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Conduta em obstrução por coágulo em cânula de duplo lúmen bicaval após diagnóstico guiado por ETE: relato de caso

Resumo

Justificativa:

A oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa é terapia estabelecida para pacientes com a síndrome do desconforto respiratório agudo. Uma complicação relacionada ao uso da oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa é trombose apesar de anti-coagulação adequada. Relatamos o diagnóstico e conduta em obstrução por coágulo em cânula de acesso único inserida pela veia jugular interna, guiada por ecocardiografia transesofageana.

Relato de caso:

Paciente do sexo masculino de 39 anos desenvolveu síndrome do desconforto respiratório agudo e instabilidade hemodinâmica após episódio de aspiração pulmonar na UTI. Oito horas após a instalação de oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa de acesso único, o perfusionista notou repentina redução no fluxo. A ETE revelou massa semelhante a um trombo obstruindo o portal de fluxo de entrada na VCS e o fluxo de saída na VCI estava intacto. Após tentativas sem sucesso para reposicionar a cânula, a equipe decidiu inserir cânula de entrada de fluxo adicional pela VCI. O catéter de acesso único foi, então, puxado até que sua ponta se posicionasse no átrio direito e todos os três portais do catéter fossem transferidos para os portais de infusão. A seguir, os fluxos e oxigenação melhoraram significativamente. Infelizmente, apesar dos esforços, o paciente foi a óbito 2 dias depois.

Discussão:

O diagnóstico de obstrução de cânula da oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa se baseia em velocidades reduzidas de entrada de fluxo, instabilidade hemodinâmica e oxigenação pobre do sangue. A ETE permite a avaliação dos fluxos dentro da cânula, e nesse caso foi encontrada obstrução. A técnica apresentada aponta para o fato de que em situação de obstrução de catéter causada por coágulo, existe alternativa factível para garantir interrrupção mínima do suporte hemodinâmico oferecido pela oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa.

PALAVRAS-CHAVE
Síndrome do desconforto respiratório agudo; Catéteres, canulação; Ecocardiografia, transesofageana; Oxigenação por membrana extracorpórea; Resolução de problemas

Abstract

Background:

Veno-venous extracorporeal membrane oxygenation is an established therapy for patients with refractory acute respiratory distress syndrome (ARDS). One complication related to the use of veno-venous extracorporeal membrane oxygenation is thrombosis despite proper anticoagulation. We report the diagnosis and management of a clot-obstruction in a single site cannula placed through the internal jugular vein, guided by transesophageal echocardiography.

Case report:

A 39 year-old male developed acute respiratory distress syndrome and hemodynamic instability after an episode of pulmonary aspiration in the ICU. Eight hours after placement of a single site veno-venous extracorporeal membrane oxygenation, suddenly the perfusionist noticed a reduction in flow. TEE showed a thrombus-like mass obstructing the inflow port in SVC and inflow at IVC was intact. After unsuccessful attempts to reposition the cannula, the team decided to insert additional femoral inflow cannula through the IVC. The single site catheter was then pulled out until its tip was positioned in the right atrium and all three ports of the catheter were switched to the infusion ports. After this, flows and oxygenation improved significantly. Unfortunately, despite all of the efforts, the patient died 2 days later.

Discussion:

The diagnosis of veno-venous extracorporeal membrane oxygenation cannula obstruction is based on reduced inflow rates, hemodynamic instability and poor oxygenation of blood. TEE allows evaluation of the flows inside the cannula and in this case, an obstruction was found. The management presented points to the fact that in a situation of catheter obstruction caused by a clot, there is a feasible alternative to assure minimal interruption of the hemodynamic support offered by the veno-venous extracorporeal membrane oxygenation.

KEYWORDS
Acute respiratory distress syndrome; Catheters, indwelling; Echocardiography, transesophageal; Extracorporeal membrane oxygenation; Troubleshooting

Justificativa

A oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa (ECMO-VV) é terapia estabelecida para pacientes com doença pulmonar refratária, como Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA).11 Peek GJ, Mugford M, Tiruvoipati R. Efficacy and economic assessment of conventional ventilatory support versus extracorporeal membrane oxygenation for severe adult respiratory failure (CESAR): a multicentre randomised controlled trial. Lancet. 2009;374:1351-63.

A canulação para ECMO-VV envolve acesso único ou duplo. Na técnica de acesso duplo, o sangue é aspirado de uma veia central através de cânula de drenagem e o sangue oxigenado é reposto através de uma segunda cânula. A técnica pode resultar em recirculação de sangue oxigenado em alça fechada no circuito sem contribuir para a oxigenação sistêmica.22 Abrams D, Brodie D, Combes A. What is new in extracorporeal membrane oxygenation for ARDS in adults?. Intensive Care Med. 2013;39:2028-30. A recém desenvolvida Avalon EliteTM é introduzida através da veia jugular interna com os lúmens de drenagem abertos para a Veia Cava Superior (VCS) e Veia Cava Inferior (VCI), enquanto o lúmen de infusão abre para o átrio direito. O sangue é retirado pelos portais de drenagem, oxigenado através de pulmões artificiais, e em seguida o sangue é levado de volta através do lúmen de infusão no nível do átrio direito com o fluxo direcionado para a válvula tricúspide. Uma cânula posicionada adequadamente reduz a probabilidade de recirculação.22 Abrams D, Brodie D, Combes A. What is new in extracorporeal membrane oxygenation for ARDS in adults?. Intensive Care Med. 2013;39:2028-30.

Uma complicação conhecida associada ao uso de ECMO é trombose, mesmo em vigência de anti-coagulação adequada.33 Raffini L. Anticoagulation with VADs and ECMO: walking the tightrope. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2017;8:674-80.

Relatamos o caso de obstrução de um dos lúmens da Avalon Elite™, que levou a baixo fluxo e acidose crítica. O diagnóstico de obstrução em um dos portais de drenagem foi guiado por ETE e foi tomada conduta apropriada para resolver o problema com sucesso.

Relato de caso

O consentimento para usar o caso com fins didáticos foi assinado pela família. Um paciente do sexo masculino de 39 anos, previamente saudável, deu entrada no Departamento de Emergência do nosso Hospital com lesões associadas a acidente com veículo a motor. Na entrada, foi achado sangramento interno maciço que levou a hipotensão e taquicardia. Em função disso, foi submetido à transfusão sanguínea maciça e toracotomia esquerda para ressuscitação. O Retorno da Circulação Espontânea (ROSC, do inglês Return of Spontaneous Circulation) foi obtido após clampeamento da aorta e drenagem torácica. A seguir, foi submetido à laparotomia com ressecção de íleo terminal e ressecção anterior de sigmoide/reto. Achados também importantes incluíram contusões pulmonares bilaterais.

Durante sua recuperação na UTI, apresentou episódio de aspiração devido a ruptura do balonete no tubo endotraqueal. Após o episódio, a respiração do paciente deteriorou de maneira significativa e a necessidade de drogas vasoativas aumentou devido a quadro grave de pneumonia. Como consequência, o paciente desenvolveu SDRA com razão PaO2/FiO2 acentuadamente baixa de 59, além de instabilidade hemodinâmica. Decidiu-se pela introdução à beira leito de ECMO-VV de acesso único com catéter Avalon EliteTM guiado por TEE. Em seguida, houve melhora significativa da oxigenação e hemodinâmica. A gasometria apresentou melhora no pO2 de 38 para 50 mmHg e o pCO2 diminuiu de 80 para 45 mmHg.

Oito horas após o início da ECMO-VV, o perfusionista notou uma redução repentina no fluxo. A equipe de anestesia cardíaca foi chamada para investigar a causa do baixo fluxo e orientar o reposicionamento do catéter. A ETE revelou uma massa semelhante a trombo obstruindo o fluxo do portal de drenagem na VCS (velocidade > 150 cm/s) e o fluxo de entrada da VCI estava intacto (velocidade = 50 cm/s). O fluxo de saída não estava direcionado para a válvula tricúspide (fig. 1).

Figura 1
Visão Bicaval do esôfago médio mostrando o portal de saída de fluxo da cânula AvalonTM antes da técnica descrita, mostrando jato de saída não denso com baixas velocidades, compatível com baixo fluxo no portal de saída de fluxo. (RA, Átrio Direito; LA, Átrio Esquerdo; IAS, Septo Interatrial).

Depois de múltiplas tentativas para reposicionar a cânula falharem, a equipe decidiu introduzir uma cânula adicional femoral pela VCI até o AD. Em seguida, a cânula Avalon EliteTM foi puxada até que sua ponta se posicionasse no átrio direito e os três portais do cateter foram transferidos para os portais de infusão (fig. 2). A seguir, os fluxos e a oxigenação apresentaram melhora significativa.

Figura 2
Visão Bicaval Modificada do Esôfago Médio mostrando o portal anterior de entrada da VCI, convertido em portal de fluxo de saída após a técnica descrita, com jato organizado denso e de alta velocidade na direção da Válvula Tricúspide. (RA, Átrio Direito; TV, Válvula Tricúspide).

Infelizmente, apesar de todos os esforços, o estado do paciente continuou a se deteriorar e ele foi a óbito 2 dias depois.

Discussão

O diagnóstico de obstrução de cânula ECMO-VV se baseia na velocidade reduzida de fluxo de entrada, instabilidade hemodinâmica e oxigenação pobre do sangue. As causas mais frequentes incluem mal posicionamento ou deslocamento das cânulas e recirculação. No presente caso, a obstrução de um dos portais de drenagem foi detectada na ETE.

O papel fundamental da ETE na resolução de problemas tem sido alvo de publicações. O emprego da ETE permite avaliação precisa dos fluxos no interior da cânula, e essas mensurações tornam possível identificar a causa do baixo fluxo em alguns casos.44 Griffee MJ, Tonna JE, McKellar SH, et al. Echocardiographic guidance and troubleshooting for venovenous extracorporeal membrane oxygenation using the dual-lumen bicaval cannula. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2018;32:370-8.

A trombose é a principal complicação que causa baixo fluxo na ECMO, e a ETE é considerada uma das ferramentas mais importantes para a avaliação adequada e diagnóstico da complicação.55 Ruisanchez C, Sarralde JA, Gonzalez-Fernandez C, et al. Sudden dysfunction of veno-venous extracorporeal membrane oxygenation caused by intermittent cannula obstruction: the key role of echocardiography. Intensive Care Med. 2017;43:1055-6. O exame com ETE pode levar a um diagnóstico preciso dos problemas de base.

A anticoagulação é parte fundamental da assistência do paciente em uso de dispositivo ECMO.33 Raffini L. Anticoagulation with VADs and ECMO: walking the tightrope. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2017;8:674-80. Na nossa instituição, a infusão de heparina de 6 U/kg/h geralmente é iniciada depois da instalação da ECMO, e os níveis de anticoagulação são monitorados com TPT conforme apresentado na tabela 1. Entretanto, devido a hemorragia maciça e transfusão, foi feito um acordo entre os médicos envolvidos na assistência do paciente e a anticoagulação não começou imediatamente depois da introdução da ECMO.

Tabela 1
Protocolo para ajuste de infusão de heparina em pacientes em ECMO

O presente relato de caso reforça o papel indispensável da ecocardiografia para conseguir e confirmar a posição adequada da cânula ECMO-VV guiada por ETE. A Avalon EliteTM permite melhor mobilização do paciente com uma cânula única inserida na veia jugular interna. A AvalonTM foi introduzida só recentemente no mercado e ainda não foram descritas instruções para resolução de problemas. Esperamos que o relato de caso possa ajudar os clínicos a abordarem melhor os pacientes em terapia com Avalon EliteTM.

A conduta na complicação apresentada no relato aponta para o fato de que, no caso de obstrução de cateter causada por coágulo, existe uma alternativa factível para garantir que a interrupção do suporte hemodinâmico oferecido pela ECMO-VV seja mínima. O coágulo será tratado com anticoagulantes e o portal que contém o coágulo evidentemente não será usado como portal de saída de fluxo. Talvez o risco de eventos tromboembólicos aumente, mas a gravidade do quadro clínico e a necessidade de suporte mecânico supera esse risco.

Resumo

Resumindo, a ETE é importante ferramenta na avaliação das causas de baixo fluxo durante a ECMO-VV. Além disso, facilita a resolução de problemas por demonstrar se os fluxos nas pontas dos catéteres são adequados e bem direcionados para as regiões de interesse. A técnica com catéter ECMO-VV de acesso único é relativamente nova e se o trombo está causando obstrução no sistema, é possível convertê-lo em sistema convencional de duplo acesso através da inserção de uma segunda cânula.Tivemos a experiência de um caso de obstrução de portal na Avalon EliteTM oito horas após o início da ECMO-VV. Sob a orientação da ETE, fomos capazes de diagnosticar a causa em momento oportuno e lidar de forma proativa com o problema. A ETE é parte indispensável da assistência de pacientes na UTI. Quando utilizada de forma adequada, fornece benefícios clínicos significativos.

References

  • 1
    Peek GJ, Mugford M, Tiruvoipati R. Efficacy and economic assessment of conventional ventilatory support versus extracorporeal membrane oxygenation for severe adult respiratory failure (CESAR): a multicentre randomised controlled trial. Lancet. 2009;374:1351-63.
  • 2
    Abrams D, Brodie D, Combes A. What is new in extracorporeal membrane oxygenation for ARDS in adults?. Intensive Care Med. 2013;39:2028-30.
  • 3
    Raffini L. Anticoagulation with VADs and ECMO: walking the tightrope. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2017;8:674-80.
  • 4
    Griffee MJ, Tonna JE, McKellar SH, et al. Echocardiographic guidance and troubleshooting for venovenous extracorporeal membrane oxygenation using the dual-lumen bicaval cannula. J Cardiothorac Vasc Anesth. 2018;32:370-8.
  • 5
    Ruisanchez C, Sarralde JA, Gonzalez-Fernandez C, et al. Sudden dysfunction of veno-venous extracorporeal membrane oxygenation caused by intermittent cannula obstruction: the key role of echocardiography. Intensive Care Med. 2017;43:1055-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2019
  • Aceito
    1 Dez 2019
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