extensas – casos nos quais o uso de ultrassom para avaliar a anatomia é altamente defendido. Em condições de doença pulmonar restritiva grave, a analgesia neuraxial pode ser uma opção viável para o parto vaginal; porém, a anestesia neuraxial para cesariana pode agravar ainda mais qualquer comprometimento respiratório. Outra preocupação anestésica com essas pacientes, que não foi um fator neste caso, é o potencial para via aérea difícil em condições de anomalias esqueletais mais extensas que incluiriam uma escoliose que envolveu as vértebras cervicais.

Este relato demonstra que a aplicação de bloqueio neuraxial para analgesia em parto vaginal pode ser feita com segurança em pacientes selecionados com síndrome de Vacterl; no entanto, recomenda-se também fortemente o exame dessas pacientes, preferencialmente na fase pré-natal, para minimizar o risco de potenciais complicações das técnicas de anestesia neuraxial e/ou geral.

Consentimento

Obtivemos o termo de consentimento informado assinado pela paciente para a publicação deste relato de caso e de todas as imagens que o acompanham.

References

  • 1
    Solomon BD. VACTERL/VATER association. Orphanet J Rare Dis. 2011;6:56.
  • 2
    Kuo MF, Tsai Y, Hsu WM, et al. Tethered spinal cord and VACTERL association. J Neurosurg. 2007;106:201-4.
  • 3
    Lawhon SM, MacEwen GD, Bunnell WP. Orthopaedic aspects of the VATER association. J Bone Joint Surg Am. 1986;68:424-9.
  • 4
    Raam MS, Pineda-Alvarez DE, Hadley DW, et al. Long-term outcomes of adults with features of VACTERL association. Eur J Med Gene. 2011;54:34-41.
  • 5
    Quan L, Smith DW. The VATER association. Vertebral defects, anal atresia, T-E fistula with esophageal atresia, radial and renal dysplasia: a spectrum of associated defects. J Pediatr. 1973;82:104-7.
  • 6
    Hersh JH, Angle B, Fox TL, et al. Developmental field defects: coming together of associations and sequences during blastogenesis. Am J Med Genet. 2002;110:320-3.
  • 7
    Botto LD, Khoury MJ, Mastroiacovo P, et al. The spectrum of congenital anomalies of the VATER association: an international study. Am J Med Genet. 1997;71:8-15.
  • 8
    Czeizel A, Ludanyi I. An aetiological study of the VACTERL-association. Eur J Pediatr. 1985;144:331-7.
  • 9
    Hilton G, Mihm F, Butwick A. Anesthetic management of a parturient with VACTERL association undergoing cesarean delivery. Can J Anaesth. 2013;60:570-6.
  • 10
    Luce V, Mercier FJ, Benhamou D. Anesthetic management for a parturient affected by the VACTERL association. Anesth Analg. 2004;98:874.
  • 11
    Bharwani F, Macarthur A. Review of a high-risk obstetric anesthesia antepartum consult clinic. Can J Anaesth. 2014;61:282-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2015
  • Aceito
    25 Maio 2016
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org