Acessibilidade / Reportar erro

Buscando o motivo da instabilidade hemodinâmica: relato de caso sobre o papel do ultrassom intraoperatório

Resumo

Justificativa e objetivos:

O atendimento rápido e eficaz do paciente de trauma é necessário. O objetivo deste relato de caso foi destacar a importância do ecocardiograma intraoperatório como uma ferramenta útil em pacientes que sofrem de instabilidade hemodinâmica refratária sem explicação aparente.

Relato de caso:

Uma mulher de 41 anos sofreu um acidente de automóvel. No departamento de emergência, nenhuma anormalidade foi encontrada no ECG ou na radiografia de tórax. Uma ultrassonografia abdominal revelou a presença de líquido livre no abdome, e a paciente foi submetida à laparotomia exploradora de urgência. No entanto, a paciente continuou apresentando hipotensão arterial e acidose metabólica. Na busca pelo motivo de sua instabilidade hemodinâmica, um ecocardiograma transtorácico foi realizado no período intraoperatório e constatou a presenc¸a de derrame pericárdico. Após a remoção dos coágulos pericárdicos pelo cirurgião cardíaco, a condição da paciente melhorou clínica e analiticamente.

Conclusão:

Todo anestesiologista deve saber utilizar o ecocardiograma intraoperatório como ferramenta eficaz para estabelecer as medidas adequadas para promover a sobrevida de pacientes com traumatismos graves.

PALAVRAS-CHAVE
Acidente de trânsito; Monitoração intraoperatória; Ecocardiografia; Tamponamento cardíaco

Abstract

Background and objectives:

A prompt and effective management of trauma patient is necessary. The aim of this case report is to highlight the importance of intraoperative echocardiography as a useful tool in patients suffering from refractory hemodynamic instability no otherwise explained.

Case report:

A 41 year-old woman suffered a car accident. At the emergency department, no abnormalities were found in ECG or chest X-ray. Abdominal ultrasound revealed the presence of abdominal free liquid and the patient was submitted to urgent exploratory laparotomy. Nevertheless, she persisted suffering arterial hypotension and metabolic acidosis. Looking for the reason of her hemodynamic instability, intraoperative transthoracic echocardiography was performed, finding out the presence of pericardial effusion. Once the cardiac surgeon extracted pericardial clots, patient’s situation improved clinically and analytically.

Conclusion:

Every anesthesiologist should be able to use the intraoperative echocardiography as an effective tool in order to establish the appropriate measures to promote the survival of patients suffering severe trauma.

KEYWORDS
Traffic accident; Intraoperative monitoring; Echocardiography; Cardiac tamponade

Introdução

O trauma é a causa mais importante de morte em pessoas com menos de 40 anos e a terceira causa de morte entre todas as faixas etárias.11 Khorgami Z, Fleischer WJ, Chen YA, et al. Ten-year trends intraumatic injury mechanisms and outcomes: a trauma registryanalysis. Am J Surg. 2018;215:727-34. Os traumas graves são definidos como aqueles que provocam lesões potencialmente fatais. Em nosso meio, os acidentes de trânsito são a principal causa de trauma grave.

O tratamento inicial de pacientes que sofrem traumas graves requer uma avaliação rápida das lesões, bem como um tratamento rápido dessas lesões que ameaçam a vida. Durante as primeiras horas após o trauma, a maioria das mortes é causada pela presença de hemotórax, pneumotórax, ruptura esplênica, laceração hepática ou múltiplas lesões associadas a uma perda significativa de sangue. É necessário um manejo rápido e eficaz durante essa primeira "hora-ouro". Devido à importância do tempo, uma abordagem sistemática evita erros que podem causar a morte do paciente. A ultrassonografia inicial está hoje disponível no departamento de emergência (DE) e também fornece informações preciosas precocemente.

Relatamos o caso de um paciente tratado após sofrer um acidente de trânsito e um subsequente choque refratário grave. Os achados da avaliação ultrassonográfica inicial nos deram um diagnóstico errado, que resultou em laparotomia exploratória. No entanto, o uso da ultrassonografia intraoperatória nos ajudou a descobrir a causa da instabilidade hemodinâmica e a proceder à conduta adequada.

Relato de caso

Uma mulher de 41 anos foi transferida para o DE após sofrer um acidente de trânsito com colisão frontal. Ao exame físico inicial, a paciente apresentou um escore de coma de Glasgow de 15 pontos, capaz de mobilizar os quatro membros e manter a estabilidade pélvica. A radiografia de tórax à chegada da paciente evidenciou fratura de múltiplos arcos costais, com pequena câmara de pneumotórax basal direito (fig. 1), e o eletrocardiograma revelou taquicardia sinusal de 125 bpm. Após a chegada, a paciente sofreu deterioração hemodinâmica, apesar da reanimação volêmica (2.000 mL de cristaloides, 500 mL de coloides e uma unidade de hemácias) e recebeu a administração de drogas vasoativas (1 mcg·kg-1·min-1 de norepinefrina). Uma ultrassonografia abdominal revelou a presença de líquido peri-hepático e periesplênico livre, bem como uma coleção (6,5 cm × 5 cm) próxima ao baço em relação ao hematoma esplênico subcapsular. Devido aos achados ultrassonográficos, optou-se pela realização de laparotomia exploratória urgente. A paciente deu entrada no centro cirúrgico exibindo taquipneia, SpO2 94% e apresentando hipotensão apesar da perfusão contínua de norepinefrina. A cirurgia foi feita sob anestesia geral balanceada, sem encontrar um ponto de sangramento, apesar de uma revisão detalhada da cavidade peritoneal, retroperitônio e região pélvica.

Figura 1
Radiografia do tórax no pré-operatório. Seta: índice cardiotorácico dentro do limite superior da normalidade.

Durante a cirurgia, a paciente apresentou hipotensão arterial persistente e acidose metabólica grave (pH 6,99, pCO2 35,4 mmHg, pO2 461 mmHg, bicarbonato 9 mmoL·L-1, excesso de bases-22,9 mmoL·L-1), mas apresentou recuperação hemodinâmica transitória em relação à infusão do volume. Embora distensão venosa jugular não tenha sido observada, uma pressão venosa central alta (36 mmHg) foi documentada. Portanto, a suspeita de tamponamento cardíaco foi levantada. Um ecocardiograma transtorácico intraoperatório foi feito, identificou derrame pericárdico circunferencial de 25 mm com compressão diastólica do átrio direito (fig. 2). A equipe de cirurgia cardíaca foi contatada e uma janela pericárdica subxifoide foi feita, na qual hemopericárdio grave foi visualizado com abundantes coágulos. A esternotomia mediana foi concluída, extraiu vários coágulos e uma grande quantidade de sangue e excluiu a presença de perfuração de cavidades cardíacas ou qualquer lesão de grandes vasos. Após a drenagem pericárdica, a condição da paciente melhorou clínica e analiticamente, reverteu-se a acidose metabólica (pH 7,32; pCO2 42,9 mmHg; pO2 235 mmHg; bicarbonato 21,2 mmoL·L-1; excesso de bases-4 mmoL·L-1) e o suporte vasoativo pôde ser interrompido. Cinco unidades de hemácias, duas unidades de plasma fresco congelado, 2 g de fibrinogênio, 1 g de ácido tranexâmico e 500 UI de complexo protrombínico foram transfundidos e o sangramento intraoperatório de 1.500 mL foi estimado.

Figura 2
Ecocardiograma transtorácico intraoperatório. Pontas de setas: derrame pericárdico.

Após a cirurgia, uma TC total do corpo foi feita, excluíram-se lesões agudas e encontrou-se uma quantidade moderada de líquido intra-abdominal livre no retroperitônio. Cortes torácicos mostraram câmaras mínimas de pneumotórax bilateral e pneumomediastino, além de uma quantidade moderada de derrame pleural, atelectasias associadas e múltiplas fraturas de costelas.

A paciente foi transferida para a unidade de terapia intensiva (UTI) sedada e precisou da administração de drogas vasoativas em doses baixas. O tubo endotraqueal foi removido 24 horas após a admissão e o suporte vasoativo na 48ª hora. Após a admissão, um ECG controle mostrou elevação generalizada do intervalo ST e as enzimas cardíacas foram avaliadas (pico de CK 1.206 UI.L-1 e pico de troponina T296 ng.dL-1). O ecocardiograma transtorácico mostrou disfunção ventricular esquerda global moderada, sem encontrar qualquer alteração isquêmica, valvopatia ou derrame pericárdico. Essa alteração no ECG foi relacionada ao contexto de irritação pericárdica. A paciente foi transferida para a enfermaria cinco dias após a intervenção, clinicamente estável, em excelente condição clínica. Oito dias após a internação, a alta hospitalar foi possível.

Discussão

O trauma torácico é a lesão mais importante após acidente automobilístico, como resultado comum de lesões por impacto e desaceleração. A incidência de lesões torácicas em pacientes traumatizados é de 45–65% e essas lesões estão associadas a uma taxa de mortalidade de até 60%.22 Teixeira PGR, Inaba K, Oncel D, et al. Blunt cardiac rupture: a5-year NTDB analysis. J Trauma. 2009;67:788-91.

Os acidentes de trânsito são a principal causa da maioria das lesões cardíacas contusas (LCC) e essas lesões provocam aproximadamente 20% das mortes nesses tipos de acidentes.22 Teixeira PGR, Inaba K, Oncel D, et al. Blunt cardiac rupture: a5-year NTDB analysis. J Trauma. 2009;67:788-91. Por outro lado, os acidentes de trânsito costumam ser pareados com lesões em múltiplos órgãos, com a possibilidade de subdiagnóstico de LCC. Além disso, a história médica do paciente geralmente é inespecífica e o exame físico no cenário de emergência pode ser difícil, é quase impossível ouvir os característicos sons cardíacos distantes associados à LCC. Portanto, um alto índice de suspeita de LCC é fundamental para o diagnóstico, especialmente nos pacientes com instabilidade hemodinâmica refratária sem outra explicação.22 Teixeira PGR, Inaba K, Oncel D, et al. Blunt cardiac rupture: a5-year NTDB analysis. J Trauma. 2009;67:788-91. O atraso no seu diagnóstico provoca atraso no tratamento, piora o prognóstico do paciente.

Em relação ao difícil diagnóstico dessa entidade, o ECG fornece pouca informação e geralmente é inespecífico. As anormalidades mais frequentes no ECG podem incluir taquicardia sinusal, arritmias, novo bloqueio de ramo e alterações no segmento ST.33 Marcolini EG, Keegan J. Blunt cardiac injury. Emerg Med ClinNorth Am. 2015;33:519-27. A taquicardia sinusal é a resposta normal à diminuição do volume sistólico secundária ao tamponamento cardíaco agudo. A informação fornecida pela radiografia de tórax também é normalmente útil, é normal na maioria dos casos documentados de LCC.22 Teixeira PGR, Inaba K, Oncel D, et al. Blunt cardiac rupture: a5-year NTDB analysis. J Trauma. 2009;67:788-91. A presença de fraturas de costelas, pneumotórax ou silhueta cardíaca aumentada é rara, mas pode ajudar no diagnóstico em alguns casos. A elevação de enzimas cardíacas não é específica nem sensível no diagnóstico de LCC.33 Marcolini EG, Keegan J. Blunt cardiac injury. Emerg Med ClinNorth Am. 2015;33:519-27.

Em nossa paciente, a ausência de anormalidades no eletrocardiograma ou na radiografia de tórax, associada à importante dor abdominal e ao claro diagnóstico ultrassonográfico de lesão esplênica, justificou a laparotomia exploratória em caráter de urgência para resolver a suspeita de sangramento abdominal. Da mesma forma, a incidência de sangramento esplênico em acidentes de trânsito é alta e está relacionada a uma alta taxa de mortalidade se o tratamento não for aplicado prontamente em pacientes hemodinamicamente instáveis.

Nos últimos anos, o uso do ecocardiograma transtorácico ou transesofágico adquiriu considerável relevância como ferramenta diagnóstica inestimável, não invasiva e disponível em muitos DE.44 Saranteas T, Mayrogenis AF, Mandila C, et al. Ultrasound in cardiactrauma. J Crit Care. 2017;38:144-51. A ecocardiografia permite quantificar o grau de disfunção miocárdica e doença valvar cardíaca33 Marcolini EG, Keegan J. Blunt cardiac injury. Emerg Med ClinNorth Am. 2015;33:519-27. e seu uso fornece informações ao profissional para identificar a origem da instabilidade hemodinâmica ou respiratória, contribui para uma tomada de decisão rápida sobre o manejo mais adequado do paciente. No entanto, as imagens ultrassonográficas mudam rapidamente com o tempo, à medida que a lesão progride no paciente agudo. Assim, o uso da ecocardiografia em cenário de emergência pode ser perfeito para um manejo mais rápido e eficiente do paciente.

Durante o procedimento intraoperatório, a ecocardiografia também se tornou um instrumento de alto valor, permitiu aos anestesiologistas monitorar a progressão das lesões. Por esse motivo, é essencial que o anestesiologista adquira o treinamento adequado de todas as ferramentas disponíveis para a obtenção de um diagnóstico preciso. Devido à importância do ultrassom para a evolução da anestesiologia como especialidade, os fundamentos da ultrassonográfica perioperatória devem ser ensinados em programas credenciados de treinamento em anestesiologia.55 Mahmood F, Matyal R, Skubas N, et al. Perioperative ultra-sound training in anesthesiology: a call to action. Anesth Analg. 2016;122:1794-804.

Em conclusão, a ecocardiografia intraoperatória é uma habilidade fundamental que todo anestesiologista deve ser capaz de controlar, especialmente em pacientes com instabilidade hemodinâmica refratária, permite o rápido estabelecimento de medidas terapêuticas apropriadas para promover a sobrevivência do paciente.

Consentimento para publicação

A paciente assinou o termo de consentimento informado para a publicação dos dados clínicos e imagens. Nenhum dado pessoal da paciente é apresentado neste artigo.

References

  • 1
    Khorgami Z, Fleischer WJ, Chen YA, et al. Ten-year trends intraumatic injury mechanisms and outcomes: a trauma registryanalysis. Am J Surg. 2018;215:727-34.
  • 2
    Teixeira PGR, Inaba K, Oncel D, et al. Blunt cardiac rupture: a5-year NTDB analysis. J Trauma. 2009;67:788-91.
  • 3
    Marcolini EG, Keegan J. Blunt cardiac injury. Emerg Med ClinNorth Am. 2015;33:519-27.
  • 4
    Saranteas T, Mayrogenis AF, Mandila C, et al. Ultrasound in cardiactrauma. J Crit Care. 2017;38:144-51.
  • 5
    Mahmood F, Matyal R, Skubas N, et al. Perioperative ultra-sound training in anesthesiology: a call to action. Anesth Analg. 2016;122:1794-804.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2018
  • Aceito
    04 Set 2018
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org