Acessibilidade / Reportar erro

Trombose de seios durais após analgesia peridural para parto: caso clínico

Resumo

Justificativa e objetivos:

As complicações neurológicas da raquianestesia são condições raras. A cefaleia causada pela baixa pressão do fluido cerebrospinal é uma das mais frequentes e ocorre após a punção dural. Anamnese completa e exame físico geral devem ser feitos antes de fazer o diagnóstico de cefaleia pós-punção dural (CPPD) e testes adicionais são necessários para excluir a possibilidade de complicações neurológicas graves, como trombose de seios durais (TSD). De acordo com o relato do caso, discutiremos o diagnóstico diferencial entre TSD e CPPD.

Relato de caso:

Paciente de 22 anos, estado físico ASA I, foi admitida com 39 semanas de gestação para o parto. Para alívio da dor do trabalho de parto, a paciente solicitou analgesia peridural, mas infelizmente ocorreu uma punção dural acidental. A paciente desenvolveu cefaleia occipital e dor cervical no segundo dia pós-parto - ambas aliviadas com repouso e terapia de suporte, como reidratação, analgésicos e cafeína. No terceiro dia pós-parto, a paciente recebeu alta sem queixas. No quinto dia pós-parto, a dor retornou e ficou mais intensa e com pouca resposta aos analgésicos orais. Ela foi admitida no hospital para uma completa investigação neurológica e de imagem que mostrou uma lesão compatível com o diagnóstico de trombose venosa cortical e TSD. A paciente foi tratada com anticoagulantes orais. Após dois dias, a repetição de ressonância nuclear magnética (RM) mostrou canalização parcial de trombo do seio central. A paciente recebeu alta hospitalar cinco dias após a admissão, sem quaisquer dos sintomas iniciais.

Conclusão:

O caso descreve uma paciente que desenvolveu cefaleia grave após epidural contínua para o parto. Inicialmente ela foi diagnosticada como CPPD, contudo com o auxílio da RNM foi estabelecido o diagnóstico tardio de TSD. TSD é uma condição rara e frequentemente subdiagnosticada. Ela deve sempre ser considerada como diagnóstico diferencial de cefaleia aguda em decorrência de suas complicações potencialmente letais.

PALAVRAS-CHAVE
Complicação epidural; Cefaleia pós-punção dural; Trombose de seios durais

Abstract

Background and objectives:

Neurological complications of spinal anesthesia are rare conditions. Headache caused by low pressure of the cerebrospinal fluid is one of the most frequent, which occurs after post-dural puncture. A comprehensive history and physical exam must be carried out before making the diagnosis of Post-Dural Puncture Headache (PDPH) and additional tests are necessary to exclude the possibility of developing serious neurological complications such as Dural Sinus Thrombosis (DST). According to the Case Report a differential diagnosis between Dural Sinus Thrombosis with PDPH is discussed.

Case report:

A 22 year-old lady, ASA Physical Status Class I was admitted at 39 weeks of gestation for delivery. For labor pain relief she requested epidural for analgesia, but unfortunately accidental dural puncture occurred. She developed an occipital headache and neck pain in the second day postpartum which was relieved by both lying down and supporting treatment such as rehydration, analgesics and caffeine. On day third postpartum she was discharged without complaints. On day fifth postpartum the pain returned and became more intense and less responsive to oral analgesics. She was admitted to the hospital to do a complete neurological and image investigation that showed a lesion consistent with the diagnosis of cortical vein thrombosis and Dural Sinus Thrombosis (DST). She was treated with oral anticoagulants. After two days, a repeated magnetic resonance image (MRI) showed partial canalization of the central sinus thrombus. The patient was discharged from hospital five days after her admission without any of the initial symptoms.

Conclusion:

The report describes a patient who developed severe headache following continuous epidural analgesia for delivery. Initially it was diagnosed as PDPH, however with the aid of MRI the diagnosis of DST was later established and treated. DST is a rare condition and is often underdiagnosed. Because of its potentially lethal complications, it should always be considered in acute headache differential diagnosis.

KEYWORDS
Epidural complication; Post-Dural Puncture Headache (PDPH); Dural Sinus Thrombosis

Introdução

O uso de analgesia peridural (AP) para proporcionar alívio da dor em trabalho de parto tornou-se cada vez mais popular. Durante a colocação de uma agulha ou cateter epidural, a constatação de punção acidental da duramater pode ocorrer em 0,5-10% dos casos, depende da experiência do anestesiologista.11 Ravindran RS, Albrech WH, Tasch M. Low pressure headache following successful continuous lumbar epidural analgesia. Anesth Analg. 1980;59:799-800. Por outro lado, a não constatação de punção dural ocorre em 1,5% dos casos.22 Benhamou D, Auroy Y. Overview of regional anesthesia complications. In: Neal JM, Rathmell JP, editors. Complications in regional anesthesia and pain medicine. London: Elsevier; 2007. p. 9-16. Portanto, não é incomum que uma paciente desenvolva cefaleia pós-parto persistente após a analgesia peridural. Antes de tratar a cefaleia em tais pacientes é preciso considerar outras condições que também podem causar cefaleia. Este relato descreve o caso de uma paciente que desenvolveu cefaleia e primeiramente acreditou-se tratar de cefaleia pós-raqui; porém, a causa de sua cefaleia foi posteriormente diagnosticada como trombose de seios durais (TSD).

Relato de caso

Uma paciente de 22 anos, primigesta, estado físico ASA I, foi admitida com 39 semanas de gestação para o parto. O período pré-natal, o exame físico e a pressão arterial foram normais. Para alívio da dor do parto, a paciente solicitou AP. Sob condições estéreis, a técnica de perda de resistência foi aplicada, uma agulha epidural Tuohy 17G foi inserida no interespaço L4-L5. Infelizmente ocorreu uma punção dural acidental. A agulha foi removida e recolocada no interespaço L3-L4 onde o cateter peridural foi adequadamente mantido. Uma dose bolus de 10 mL de ropivacaína a 2 mg.mL-1 (20 mg) foi administrada sem efeitos adversos. Pouco depois, a paciente entrou no segundo estágio do trabalho de parto, com o parto vaginal espontâneo de um bebê saudável.

A paciente estava bem após o parto e permaneceu assim durante as 24 horas seguintes. Porém, no segundo dia pós-parto, desenvolveu cefaleia occipital e dor na nuca, ambas aliviadas ao deitar-se. O tratamento conservador com repouso, analgésicos e administração IV de líquidos para prevenir a desidratação foi recomendado, mas a paciente não ficou em repouso e deambulou com frequência. No terceiro dia pós-parto, recebeu alta sem queixas.

A paciente ficou em repouso por cinco dias em casa, mas a dor retornou e tornou-se mais intensa e menos responsiva a analgésicos orais. A paciente deu entrada na emergência com queixa de cefaleia occipital e parietal, náusea e, às vezes, vômito. A dor piorava ao se levantar. Às vezes, começava na região occipital e também no lado esquerdo do crânio. Queixava-se também de fraqueza no braço direito e de alguns movimentos espasmódicos e parestesia. A paciente foi transferida para a Unidade de AVC (Acidente Vascular Cerebral) para fazer exames neurológicos completos, de imagem e outros exames. Não havia papiledema focal e a tomografia computadorizada estava normal. No entanto, um eletroencefalograma (EEG) revelou retardamento focal na região parietal esquerda. Exames adicionais de ressonância magnética (RM) revelaram uma região com aumento do sinal em T1 que envolvia o seio sagital superior e a veia cortical esquerda com uma lesão óbvia compatível com o diagnóstico de trombose venosa cortical e tromboses de seios durais (TSD) (fig. 1). Infusão de heparina foi iniciada, juntamente com varfarina oral até que a meta da razão internacional normalizada (INR) de 2-3 foi alcançada. Após dois dias, um novo exame de RM mostrou canalização parcial de trombo do seio central. A paciente recebeu alta do hospital cinco dias após a admissão, sem quaisquer sintomas iniciais. Foi acompanhada por um consultor em acidente vascular cerebral com monitoração regular da INR durante seis meses e, atualmente, está livre da cefaleia e assintomática.

Figura 1
Venografia por ressonância magnética: vista axial demonstra redução do fluxo no seio longitudinal (a) e ausência de fluxo na veia cerebral superior esquerda (b).

Discussão

Uma consequência do aumento do uso de anestesia regional em todo o mundo é o aumento inevitável de complicações associadas. O maior estudo prospectivo publicado que avaliou as principais complicações da AP e dos anestésicos espinhais concluiu que o risco estimado de dano permanente é inferior a 1:20.000 e que o risco de dano permanente é de aproximadamente 1:50.000.33 Cook TM, Counsell D, Wildsmith JAW. Major complications of central neuraxial block: report on the third national audit project of The Royal College of Anaesthetists. Br J Anaesth. 2009;102:179-90.

TSD é uma complicação rara da gravidez com uma incidência avaliada entre 1:3.000 e 1:10.000 casos. No International Study on Cerebral Vein and Dural Sinus Thrombosis44 Ferro JM, Canhao P, Stam J, et al. Prognosis of cerebral vein and sinus thrombosis: results of the International Study on Cerebral Vein and Dural Thrombosis (ISCVT). Stroke. 2004;35:664-70. (ISCVT), 4,3% dos pacientes morreram durante a fase aguda da TSD e 3,4% em 30 dias desde o início dos sintomas.

Os fatores que predispõem à TSD incluem o estado de hipercoagulabilidade da gravidez e condições hereditárias. O estudo genético de trombofilia (proteínas C e S, antitrombina III, anticoagulante lúpico, anticorpos anticardiolipina, fator V de Leiden e mutação G20210A) é recomendado. A trombose de seios relacionada com a gravidez geralmente ocorre a partir do terceiro trimestre até quatro semanas após o parto e os principais sintomas incluem cefaleia, convulsão, alteração da consciência, náusea e vômito.55 Cantu C, Barinagarrementeria F. Cerebral venous thrombosis associated with pregnancy and puerperium. Review of 67 cases. Stroke. 1993;24:1880-4.

TC é o exame de escolha em situação neurológica aguda, muitas vezes revela uma alta densidade crescente de sangue fresco, mas quando o hematoma se torna isodenso na CT, a RM é um exame mais sensível para a detecção e delimitação ideal.44 Ferro JM, Canhao P, Stam J, et al. Prognosis of cerebral vein and sinus thrombosis: results of the International Study on Cerebral Vein and Dural Thrombosis (ISCVT). Stroke. 2004;35:664-70.

O tratamento de pacientes com TSD envolve terapia de apoio e às vezes medicação anticonvulsiva. A terapia específica para TSD envolve anticoagulação ou terapia trombolítica.44 Ferro JM, Canhao P, Stam J, et al. Prognosis of cerebral vein and sinus thrombosis: results of the International Study on Cerebral Vein and Dural Thrombosis (ISCVT). Stroke. 2004;35:664-70.

O curso individual é altamente variável e as taxas de mortalidade variam entre 5% e 30% e provavelmente depende mais da condição clínica do que do tratamento.55 Cantu C, Barinagarrementeria F. Cerebral venous thrombosis associated with pregnancy and puerperium. Review of 67 cases. Stroke. 1993;24:1880-4.

A ocorrência de qualquer complicação implica a interação de fatores relacionados ao próprio bloqueio e a condições preexistentes conhecidas ou desconhecidas do paciente. Muitas vezes, é difícil, se não impossível, determinar a etiologia exata, mas, infelizmente para o anestesiologista, o bloqueio regional normalmente será incriminado até prova em contrário. Uma anamnese completa é importante para excluir outros diagnósticos possíveis antes de presumir que a cefaleia é decorrente do bloqueio espinhal. As causas mais comuns e graves de cefaleia persistente no puerpério após a anestesia regional são:22 Benhamou D, Auroy Y. Overview of regional anesthesia complications. In: Neal JM, Rathmell JP, editors. Complications in regional anesthesia and pain medicine. London: Elsevier; 2007. p. 9-16. cefaleia pós-raqui; enxaqueca; hipertensão induzida pela gravidez; meningite; tumor cerebral; hemorragia subaracnóidea; hematoma subdural; trombose venosa cerebral. Antes do desenvolvimento de convulsões ou sinais neurológicos é difícil distinguir a cefaleia causada por TSD da cefaleia comum pós-raqui (CPPD). Porém, a TSD tem algumas características distintivas: a cefaleia parece pulsar - sensação acentuada pelo movimento da cabeça e ato de sentar-se - e pode vir acompanhada de náusea e vômito. A paciente pode manifestar letargia, sensação de dormência e fraqueza focal não específica. Na presença de cefaleia atípica após raquianestesia ou AP, o exame de RM pode ser feito para descartar a possibilidade de TSD.33 Cook TM, Counsell D, Wildsmith JAW. Major complications of central neuraxial block: report on the third national audit project of The Royal College of Anaesthetists. Br J Anaesth. 2009;102:179-90. Caso contrário, o uso de tampão sanguíneo peridural (EBP) para tratar a cefaleia após uma punção dural acidental é bem reconhecido e, embora a taxa de sucesso chegue a 90%11 Ravindran RS, Albrech WH, Tasch M. Low pressure headache following successful continuous lumbar epidural analgesia. Anesth Analg. 1980;59:799-800., há evidência para sugerir que esse tratamento pode causar TSD da mesma forma que após o diagnóstico de punção lombar devido à persistência de lesão meníngea lombar.22 Benhamou D, Auroy Y. Overview of regional anesthesia complications. In: Neal JM, Rathmell JP, editors. Complications in regional anesthesia and pain medicine. London: Elsevier; 2007. p. 9-16.

Conclusão: a TSD pode imitar a cefaleia pós-punção dural (CPPD) e deve ser sempre considerada no diagnóstico diferencial, especialmente a cefaleia que piora e muda a característica da dor, com alguns sintomas neurológicos associados à falha do tampão sanguíneo, o que indica um aumento da pressão intracraniana.

References

  • 1
    Ravindran RS, Albrech WH, Tasch M. Low pressure headache following successful continuous lumbar epidural analgesia. Anesth Analg. 1980;59:799-800.
  • 2
    Benhamou D, Auroy Y. Overview of regional anesthesia complications. In: Neal JM, Rathmell JP, editors. Complications in regional anesthesia and pain medicine. London: Elsevier; 2007. p. 9-16.
  • 3
    Cook TM, Counsell D, Wildsmith JAW. Major complications of central neuraxial block: report on the third national audit project of The Royal College of Anaesthetists. Br J Anaesth. 2009;102:179-90.
  • 4
    Ferro JM, Canhao P, Stam J, et al. Prognosis of cerebral vein and sinus thrombosis: results of the International Study on Cerebral Vein and Dural Thrombosis (ISCVT). Stroke. 2004;35:664-70.
  • 5
    Cantu C, Barinagarrementeria F. Cerebral venous thrombosis associated with pregnancy and puerperium. Review of 67 cases. Stroke. 1993;24:1880-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    9 Mar 2016
  • Aceito
    26 Jul 2016
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org