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Algoritmo de tratamento guiado pelo fator XIII reduz a transfusão sanguínea na cirurgia de queimados

Resumo

Justificativa e objetivos:

A cirurgia no grande queimado causa hemorragia de grande porte e disfunção da coagulação. Os algoritmos de tratamento guiados por ROTEM® e fator VIIa reduzem as necessidades de hemoderivados, mas falta evidência em relação ao fator XIII. A deficiência do fator XIII altera a estabilidade do coágulo e diminui a cicatrização. Este estudo avalia a eficácia e a segurança da correção do fator XIII e sua repercussão nas necessidades transfusionais na cirurgia do queimado.

Métodos:

Estudo retrospectivo randomizado de 40 doentes submetidos à cirurgia na Unidade de Queimados alocados em grupo A com estudo do fator XIII (n = 20) e grupo B sem estudo (n = 20). A transfusão eritrocitária foi guiada por gatilho de hemoglobina de 10 g.dL-1 e os outros hemoderivados por testes de coagulação de rotina e ROTEM®. A análise do consumo de hemoderivados incluiu unidades de eritrócitos, plasma fresco congelado, plaquetas e fibrinogênio. A análise dos biomarcadores da coagulação comparou os valores pré e pós-operatórios.

Resultados e conclusões:

O grupo A (com estudo de fator XIII) e o grupo B apresentaram área de superfície corporal total queimada idêntica. Todos os doentes do grupo A revelaram déficit pré-operatório de fator XIII, cuja correção reduziu significativamente a transfusão de unidades de concentrado eritrocitário (1,95 vs. 4,05, p = 0,001). Os biomarcadores de coagulação pré e pós-operatórios foram semelhantes entre os grupos, revelaram que os testes de coagulação de rotina não identificam o déficit de fator XIII. Sem eventos tromboembólicos registrados. A correção do fator XIII na cirurgia do queimado revelou-se segura e eficaz na redução da transfusão perioperatória de unidades de eritrócitos.

PALAVRAS-CHAVE
Cuidados intensivos; Queimados; Cirurgia; Coagulação e hemostase; Fator XIII

Abstract

Background and objectives:

Major burn surgery causes large hemorrhage and coagulation dysfunction. Treatment algorithms guided by ROTEM® and factor VIIa reduce the need for blood products, but there is no evidence regarding factor XIII. Factor XIII deficiency changes clot stability and decreases wound healing. This study evaluates the efficacy and safety of factor XIII correction and its repercussion on transfusion requirements in burn surgery.

Methods:

Randomized retrospective study with 40 patients undergoing surgery at the Burn Unit, allocated into Group A those with factor XIII assessment (n = 20), and Group B, those without assessment (n = 20). Erythrocyte transfusion was guided by a hemoglobin trigger of 10 g.dL-1 and the other blood products by routine coagulation and ROTEM® tests. Analysis of blood product consumption included units of erythrocytes, fresh frozen plasma, platelets, and fibrinogen. The coagulation biomarker analysis compared the pre- and post-operative values.

Results and conclusions:

Group A (with factor XIII study) and Group B had identical total body surface area burned. All patients in Group A had a preoperative factor XIII deficiency, whose correction significantly reduced units of erythrocyte concentrate transfusion (1.95 vs. 4.05, p = 0.001). Pre- and post-operative coagulation biomarkers were similar between groups, revealing that routine coagulation tests did not identify factor XIII deficiency. There were no recorded thromboembolic events. Correction of factor XIII deficiency in burn surgery proved to be safe and effective for reducing perioperative transfusion of erythrocyte units.

KEYWORDS
Intensive care; Burned; Surgery; Coagulation and hemostasis; Factor XIII

Introdução

A excisão precoce e o encerramento de feridas devido à queimadura têm permitido uma redução na mortalidade, menor taxa de sepse associada à queimadura, atenuação da resposta hipercatabólica, redução das perdas sanguíneas, bem como menor duração de hospitalização e custos associados. Contudo, o tratamento cirúrgico pode também produzir hemorragia intraoperatória substancial, tanto das áreas desbridadas como das zonas dadoras, o que resulta num aumento importante das necessidades transfusionais. Além disso, a perda e o consumo de fatores de coagulação, associados a situações de trauma grave, cirurgia de grande porte e no grande queimado, juntamente com a hemodiluição secundaria à reposição volêmica, contribuem para reduzir a fração plasmática dos fatores de coagulação.11 Wettstein P, Haeberli A, Stutz M, et al. Decreased factor XIII availability for thrombin and early loss of clot firmness in patients with unexplained intraoperative bleeding. Anesth Analg. 2004;99:1564-9.

O aprimoramento da técnica cirúrgica permitiu, ao longo dos últimos anos, diminuir as perdas hemáticas no período intraoperatório, mas não de forma significativa. Estudos recentes demonstram que a correção em tempo adequado e dirigida da coagulopatia induzida por trauma, através do uso de hemoderivados específicos, permitiu reduzir as necessidades transfusionais e aumentar a sobrevivência.22 Schochl H, Nienaber U, Hofer G, et al. Goal-directed coagulation management of major trauma patients using thromboelastometry (ROTEM)-guided administration of fibrinogen concentrate and prothrombin complex concentrate. Crit Care. 2010;14:R55.,33 Schochl H, Nienaber U, Maegele M, et al. Transfusion in trauma: thromboelastometry-guided coagulation factor concentrate based therapy versus standard fresh frozen plasma-based therapy. Crit Care. 2011;15:R83. No entanto, essa estratégia terapêutica ainda não foi avaliada no doente queimado.

É nesse contexto que o fator XIII (FXIII), com um papel conhecido e comprovado na hemostase e cicatrização, tem ganhado grande interesse. No entanto, não é detectado pelas provas de coagulação de rotina, tais como o tempo de protrombina e tempo de tromboplastina parcial ativada, nem pelos métodos de monitoração à cabeceira do doente, que mostram resultados em tempo real, o seu doseamento é determinado em laboratórios especializados.

Neste estudo, o nosso objetivo primário foi avaliar a necessidade transfusional no período perioperatório após correção do déficit de FXIII no grande queimado e os secundários a avaliação da presença de déficit de FXIII e a eficácia e segurança da sua correção, notadamente em relação à ocorrência de eventos trombóticos.

Métodos

Estudo retrospectivo comparativo feito na Unidade de Queimados do nosso hospital entre 1º de janeiro de 2014 e 31 de dezembro de 2015. Foi submetido e aceito como projeto de investigação “Estudo retrospectivo comparativo sobre a eficácia na correção pré-operatória do déficit de FXIII no grande queimado” com a referência n° 94/16. Foram considerados elegíveis todos os doentes admitidos na Unidade de Queimados durante esse período que tivessem sido submetidos a pelo menos uma intervenção cirúrgica de desbridamento cirúrgico com enxerto, sob anestesia geral. Optou-se por fazer uma análise de coorte retrospectiva, composta por coorte de intervenção que incluía todos os doentes da instituição com estudo e correção pré-operatória de FXIII (Grupo A) e coorte de controle, no qual foi selecionado aleatoriamente um número igual de doentes ao Grupo A, entre todos os pacientes elegíveis (Grupo B).

O Grupo A (20 doentes) incluía pacientes com estudo e correção pré-operatória de FXIII e o Grupo B (20 doentes) sem estudo de FXIII. A caracterização da população foi obtida através da colheita de dados sobre idade, sexo, área corporal total queimada (ACTQ %), número de cirurgias e índices de gravidade, inclusive o Simplified Acute Physiology Score II (Saps II) e a Acute Physiology and Chronic Health Evaluation II (Apache II). O período perioperatório considerado foram as 24 horas do dia da cirurgia. Os parâmetros analíticos foram colhidos e posteriormente avaliados no Laboratório de Patologia Clínica do nosso hospital, inclusive hemoglobina (Hb) e hematócrito (Htc), colhido em tubo de tampa ROSA (EDTA tripotássico) e avaliados no equipamento ADVIA 2120iTM e o tempo de protrombina (TP), INR, tempo de tromboplastina ativada (aPTT) e fibrinogênio (Fib), colhidos em tubo de tampa VERMELHA (tubo de citrato de sódio - plasma citratado) e analisados por método coagulométrico (turbodimétrico) pelo equipamento ACL TOPTM. Por sua vez, o doseamento de Fator XIII é iniciado pela colheita de sangue em tubo de tampa VERMELHA (tubo de citrato de sódio - plasma citratado), com centrifugação a 3.000 g durante 15 minutos, com o uso do reagente Factor XIII Antigen (0020201300) da Hemosil®, e avaliado pelo equipamento ACL TOPTM.

Esses parâmetros foram avaliados no pré e pós-operatórios. O gatilho transfusional para a correção de Hb através de suporte transfusional com unidades de concentrado eritrocitário (UCE) era de 10 g.dL-1. Usou-se concentrado de Fator XIII para correção do seu déficit, através dos valores de referência para a população saudável, e os restantes hemoderivados foram administrados guiados pelos testes de coagulação padrão e por ROTEM®, feito no período perioperatório. O número de hemoderivados administrados no período perioperatório foi registrado na base de dados. Pela dificuldade na sua quantificação, não foram avaliadas as perdas hemorrágicas, não houve também dados disponíveis sobre a cicatrização da ferida operatória e sobrevivência do enxerto.

Os desfechos paramétricos avaliados foram a quantificação do FXIII e o número de hemoderivados administrados para os objetivos acima referidos.

Análise estatística

Para selecionar o teste estatístico adequado ao consumo de hemoderivados, foi avaliada a normalidade dos dois parâmetros com maior intervalo: “UCE administradas” e “PFC administrado”. O teste de Shapiro-Wilkins (n = 20 por grupo) demonstrou normalidade no Grupo B (p = 0,407) e mas não no Grupo A (p = 0,042). Em relação aos “PFC administrados”, ambos os grupos não foram normalmente distribuídos (p < 0,001). Contudo, após análise de gráficos quantile-quantile e dada a confiabilidade do teste t de Student, esse foi selecionado. Quanto à análise do consumo dos restantes hemoderivados (CP e Fib), e devido ao seu curto intervalo, foi preferida a dicotomização entre administrados e não administrados, foi feito o teste exato de Fisher. Múltiplas análises dos biomarcadores da coagulação foram efetuadas com o teste de Mann-Whitney para comparar os grupos através dos seus valores no pré e pós-operatório (Hb, Htc, TP, INR, aPTT, Fib e FXIII) e o teste de Wilcoxon signed rank para a comparação emparelhada. Foram também monitorados os efeitos adversos relacionados com a administração de FXIII.

Resultados

Foram incluídos no estudo 40 doentes; 20 foram incluídos no Grupo A, com avaliação e administração de FXIII, e 20 foram incluídos no Grupo B, não submetidos a estudo e correção de FXIII. A caracterização da população encontra-se detalhada na tabela 1. De realçar que a maioria dos pacientes era do sexo masculino em ambas as amostras (75% no total), o Saps II apresentado pelo Grupo B foi significativamente superior ao do Grupo A (A - 39,5 e B - 53; p < 0,001), tal como a idade (A - 40 e B - 46; p = 0,009). Nos restantes parâmetros não se verificaram diferenças estatisticamente significativas.

Tabela 1
Caracterização da população

O teste t de Student usado demonstrou diferença estatisticamente significativa (p = 0,001) entre os dois grupos para “UCE administradas”, com 1,95 (IC 95% 1,46-2,44) de UCEs administradas no Grupo A, comparado com 4,05 (IC 95% 2,93-5,17) de UCEs administradas no Grupo B, o limiar transfusional adotado na Unidade de 10 g.dL-1 foi adaptado ao grande queimado. Contudo, não se observou diferença estatística entre os dois grupos para os restantes hemoderivados (tabela 2 e fig. 1).

Tabela 2
Necessidades transfusionais nos Grupos A (com fator XIII) e B (sem fator XIII)

Figura 1
Distribuição das unidades de concentrado eritrocitário e de plasma fresco congelado administrado nos Grupos A (com FXIII) e B (sem FXIII).

Múltiplas análises foram feitas para comparar os dois grupos em relação a biomarcadores da coagulação no pré e pós-operatório, não evidenciaram diferenças estatisticamente relevantes entre ambos, exceto para o fibrinogênio pré e pós-operatório nos dois grupos. Todos os doentes no grupo A apresentavam déficit de FXIII (M = 46,6%; IC 95% 39,9-53,3), de acordo com os valores de referência do laboratório para a população em geral (≥ 70%), com elevação significativa após correção (p < 0,005). Não se verificou diferença significativa da Hb no pré e pós-operatório em ambos os grupos, assim como entre eles (tabela 3).

Tabela 3
Comparação emparelhada pré e pós-operatório - testes dos Grupos A (com fator XIII) e B (sem fator XIII)

Não ocorreram complicações associadas ao uso de FXIII. Não foram registrados eventos trombóticos.

Discussão

A abordagem cirúrgica da queimadura está frequentemente associada à hemorragia significativa com necessidade de administração de hemoderivados44 Sterling JP, Heimbach DM. Hemostasis in burn surgery - a review. Burns. 2011;37:559-65. e consequente aumento da morbimortalidade associada, bem descritos e conhecidos no doente crítico.55 Bux J. Transfusion-related acute lung injury (TRALI): a serious adverse event of blood transfusion. Vox Sang. 2005;89:1-10.

6 Chaiwat O, Lang JD, Vavilala MS, et al. Early packed red blood cell transfusion and acute respiratory distress syndrome after trauma. Anesthesiology. 2009;110:35-60.

7 Khan H, Belsher J, Yilmaz M, et al. Fresh frozen plasma and platelet transfusion are associated with development of acute lung injury in critically ill medical patients. Chest. 2007;131:1308-14.

8 Sarani B, Dunkman J, Dean L, et al. Transfusion of fresh frozen plasma in critically ill surgical patients is associated with an increased risk of infection. Crit Care Med. 2008;36:1114-8.
-99 Watson GA, Sperry JL, Rosengart MR, et al. Fresh frozen plasma is independently associated with a higher risk of multiple organ failure and acute respiratory distress syndrome. J Trauma. 2009;67:221-7.

Apesar dos vários métodos desenvolvidos no sentido de reduzir a hemorragia intraoperatória, notadamente a aplicação tópica de adrenalina, tanto nas áreas de queimadura como nas zonas dadoras, a infiltração subcutânea de vasoconstritores (adrenalina, fenilefrina ou vasopressina),1010 Barret JP, Dziewulski P, Wolf SE, et al. Effect of topical and subcutaneous epinephrine in combination with topical thrombin in blood loss during immediate near total burn wound excision in pediatric burn patients. Burns. 1999;25:509-13.

11 Hughes WB, DeClement FA, Hensell DO. Intradermal injection of epinephrine to decrease blood loss during split thickness skin grafting. J Burn Care Rehabil. 1996;17:243-5.

12 Robertson RD, Bond P, Wallace BH, et al. An analysis of the tumescent technique in tangential excision and autografting. J Burn Care Rehabil. 1997;18(1 pt 3):S152.

13 Sheridan RL, Szyfelbein SK. Staged high dose epinephrine clysis is safe and effective in extensive tangential burn excisions in children. Burns. 1999;25:745-8.

14 Janezic T, Prezelj B, Brcic A, et al. Intraoperative blood loss after tangential excision of burn wounds treated by subeschar infiltration of epinephrine. Scand J Plast Reconstr Surg Hand Surg. 1997;31:245-50.
-1515 Gomez M, Logsetty S, Fish J. Reduced blood loss during burn surgery. J Burn Care Rehabil. 1998;19(1 pt 2):S199. a administração sistêmica de vasopressina, a hipotensão controlada, a excisão com laser1616 Glatter RD, Goldberg JS, Schomacker KT, et al. Carbon dioxide laser ablation with immediate autografting in a full thickness porcine burn model. Ann Surg. 1998;228:257-65. ou o uso de garrote na extremidade, verifica-se ainda uma necessidade elevada de apoio transfusional, notadamente unidades de concentrado eritrocitário (UCE), plasma fresco congelado (PFC), concentrado de plaquetas (CP) ou complexo pró-trombínico (CPT),1717 Johansson PI, Eriksen K, Nielsen SL, et al. Recombinant FVIIa decreases perioperative blood transfusion requirement in burn patient undergoing excision and skin grafting - results of a single centre pilot study. Burns. 2007;33:435-40.

18 O'Mara MS, Hayetian F, Slater H, et al. Results of a protocol of transfusion threshold and surgical technique on transfusion requirements in burn patients. Burns. 2005;13:558-61.

19 Mzezewa S, Jonsson K, Aberg M, et al. A prospective double blind randomized study comparing the need for blood transfusion with terlipressin or a placebo during early excision and grafting of burns. Burns. 2004;30:236-40.

20 Gomez M, Logsetty S, Fish JS. Reduced blood loss during burn surgery. J Burn Care Rehabil. 2001;22:111-7.
-2121 Cartotto R, Musgrave MA, Beveridge M, et al. Minimizing blood loss in burn surgery. J Trauma. 2000;49:1034-9. cujo uso agrava o desfecho do doente crítico, devido ao incremento de complicações infecciosas, falência múltipla de órgão e Acute Respiratory Distress Syndrome (ARDS)/Transfusion-Related Acute Lung Injury (Trali).55 Bux J. Transfusion-related acute lung injury (TRALI): a serious adverse event of blood transfusion. Vox Sang. 2005;89:1-10.

6 Chaiwat O, Lang JD, Vavilala MS, et al. Early packed red blood cell transfusion and acute respiratory distress syndrome after trauma. Anesthesiology. 2009;110:35-60.

7 Khan H, Belsher J, Yilmaz M, et al. Fresh frozen plasma and platelet transfusion are associated with development of acute lung injury in critically ill medical patients. Chest. 2007;131:1308-14.

8 Sarani B, Dunkman J, Dean L, et al. Transfusion of fresh frozen plasma in critically ill surgical patients is associated with an increased risk of infection. Crit Care Med. 2008;36:1114-8.
-99 Watson GA, Sperry JL, Rosengart MR, et al. Fresh frozen plasma is independently associated with a higher risk of multiple organ failure and acute respiratory distress syndrome. J Trauma. 2009;67:221-7. Assim, a redução das perdas sanguíneas e a necessidade de administração de hemoderivados poderão melhorar o desfecho e a segurança nesses doentes.

Recentemente, e com a crescente oferta de testes funcionais da coagulação e de testes junto do doente, cresceu o interesse quanto ao aprimoramento e a correção de alterações na cascata da coagulação.

Nesse contexto, o papel do fator XIII tem sido pouco estudado. O FXIII é uma transglutaminase plasmática essencial para a hemostase normal no estádio final da cascata de coagulação, é responsável pelas reações de ligação intermolecular entre monômeros de fibrina, inibição de a2-antiplasmina e ligação ao colágeno subendotelial e à fibronectina.2222 Schramko AA, Kuitunen AH, Suojaranta-Ylinen RT, et al. Role of fibrinogen, factor VIII and XIII-mediated clot propagation in gelatin haemodilution. Acta Anaesthesiol Scand. 2009;53:731-5. Essas reações aumentam a força mecânica do coágulo de fibrina e conferem resistência à degradação proteolítica, promovem ainda a aderência do coágulo à matriz vascular.2323 Koseki-Kuno S, Yamakawa M, Dickneite G, et al. Factor XIII a subunit-deficient mice developed severe uterine bleeding events and subsequent spontaneous miscarriages. Blood. 2003;102:4410-2.,2424 Lorand L. Factor XIII and the clotting of fibrinogen: from basic research to medicine. J Thromb Haemost. 2005;3:1337-48. A deficiência desse fator resulta num distúrbio da hemostase devido à formação anômala do coágulo, secundária à frágil ligação entre os monômeros de fibrina e baixa resistência do coágulo contra a fibrinólise. Esse fator de coagulação encontra-se diminuído no doente queimado. Esse déficit não provoca, contudo, alterações nas provas de coagulação clássicas.

A nossa análise retrospectiva teve como objetivo descrever a experiência da nossa unidade na correção dos níveis de FXIII e o impacto dessa correção na necessidade transfusional - teve por base um valor-alvo de Hb igual ou superior a 10 g.dL-1, aceito para o grande queimado, com doença crítica e/ou comprometimento cardiopulmonar.2525 Kwan P, Gomez M, Cartotto R. Safe and successful restriction of transfusion in burn patients. J Burn Care Res. 2006;27:826-34.,2626 Curinga G, Jain A, Feldman M, et al. Red blood cell transfusion following burn. Burns. 2011;37:742-52.

Constatou-se que todos os doentes testados apresentavam deficiência de FXIII nos doseamentos feitos durante o internamento. Verificou-se uma diferença estatisticamente significativa na quantidade de UCEs administradas no grupo em que foi feita reposição de FXIII (1,95 vs. 4,05 do Grupo de Controle), mesmo com valores pré-operatórios de Hb em média ligeiramente mais baixos do que no grupo que não fez reposição de FXIII (em cerca de 0,5 g.dL-1). O limiar transfusional foi respeitado em ambos os grupos, logo a diminuição da necessidade de UCEs no Grupo A não se justificaria pela existência dum limiar transfusional diferente entre os grupos, os valores de Hb no pré e pós-operatório foram similares. No entanto, o mesmo não se verificou para os restantes hemoderivados. Como explicação, colocamos as seguintes hipóteses: 1) Por um lado, os nossos doentes receberam esquema de plasma fresco congelado no pré-operatório e como tal não diferiu significativamente a quantidade administrada; 2) Como não houve alterações nas provas de coagulação, não houve necessidade de administração de outros hemoderivados que não o concentrado eritrocitário.

Admitimos também que para essa diferença de necessidade transfusional possa ter contribuído o fato de o Grupo B ser constituído por uma população que - como evidenciado por um valor de Saps II significativamente mais elevado no Grupo B, apesar de o mesmo não se verificar no Apache II - apresente mais comorbidades do que concorra para alterações da coagulação.

As necessidades transfusionais foram contabilizadas somente no pós-operatório imediato (até as 24 horas), essa diferença poderá ser ainda maior se considerado todo o internamento com estabilização de níveis de fator XIII. Destaca-se ainda a diferença entre o número de cirurgias nos dois grupos, com menor média no grupo A, o que permite colocar a hipótese do papel do fator XIII, não só na diminuição no consumo de UCEs, mas também no sucesso da enxertia com consequente diminuição da necessidade de múltiplas cirurgias.

Reconhecemos outras limitações na nossa análise: a população de ambos os grupos era idêntica em termos de área corporal queimada - fator de maior impacto para risco hemorrágico, mas seria ideal caracterizar a população quer em termos da duração das cirurgias, quer da quantificação das perdas hemorrágicas no intraoperatório. Em relação aos resultados obtidos, apontamos como limitação a falta de correlação com a quantidade de UCEs administradas em todo o internamento e se essa diminuição se correlacionou com o tempo de ventilação, incidência de ARDS/Trali, tempo de internamento ou impacto na mortalidade.

Conclusão

O FXIII assume-se na nossa realidade clínica como um hemoderivado ainda modestamente usado, talvez por causa do seu elevado valor cobrado no mercado farmacêutico.

Neste estudo verificou-se uma redução estatisticamente significativa do consumo de UCEs no período perioperatório após correção eficaz e segura do déficit de FXIII no grande queimado, presente em todos os doentes.

Numa altura em que se procura adotar uma atitude transfusional progressivamente mais conservadora (pelos riscos mais do que reconhecidos da transfusão heteróloga), é imperioso considerar que o uso de FXIII terá um impacto econômico e clínico positivo no desfecho final, ao reduzir a necessidade transfusional e, portanto, as consequências da transfusão heteróloga demasiadamente liberal - sobretudo numa população imunodeprimida, como é o caso do doente queimado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2016
  • Aceito
    20 Nov 2017
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