Acessibilidade / Reportar erro

Considerações anestésicas para craniotomia em paciente acordado: relato de caso

Resumo

Justificativa e objetivos:

A colaboração consciente do paciente durante procedimentos neurológicos tem se tornado necessária para delimitar áreas a serem abordadas pelo neurocirurgião, com melhores resultados no tratamento de lesões tumorais, vasculares ou focos epiléticos e minimização de sequelas. A necessidade de consciência perioperatória e responsividade a comandos desafia o anestesiologista a garantir ainda a segurança do paciente durante o procedimento. Várias técnicas têm sido descritas para esse fim.

Relato de caso:

No presente caso, a interação com paciente durante ressecção de tumor cerebral possibilitou abordagem ampla de lesão tumoral, limitada por déficits de fala e de identificação notados à manipulação cirúrgica, e evitou sequelas maiores. A indução de anestesia geral em tempos cirúrgicos de maior estímulo doloroso com despertar intraoperatório do paciente foi a técnica escolhida.

Conclusões:

A seleção do paciente, seu exaustivo esclarecimento e a seleção das drogas são de fundamental importância para o sucesso do procedimento. A máscara laríngea é instrumento útil em tempos que exigem maior profundidade anestésica e controle da ventilação, primariamente em situações em que a intubação endotraqueal pode estar dificultada pelo posicionamento. A infusão contínua de remifentanil e coadjuvantes no período desperto associou analgesia adequada e consciência plena.

PALAVRAS-CHAVE
Craniotomia acordado; Neurocirurgia; Remifentanil; Máscara laríngea

Abstract

Background and objectives:

The conscious patient cooperation during neurological procedures has become necessary for the delimitation of areas to be managed by a neurosurgeon, with better results in the treatment of tumor lesions, vascular or epileptic foci, and lesser sequelae. The need for perioperative awareness (responsiveness to commands) challenges anesthesiologists to further ensure patient safety during the procedure. Several techniques have been described for this purpose.

Case report:

In this case, interaction with the patient during brain tumor resection enabled a broad approach of the tumor lesion, limited by deficits in speech and naming observed during surgical manipulation, avoiding major consequences. The chosen technique was deepening of general anesthesia during surgical times of most painful stimulus with intraoperative awakening of the patient.

Conclusions:

Patient selection, an exhaustive explanation of the procedure to him, and the selection of drugs are crucial for a successful procedure. Laryngeal mask is useful in times requiring greater depth and anesthetic ventilation control, primarily in situations where endotracheal intubation may be hindered by the position. The continuous infusion of remifentanil and adjuncts in the awake period associated adequate analgesia and full consciousness.

KEYWORDS
Awake craniotomy; Neurosurgery; Remifentanil; Laryngeal mask airway

Introdução

A neurocirurgia com paciente acordado surgiu para o tratamento de epilepsia e desde então tem sido usada para abordagem de tumores supratentoriais, malformações arteriovenosas e aneurismas em áreas eloquentes. O mapeamento cortical exige participação do paciente e a resposta desse à estimulação define os limites da abordagem cirúrgica.11 Ghazanwy M, Chakrabarti R, Court O. Awake craniotomy: a qualitative review and future challenges. Saudi J Anaesth. 2014;8:529-39.

Os principais desafios para o anestesiologista são garantir um peroperatório seguro e associar colaboração do paciente e manutenção do estado vigil com analgesia satisfatória e estresse psicofísico mínimo.11 Ghazanwy M, Chakrabarti R, Court O. Awake craniotomy: a qualitative review and future challenges. Saudi J Anaesth. 2014;8:529-39.,22 Costello TG, Cormack JR. Anaesthesia for awake craniotomy: a modern approach. J Clin Neurosci. 2004;11:16-9.

Algumas técnicas anestésicas são descritas, dentre elas a associação de anestesia local e sedação, ou sob anestesia geral (asleep-awake-asleep). É necessário priorizar drogas com rápido início de ação, facilmente tituláveis, mínimos efeitos sobre o sistema cardiovascular e respiratório, pouco associadas com náuseas e vômitos, e sem interferência na avaliação neurológica.33 Bilotta F, Rosa G. Anesthesia for awakeneurosurgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2009;22:560-5.,44 Conte V, Baratta P, Tomaselli P, et al. Awake neurosurgery: an update. Minerva Anestesiol. 2008;74:289-92. A cuidadosa seleção do paciente, altos níveis de motivação desse e da equipe e atenção ao preparo psicológico dele são fundamentais.

O objetivo deste relato de caso é apresentar a técnica que associou anestesia geral com máscara laríngea para acesso ao córtex cerebral, despertar intraoperatório para mapeamento a partir da interação com paciente sob estimulação, seguido de indução de nova anestesia geral para fechamento de planos.

Relato de caso

Paciente do sexo masculino, 30 anos, com diagnóstico de Glioma grau II em região temporo-fronto-parietal esquerda, apresentava convulsões de difícil controle, além de diminuição da força em membros superior e inferior direito. Potencial sequela motora e na fala exigiu mapeamento cerebral durante abordagem da lesão.

Em avaliação pré-anestésica, o paciente referia uso contínuo de anticonvulsivantes e negava comorbidades, alergias ou cirurgias prévias. Ao exame físico apresentava discreta diminuição de força à direita, com sutil hipotrofia de musculatura ipsilateral; sensório e fala preservados. O exame de via aérea não evidenciava preditivos de via aérea difícil e os exames complementares foram normais. O paciente e parentes foram esclarecidos sobre o ato cirúrgico, anestésico e possíveis complicações e foi assinado termo de consentimento.

Na sala de cirurgia, o paciente foi apresentado aos membros da equipe e aos equipamentos que estariam presentes na sala no momento do despertar, informado sobre possíveis campos cirúrgicos próximos à face e limitação do campo de visão no momento vigil. Foi ainda apresentado aos materiais de anestesia, sistema de aquecimento, alarmes de monitoração, máscara laríngea e esclarecido sobre as técnicas de retirada dela. Foi ainda informado das prováveis sensações álgicas e de desconforto relacionados aos acessos, à monitoração, ao dispositivo de via aérea, ao fixador de Mayfield e ao posicionamento.

A monitoração constou de cardioscópio, oximetria de pulso, capnografia, pressão arterial por método invasivo e pressão venosa central, gasometria arterial e débito urinário; puncionados acesso venoso periférico (14G) e acesso venoso central (16G). Foi administrada antibioticoprofilaxia com cefalotina (1 g) em intervalos fixos de 3 h e profilaxia para náuseas e vômitos com dexametasona (10 mg) e ondansetrona (8 mg).

Feitos indução lenta com propofol e remifentanil em infusão contínua e bloqueio neuromuscular com cisatracúrio (0,15 mg.kg-1). Posicionada máscara laríngea com boa adaptação e mantida em ventilação controlada. A equipe cirúrgica fez infiltração dos locais de inserção do fixador de Mayfield com bupivacaína 0,5% com vasoconstritor e a cabeça foi posicionada aproximadamente a 45° do eixo sagital para direita, de modo a facilitar acesso à região parietal esquerda.

Para incisão da pele, craniotomia e abertura de meninges foi mantida anestesia geral com propofol (80-120 mcg.kg-1.min-1) e remifentanil (0,1-0,2 mg.kg-1.min-1) em infusão continua, por tempo aproximado de 120 minutos. A pedido da equipe cirúrgica, foi administrado 1 g de fenitoína. Após incisão da dura-máter, o paciente apresentou crise convulsiva focal, com contrações repetidas de região esquerda da face e membro superior direito, com duração de segundos, autolimitada, ainda em curso do anticonvulsivante.

A infusão dos anestésicos venosos foi interrompida após acesso ao córtex cerebral e após 25 minutos o paciente apresentou abertura ocular ao chamado e foi informado da retirada da máscara laríngea, colaborou com abertura voluntária da boca. O paciente apresentou despertar tranquilo, sem sinais de desconforto em via aérea, tosse ou agitação. Respondia adequadamente aos comandos solicitados e se queixou de leve desconforto na manipulação do sítio cirúrgico e nos membros imobilizados. Após garantir consciência plena e resposta coerente a comandos, foi administrada baixa dose de morfina (20 mcg.kg-1) e lidocaína 1% sem vasoconstritor (1,5 mg.kg-1) e reestabelecida infusão lenta de remifentanil (10 mcg.kg-1.min-1), que garantiu analgesia satisfatória durante o período vigil e manteve o paciente colaborativo. Episódios transitórios de disartria e diminuição da força em membro superior direito durante estimulação e manipulação permitiram delimitar a área para ressecção do tumor. O paciente manteve-se desperto durante 120 minutos, para mapeamento e ressecção da lesão.

Para fechamento de planos, ainda em posicionamento cirúrgico, foi feita nova indução de anestesia geral, com doses aprimoradas de propofol e remifentanil, e novo bloqueio neuromuscular foi feito com cisatracúrio em dose reduzida (75 mcg.kg-1) após pré-oxigenação com unidade bolsa-máscara. A máscara laríngea foi reintroduzida, com bom acoplamento e ventilação controlada satisfatória. A anestesia geral foi mantida até o fim do procedimento sob infusão contínua de propofol (80-120 mcg.kg-1.min-1) e remifentanil (0,1-0,2 mg.kg-1.min-1), quando foram interrompidos e o paciente foi desperto, sob ventilação espontânea e obedecia a comandos. Foi administrada nova dose de morfina (100 mcg.kg-1) e dipirona 2 g para analgesia pós-operatória. Levado consciente, estável hemodinamicamente e sem queixas álgicas ou déficits à Unidade de Terapia Intensiva, onde permaneceu por dois dias, e recebeu alta hospitalar sete dias após.

Discussão

A craniotomia em paciente acordado tem se estabelecido para tratamento cirúrgico de epilepsia e lesões em áreas eloquentes do cérebro.11 Ghazanwy M, Chakrabarti R, Court O. Awake craniotomy: a qualitative review and future challenges. Saudi J Anaesth. 2014;8:529-39.,55 Schulz U, Keh D, Fritz G, et al. Asleep-awake-asleep anaesthetic technique for awake craniotomy. Saudi J Anaesth. 2006;55:585-98. As complicações incluem crises convulsivas, que podem ocorrer em 16%-18% dos pacientes, náuseas e vômitos, observadas em 8%-50% dos casos, depressão respiratória, edema cerebral, embolia aérea, tremores, déficit neurológicos e dor que podem trazer ansiedade e agitação e comprometer a participação do paciente.11 Ghazanwy M, Chakrabarti R, Court O. Awake craniotomy: a qualitative review and future challenges. Saudi J Anaesth. 2014;8:529-39.,33 Bilotta F, Rosa G. Anesthesia for awakeneurosurgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2009;22:560-5.

A prevenção de complicações inclui a seleção e o preparo do paciente, a partir de vínculo de confiança e esclarecimentos sobre planejamento e possíveis eventos adversos. São contraindicações para a craniotomia em paciente acordado: confusão e dificuldade de comunicação, como disartria severa ou ansiedade extrema. Alterações funcionais como disfagia ou disautonomia podem comprometer a segurança da anestesia sob sedação sem via aérea bem estabelecida. Tumores em fossa posterior, que exigem abordagem em região prona, são dificilmente viáveis ao despertar peroperatório. A avaliação da via aérea deve antecipar dificuldades de posicionamento de dispositivos em posições atípicas ou diante de complicações.

Na sala cirúrgica, a descrição do cenário e dos estímulos auditivos que o paciente encontrará ao despertar é fundamental, a fim de minimizar a ansiedade nesse período.

A incidência de crises convulsivas durante a craniotomia com paciente acordado é variável. O remifentanil tem sido menos associado a convulsões do que outros opioides.55 Schulz U, Keh D, Fritz G, et al. Asleep-awake-asleep anaesthetic technique for awake craniotomy. Saudi J Anaesth. 2006;55:585-98. O propofol tem efeito protetor contra crises convulsivas, mas deve ter sua infusão descontinuada aproximadamente 15 minutos antes da estimulação cortical.44 Conte V, Baratta P, Tomaselli P, et al. Awake neurosurgery: an update. Minerva Anestesiol. 2008;74:289-92. A fenitoína foi administrada antes da superficialização da anestesia, com o intuito de prevenir crise convulsiva peroperatória. Ainda assim o paciente apresentou crise focal e autolimitada. A crise convulsiva no peroperatório e a administração da fenitoína podem ter contribuído para um maior tempo de sedação após a interrupção dos anestésicos para o tempo vigil.

A incidência de náuseas e vômitos pode variar conforme histórico do paciente, tipo e localização da lesão, administração de drogas e tipo de anestesia.33 Bilotta F, Rosa G. Anesthesia for awakeneurosurgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2009;22:560-5.,44 Conte V, Baratta P, Tomaselli P, et al. Awake neurosurgery: an update. Minerva Anestesiol. 2008;74:289-92. A manipulação cirúrgica do lobo temporal, ou da região amigdaliana, os vasos meníngeos, a analgesia inadequada e hipovolemia podem contribuir para aumento da incidência.55 Schulz U, Keh D, Fritz G, et al. Asleep-awake-asleep anaesthetic technique for awake craniotomy. Saudi J Anaesth. 2006;55:585-98. A prevenção desses eventos foi feita com dexametasona (10 mg), ondansetrona em dose dobrada (8 mg) e infusão contínua de propofol, que promovem sinergicamente potente ação antiemética.

A máscara laríngea tem vantagens significativas se comparada com o tubo endotraqueal, incluindo maior facilidade de inserção em posições anômalas, dispensa a laringoscopia e extensão da cabeça e menor incidência de tosse ou reação à retirada44 Conte V, Baratta P, Tomaselli P, et al. Awake neurosurgery: an update. Minerva Anestesiol. 2008;74:289-92.. A remoção da máscara laríngea com paciente alerta, responsivo e em ventilação espontânea minimizou as complicações referentes à via aérea. A aplicação de geleia de lidocaína na superfície de contato com a região periglótica, bem como a manutenção por anestesia venosa total, minimizou a reação ao dispositivo. Acreditamos que o uso de bloqueador neuromuscular, mesmo dispensável para posicionamento de máscara laríngea, pode ter facilitado a reintrodução da máscara em posição anômala, no preparo para fechamento de planos.

No despertar, pouco desconforto foi relatado pelo paciente. A infiltração dos locais de inserção do fixador de Mayfield com anestésico local de longa duração pode ter contribuído para maior tolerância. Outros desconfortos relacionados à manipulação e ao posicionamento foram minimizados com baixas doses de morfina e anestésico local por via venosa. A infusão contínua de remifentanil em doses baixas (10 mcg.kg-1.min-1) promoveu conforto associado a consciência plena.

A dexmedetomidina, agonista α2 altamente seletivo, tem conquistado predileção entre os anestesistas para craniotomia com paciente acordado, pelo seu efeito sedativo, ansiolítico e analgésico facilmente reversível com estimulo verbal e por ser pouco associada a depressão respiratória. No entanto, pela disponibilidade ainda restrita em alguns centros, opções continuam a ser usadas com conforto para o paciente e baixa incidência de complicações.11 Ghazanwy M, Chakrabarti R, Court O. Awake craniotomy: a qualitative review and future challenges. Saudi J Anaesth. 2014;8:529-39.

Conclusão

A técnica adotada se aproxima da técnica asleep-awake-asleep já descrita, com adaptações à analgesia no período vigil e uso de máscara laríngea. A estratégia oferece como vantagens acesso a via aérea, permite sedação profunda e suporte ventilatório adequado e minimiza o desconforto do paciente nos períodos de maior estímulo álgico (abertura e sutura de pele e meninges). O despertar tranquilo e o reposicionamento do dispositivo periglótico são os maiores desafios da técnica. O preparo pré-anestésico do paciente, bem como a escolha criteriosa das drogas, pode minimizar as complicações e é de primordial importância para o sucesso do procedimento.

References

  • 1
    Ghazanwy M, Chakrabarti R, Court O. Awake craniotomy: a qualitative review and future challenges. Saudi J Anaesth. 2014;8:529-39.
  • 2
    Costello TG, Cormack JR. Anaesthesia for awake craniotomy: a modern approach. J Clin Neurosci. 2004;11:16-9.
  • 3
    Bilotta F, Rosa G. Anesthesia for awakeneurosurgery. Curr Opin Anaesthesiol. 2009;22:560-5.
  • 4
    Conte V, Baratta P, Tomaselli P, et al. Awake neurosurgery: an update. Minerva Anestesiol. 2008;74:289-92.
  • 5
    Schulz U, Keh D, Fritz G, et al. Asleep-awake-asleep anaesthetic technique for awake craniotomy. Saudi J Anaesth. 2006;55:585-98.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2016
  • Aceito
    21 Set 2016
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org