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COVID-19 e a retomada das cirurgias eletivas. Como voltaremos à normalidade?

A COVID-19 estará presente na nossa população nos próximos meses (ou até que a vacina esteja disponível) e, além das restrições individuais à liberdade, teremos que enfrentar os impactos negativos na economia11 Søreide K, Hallet J, Matthews JB, et al. Immediate and long-term impact of the COVID-19 pandemic on delivery of surgical services. Br J Surg. 2020, http://dx.doi.org/10.1002/bjs.11670. Online ahead of print.
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com seus desdobramentos sociais: desemprego, depressão, fome, suicídios, violência contra as mulheres, abuso de drogas, entre outros. Condições sabidamente implicadas no aumento de óbitos.

Considerando especificamente a nossa atividade, a situação que vivenciamos não encontra paralelo na história moderna e, portanto, inexiste informação disponível para comparar e projetar qual será o efeito da interrupção das cirurgias na saúde pública.22 Spinelli A, Pellino G. COVID-19 pandemic: perspectives on an unfolding crisis. Br J Surg. 2020;107:785-7.

Para que o retorno das cirurgias eletivas aconteça com segurança, será indispensável a participação efetiva dos serviços de anestesia junto aos comitês gestores com o intuito de disponibilizar todos os recursos para o enfrentamento da pandemia, gerenciando possíveis desabastecimentos, e com o objetivo de desenvolver e adaptar protocolos assistenciais.

Nas cirurgias eletivas de pacientes não infectados, uma alta vigilância deve ser mantida e os princípios de distanciamento social, uso de proteção para pacientes e equipes assistenciais, observados em todos os casos. Durante cirurgias eletivas, relatos de aumento da mortalidade e de eventos adversos ao contrair COVID-19 são preocupantes e justificam cuidados adicionais, como a testagem e o isolamento prévio.33 Aminian A, Safari S, Razeghian-Jahromi A, et al. COVID-19 Outbreak and surgical practice: Unexpected fatality in perioperative period. Ann Surg. 2020;272:e27-9.,44 Brat GA, Hersey S, Chhabra K, et al. Protecting surgical teams during the COVID-19 outbreak: A narrative review and clinical considerations. Ann Surg. 2020, http://dx.doi.org/10.1097/SLA.0000000000003926. Online ahead of print.
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Em decorrência dos custos associados e da escassez de equipamentos de proteção, a gestão hospitalar tende a recomendar o uso de proteção máxima apenas em casos positivos para COVID-19, mesmo que isso coloque alguma incerteza quanto à proteção de todos os envolvidos. Este é outro tema sensível e delicado que precisará ser enfrentado.

Por outro lado, em todo o mundo, a disponibilidade de acesso à cirurgia é reconhecida como um recurso escasso, existindo um desafio global para prover cirurgias e anestesias seguras como prioridade.55 Holmer H, Bekele A, Hagander L, et al. Evaluating the collection, comparability and findings of six global surgery indicators. Br J Surg. 2019;106:e138-50.,66 McDermott FD, Kelly ME, Warwick A, et al. Problems and solutions in delivering global surgery in the 21st century. Br J Surg. 2016;103:165-9. Estimativas sugerem que aproximadamente 330 milhões de cirurgias são realizadas anualmente em todo o mundo,77 Weiser TG, Haynes AB, Molina G, et al. Size and distribution of the global volume of surgery in 2012. Bull World Health Organ. 2016;94:201F-9F. a grande maioria nos países desenvolvidos. Considerando a média global de cerca de seis milhões de procedimentos por semana, o represamento das cirurgias e as novas exigências de segurança exigirão soluções inovadoras.

Como exemplo da grave situação, segundo o Observatório Global do Câncer da OMS, 500.000 pacientes são diagnosticados com câncer colorretal anualmente na Europa e quatro milhões com qualquer tipo de câncer. Em dois meses de pandemia, haveria atraso no diagnóstico de 83.000 pacientes com câncer colorretal e em mais de 660.000 pacientes com qualquer outro tipo de câncer. Essa estimativa não incluiu o tempo necessário para normalizar a atividade e solucionar a lista de pendências, portanto, o impacto negativo pode ser muito maior,88 International Agency for Research on Cancer. Global Cancer Observatory of the World Health Organisation. Cancer Today. https://tinyurl.com/w9w9msq.
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principalmente porque desconhecemos as implicações do represamento das cirurgias no agravamento da condição clínica do paciente, em sua saúde e bem-estar.11 Søreide K, Hallet J, Matthews JB, et al. Immediate and long-term impact of the COVID-19 pandemic on delivery of surgical services. Br J Surg. 2020, http://dx.doi.org/10.1002/bjs.11670. Online ahead of print.
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No Brasil, o vírus chegou oficialmente em 25 de Fevereiro, na cidade de São Paulo.99 Simões CM, Lima LHNE, et al. The Anesthesiologist and COVID-19. Rev Bras Anestesiol. 2020;70:77-81. A crise já dura, portanto, cinco meses e deve se prolongar até o final de 2020 em diferentes partes do país, o que faz supor que a conjuntura possa ser ainda mais crítica e que os hospitais e o sistema de saúde sofrerão fortes impactos econômicos. Considerando a gravidade da situação enfrentada, cabem algumas perguntas aos anestesistas e às suas entidades representativas: Como os serviços de anestesia podem agregar valor e reduzir custos? Que atitudes/medidas deveriam ser priorizadas? Qual, afinal, será a nossa contribuição?

Dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS)1010 Instituto de Estudos de Saúde Suplementar. Conjuntura - Saúde Suplementar. Ed. 2019. Disponível em: https://www.iess.org.br/cms/rep/conj.pdf. Acessado em 30 de Junho de 2020.
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demonstram que 61% do Índice de Custo Médico Hospitalar, uma espécie de medida da inflação médico-hospitalar no Brasil, se deve à internação hospitalar. Portanto, uma medida prioritária e de grande representatividade será reduzir o tempo de internação.1111 Gathe-Ghermay JC, Liu LL. Preoperative programs in anesthesiology. Anesthesiol Clin N Am. 1999;17:335-53.

Como o custo fixo do centro cirúrgico é elevado, impõe-se também a redução do tempo de realização de cada cirurgia, potencializando a utilização do centro cirúrgico. Entretanto, a realização mais rápida da cirurgia não pode comprometer a segurança do paciente, pois quando ocorre uma complicação, o custo associado à cirurgia aumenta significativamente.1212 Waltz PK, Zuckerbraun BS. Surgical site infections and associated operative characteristics. Surg Infect (Larchmt). 2017;18:447-50.

Isoladamente, a complicação perioperatória mais frequente é a infecção. De fato, infecções da ferida operatória estão entre as mais sérias e comuns complicações perioperatórias e, provavelmente, causam mais morbidade que todas as outras complicações anestésicas somadas,1313 Galway UA, Parker BM, Borkowski RG. Prevention of postoperative surgical site infections. Int Anesthesiol Clin. 2009;47:37-53. sendo que metade delas podem ser prevenidas.1414 Link T. Guideline implementation: Design and maintenance of the surgical suite. AORN J. 2019;109:479-91. O paciente com infecção tem cinco vezes mais chance de reinternar1515 Berger A, Edelsberg J, Yu H, Oster G. Clinical and economic consequences of post-operative infections following major elective surgery in U.S. hospitals. Surg Infect (Larchmt). 2014;15:322-7. e aumenta o tempo médio de internação em 3 a 4 dias.1616 Sullivan E, Gupta A, Cook CH. Cost and consequences of surgical site infections: A call to arms. Surg Infect (Larchmt). 2017;18:451-4.

Diante dos desafios apresentados, especial atenção deve ser dada ao controle de fatores de risco para desenvolver infecção perioperatória. Principalmente a hipotermia,1717 Berríos-Torres SI, Umscheid CA, Bratzler DW, et al. Centers for Disease Control and Prevention guideline for the prevention of surgical site infection. JAMA Surg. 2017;152:784-91. a desnutrição1818 Correia MITD, Perman MI, Waitzberg DL. Hospital malnutrition in Latin America: A systematic review. Clin Nutr. 2017;36:958-67. e a resistência à insulina.1919 Melnyk M, Casey RG, Black P, Koupparis AJ. Enhanced Recovery After Surgery (ERAS) protocols: Time to change practice?. Can Urol Assoc J. 2011;5:342-8.

Protocolos como o projeto Aceleração da Recuperação Total Pós-Operatória (ACERTO)2020 de-Aguilar-Nascimento JE, Salomão AB, Waitzberg DL, et al. ACERTO guidelines of perioperative nutritional interventions in elective general surgery. Rev Col Bras Cir. 2017;44:633-48. e o Enhanced Recovery After Surgery (ERAS),2121 Teixeira UF, Fontes PRO, Conceição CWN, et al. Implementation of Enhanced Recovery After Colorectal Surgery (ERAS) protocol: initial results of the first Brazilian experience. Arq Bras Cir Dig. 2019;32:e1419. com base em evidências, já foram testados no Brasil e em várias partes do mundo e deveriam receber especial atenção na retomada das cirurgias eletivas, pois são alternativas de fácil execução para reduzir a morbimortalidade perioperatória, o tempo de internação e os custos associados.

Em síntese, nesse período de grandes incertezas, impõe-se a aplicação da melhor evidência científica, a adaptação dos protocolos, a correta utilização dos recursos e das estruturas disponíveis e a elaboração de um plano de recuperação dos serviços priorizando os pacientes que apresentam condições clínicas com maior risco de deterioração.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2020

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2020
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