Acessibilidade / Reportar erro

Efeitos do rocurônio, sugamadex e complexo rocurônio-sugamadex sobre a coagulação em ratos

Resumo

Introdução e objetivos:

O sugamadex é uma substância farmacológica alternativa capaz de reverter o bloqueio neuromuscular sem as limitações apresentadas pelos anticolinesterásicos. Entretanto, há relatos de transtornos de coagulação relacionados ao tratamento com sugamadex sem que mecanismos exatos de seus efeitos sobre a coagulação sejam totalmente compreendidos. O objetivo da presente pesquisa foi avaliar os efeitos do rocurônio, sugamadex e do complexo rocurônio-sugamadex sobre a coagulação em um modelo experimental com ratos.

Métodos:

Este é um estudo randomizado experimental animal. Ratos Wistar foram aleatoriamente designados aos seguintes grupos: grupo controle; Grupo Ssal - 0,5 mL de solução salina intravenosa; Grupo sugamadex - sugamadex intravenoso (100 mg.kg-1); e Grupo rocurônio-sugamadex - solução intravenosa com rocurônio (3,75 mg.kg-1) e sugamadex (100 mg.kg-1). A anestesia foi realizada utilizando-se isoflurano com ventilação controlada. Os fatores de coagulação foram medidos 10 minutos após o final do preparo pré-operatório e 30 minutos após a administração de drogas de acordo com os grupos escolhidos.

Resultados:

Contagem de plaquetas, tempo de protrombina e tempo de tromboplastina parcial ativada foram semelhantes entre os grupos e entre os momentos dentro de cada grupo. Houve redução nos níveis de fibrinogênio plasmático entre os tempos 1 e 2 no grupo rocurônio-sugamadex (p = 0,035).

Conclusões:

O complexo rocurônio-sugamadex promoveu reduções na contagem de fibrinogênio plasmático, apesar de os níveis continuarem dentro dos limites normais.

Palavras-chave
Sugamadex; Rocurônio; Coagulação sanguínea

Abstract

Background and objectives:

Sugammadex is an alternative pharmacological drug capable of reversing neuromuscular blockades without the limitations that are presented by anticholinesterase drugs. Coagulation disorders that are related to treatment with sugammadex were reported. The exact mechanism of the effects on coagulation are not fully understood. The objective of this research is to evaluate the effects of rocuronium, sugammadex and the rocuronium-sugammadex complex on coagulation in an experimental model in rats.

Methods:

This is an experimental randomized animal study. Wistar rats were randomly assigned into the following groups: the Control Group; the Ssal Group - 0.5 mL of intravenous saline; the Sugammadex Group - intravenous sugammadex (100 mg kg−1); and the Rocuronium-Sugammadex Group - intravenous solution with rocuronium (3.75 mg kg−1) and sugammadex (100 mg kg−1). Anesthesia was performed by using isoflurane with controlled ventilation. Coagulation factors were measured 10 minutes after the end of the preoperative preparation and 30 minutes after the administration of the drugs in accordance with the chosen groups.

Results:

Platelet counts, prothrombin times, and activated partial thromboplastin times were similar between the groups and between the moments within each group. There were reductions in the plasma fibrinogen levels between sample times 1 and 2 in the Rocuronium-Sugammadex group (p = 0.035).

Conclusions:

The rocuronium-sugammadex complex promoted reductions in plasma fibrinogen counts, although the levels were still within normal limits.

Keywords
Sugammadex; Rocuronium; Blood coagulation

Introdução

O bloqueio neuromuscular residual é um problema prático no campo da anestesia clínica que pode levar a desfechos clínicos adversos porque aumenta as complicações pulmonares no período pós operatório, incluindo pneumonia, atelectasia, hipoxemia e hipercapnia, que podem levar a aumentos na morbidade e mortalidade.11 Kumar GV, Nair AP, Murthy HS, et al. Residual neuromuscular blockade affects postoperative pulmonary function. Anesthesiology. 2012;117:1234-44.,22 Baillard C. Incidence and complications of post operative residual paralysis. Ann Fr Anesth Reanim. 2009;28(Suppl. 2):S41-5. O monitoramento neuromuscular e o uso rotineiro de drogas de reversão são fatores-chave na prevenção do bloqueio neuromuscular pós-operatório residual.

O sugamadex, que é uma droga da classe dos agentes seletivos de ligação neuromuscular, é uma γ-ciclodextrina modificada que envolve o bloqueador neuromuscular (rocurônio ou vecurônio) e leva à reversão do bloqueio neuromuscular induzido por rocurônio ou vecurônio.33 Booij LH, Van Egmond J, Driessen JJ, et al. In vivo animal studies with sugammadex. Anaesthesia. 2009;64(Suppl. 1):S38-44.,44 De Boer HD, Van Egmond J, Driessen JJ, et al. A new approach to anesthesia management in myasthenia gravis: reversal of neuromuscular blockade by sugammadex. Rev Esp Anestesiol Reanim. 2010;57:181-4. O sugamadex foi desenvolvido como uma substância farmacológica alternativa que seria capaz de reverter o bloqueio neuromuscular sem as limitações apresentadas pelos anticolinesterásicos. Foi inicialmente introduzido pela comunidade científica em 2002; desde então, estudos animais e humanos demonstraram a eficácia e tolerabilidade da droga.55 Yang LP, Keam SJ. Sugammadex: a review of its use in anaesthetic practice. Drugs. 2009;69:919-42.,66 Peeters PA, Van den Heuvel MW, Van Heumen E, et al. Safety, tolerability and pharmacokinetics of sugammadex using single high doses (up to 96 mg kg−1) in healthy adult subjects: a randomized, double-blind, crossover, placebo-controlled, single-centre study. Clin Drug Invest. 2010;30:867-74. Além disso, desde que a droga foi introduzida, houve notificação de vários eventos adversos relacionados ao uso do sugamadex, incluindo transtornos de coagulação.77 Raft J, Belinga JFB, Jurkolow G, et al. Clinical evaluation of post-surgical bleeding after a sugammadex injection. Ann Fr Anesth Reanim. 2011;30:714-7.

8 Tas N, Korkmaz H, Yagan O, et al. Effect of sugammadex on postoperative bleeding and coagulation parameters after septoplasty: a randomized prospective study. Med Sci Monit. 2015;21:2382-6.
-99 Moon YJ, Kim SH, Kim JW, et al. Comparison of postoperative coagulation profiles and outcome for sugammadex versus pyridostigmine in 992 living donors after living-donor hepatectomy. Medicine (Baltimore). 2018;97:e0129. Experimentos in vitro demonstraram que o sugamadex influencia os efeitos do fator Xa na via de coagulação, que então leva à inibição da conversão da protrombina em trombina.1010 De Kam PJ, Grobara P, Prohn M, et al. Effects of sugammadex on activated partial thromboplastin time and prothrombin time in healthy subjects. Int J Clin Pharmacol Ther. 2014;52:227-36. Além disso, ele pode inibir a produção do fator Xa através da via intrínseca.1010 De Kam PJ, Grobara P, Prohn M, et al. Effects of sugammadex on activated partial thromboplastin time and prothrombin time in healthy subjects. Int J Clin Pharmacol Ther. 2014;52:227-36. Em voluntários humanos, foi demonstrado que o sugamadex em dosagens de 4 mg.kg-1 e 16 mg.kg-1 levou a aumentos moderados nos níveis de protrombina e tempo de tromboplastina parcial ativada.1010 De Kam PJ, Grobara P, Prohn M, et al. Effects of sugammadex on activated partial thromboplastin time and prothrombin time in healthy subjects. Int J Clin Pharmacol Ther. 2014;52:227-36. Entretanto, o mecanismo exato desses efeitos sobre a coagulação não está totalmente compreendido.

O objetivo do presente estudo foi avaliar os efeitos do rocurônio, sugamadex e do complexo rocurônio-sugamadex sobre a coagulação em ratos.

Métodos

O protocolo e procedimentos experimentais foram aprovados pelo Comitê de Ética em Experimentos Animais da Escola de Medicina de Botucatu - Universidade Estadual de São Paulo “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).

Ratos Wistar machos (n = 28) pesando 300-500 g e fornecidos pelo Biotério Central de Botucatu (UNESP) foram incluídos no presente estudo. O cuidado dos animais no estudo foi realizado segundo o ARRIVE (Animals in Research: Reporting in Vivo Experiments, ou Animais em Pesquisa: Relatos de Experimentos In Vivo).

Grupos experimentais

Neste estudo, os animais foram aleatoriamente distribuídos nos seguintes quatro grupos (com sete animais em cada grupo): o Grupo controle não recebeu nenhuma intervenção anestésica; o Grupo Ssal recebeu administração de 0,5 mL IV de solução salina sem infusão de droga; o Grupo Sugamadex recebeu uma administração intravenosa de 100 mg.kg-1 de sugamadex (equivalente a dose humana de 16 mg.kg-1)1111 Reagan-Shaw S, Nihal M, Ahmad N. Dose translation from animal to human studies revisited. FASEB J. 2008;22:659-61. em 0,5 mL de solução salina; e o Grupo Rocurônio-Sugamadex recebeu uma administração intravenosa da combinação de 3,75 mg.kg-1 de rocurônio (equivalente à dose humana de 0,6 mg.kg-1)1111 Reagan-Shaw S, Nihal M, Ahmad N. Dose translation from animal to human studies revisited. FASEB J. 2008;22:659-61. e 100 mg.kg-1 de sugamadex (equivalente a dose humana de 16 mg.kg-1)1212 Murata T, Kubodera T, Ohbayashi M, et al. Recurarization after sugammadex following a prolonged rocuronium infusion for induced hypothermia. Can J Anaesth. 2013;60:508-9. em 0,5 mL de solução salina (fig. 1).

Figura 1
Fluxograma ilustrando o processo de seleção dos ratos Wistar.

Em todos os grupos experimentais, os ratos foram anestesiados em um recipiente fechado com um fluxo simultâneo de 2 L.min-1 oxigênio e 4% isoflurano por 5-10 minutos até que os animais ficassem inconscientes. Depois disso, a traqueia de cada um dos animais foi intubada e a anestesia foi mantida com 1,5%-3% de isoflurano em oxigênio com um fluxo de 0,4 L.min-1. Foi realizada ventilação mecânica pulmonar controlada com o ventilador Fan Rodent, modelo 683TM (Harvard Apparatus, Holliston, Estados Unidos). Foi realizada anestesia inalatória e administração de oxigênio utilizando-se a máquina de anestesia conhecida como Ohmeda Excel 210 SE™ (Datex-Ohmeda, Madison, Estados Unidos) e o vaporizador foi calibrado pelo Isotec 5, Ohmeda™ (Datex-Ohmeda, Madison, Estados Unidos).

Coleta de dados

A coleta de parâmetros hemodinâmicos e amostras de sangue foi realizada em dois momentos diferentes (tempos de amostragem): T1 foi obtido 10 minutos após o final do preparo pré-operatório e T2 foi obtido 30 minutos após os tratamentos aleatoriamente selecionados com infusões de sugamadex, sugamadex-rocurônio ou solução salina nos respectivos grupos. Amostras de tecido hepático e renal foram coletadas imediatamente após o final do experimento, quando todos os animais foram eutanasiados com anestesia inalatória profunda e injeções intra-cardíacas de 4 mL de 2,5% tiopental sódico. A equipe que coletou os dados permaneceu cega durante toda a pesquisa.

Procedimento experimental

As seguintes sequências experimentais foram realizadas: 1 - Jejum de alimentos sólidos por 2 horas com livre acesso a água; 2 - Pesagem do animal; 3 - Indução da anestesia com isoflurano 4% em recipiente fechado e ventilação espontânea por 5-10 minutos; 4 - Intubação traqueal; 5 - Colocação e fixação dos animais em um dispositivo Claude Bernard; 6 - Ventilação mecânica com um volume corrente de 8 mL.kg-1 de oxigênio e isoflurano em concentrações que foram suficientes para completar a anestesia; 7 - Disseção e canulação da veia jugular esquerda com a finalidade de hidratação (5 mL.kg-1.h-1 de solução salina administrada por bomba de infusão [fabricante Anne™]); 8 - Disseção e canulação da carótida direita para monitorização da Frequência Cardíaca (FC) e da Pressão Arterial Média (PAM); 9 - Espera de 10 minutos após o preparo pré-operatório; 10 - mensuração dos parâmetros hemodinâmicos e amostras de sangue correspondentes ao momento T1. Após a coleta de amostras de sangue arterial (2 mL), foi realizada reposição volêmica com 4 mL de solução salina intravenosa; 11 - Infusão da droga adequada nos grupos específicos, de acordo com o protocolo de estudo; 12 - Trinta (30) minutos após a infusão da droga adequada, foram medidos os mesmos parâmetros de T1, correspondendo ao momento T2; 13 - Após a coleta de amostras de sangue arterial (2 mL), foi realizada reposição volêmica com 4 mL de solução salina intravenosa; 14 - Animais eutanasiados; e 15 - Final do experimento.

Procedimentos de coleta de amostras de sangue e parâmetros

FC e PAM foram obtidas usando-se um transdutor conhecido como Datex angstrom modelo AS/3™ (Datex-Ohmeda, Madison, Estados Unidos) que foi preso à carótida e configurado para o monitoramento contínuo desses dados. Os dados do hematócrito foram obtidos via amostragem de sangue através de cateter introduzido na carótida; depois disso, o sangue coletado foi colocado em dois tubos capilares e transportado para a microcentrífuga. A contagem de plaquetas foi analisada usando-se fluorescência através de citômetro de fluxo automático (Beckman Coulter, São Paulo, Brasil). Tempo de Protrombina (TP), Tempo de Tromboplastina Parcial Ativada (PTTa) e valores de fibrinogênio foram avaliados usando o método fotométrico com um analisador automático de coagulação (MC-SMT100 V, China).

Análise estatística

O teste t de Student para duas médias independentes e nível de significância 0,05 foram usados para calcular a diferença entre variáveis. Os valores p < 0,05 foram aceitos como significantes. Todas as amostras foram analisadas usando-se o teste de Wilcoxon, que mostrou que todos os dados foram paramétricos. Os dados tiveram distribuição normal. Para as variáveis independentes, o teste-t de Student foi usado para comparar os dados.

Para os níveis de fibrinogênio que não exibiram homogeneidade das variâncias, o teste Kruskal-Wallis foi realizado ao se comparar grupos nos dois momentos, e a comparação de Wilcoxon foi usada para a comparação dos momentos em cada grupo. O nível de significância foi considerado como p < 0,05.

Resultados

Os animais no Grupo Rocurônio-Sugamadex apresentaram pesos maiores que os animais nos outros grupos. Entretanto, o peso médio permaneceu dentro dos parâmetros de inclusão predeterminado (tabela 1). Houve uma diferença estatisticamente significante entre os grupos controle e rocurônio-sugamadex (p = 0,003).

Tabela 1
Peso corporal (g)

Os valores de temperatura corporal, frequência cardíaca e pressão arterial média foram semelhantes entre todos os grupos e nos dois momentos amostrais dentro de cada grupo.

Os níveis de hematócrito foram semelhantes entre os grupos. Entretanto, os níveis de hematócrito exibiram diferenças estatisticamente significantes entre os dois momentos amostrais em todos os grupos, exceto no Grupo Sugamadex (tabela 2).

Tabela 2
Hematócrito (%)

A contagem de plaquetas foi semelhante entre os grupos e entre os momentos de amostragem dentro de cada grupo (tabela 3).

Tabela 3
Contagem de plaquetas (×103.µL-1)

Os tempos de protrombina foram semelhantes entre os grupos e entre os momentos de amostragem dentro de cada grupo (tabela 4).

Tabela 4
Tempo de protrombina (s)

Os tempos de tromboplastina parcial ativada (s) foram semelhantes entre os grupos e entre os momentos de amostragem dentro de cada grupo (tabela 5).

Tabela 5
Tempo de tromboplastina parcial ativada (s)

Houve uma redução estatisticamente significante nos níveis de fibrinogênio plasmático entre os momentos de amostragem 1 e 2 no Grupo Rocurônio-Sugamadex (p = 0,035). Não houve diferença estatisticamente significante entre os outros grupos (tabela 6).

Tabela 6
Fibrinogênio plasmático (mg.dL-1)

Discussão

O principal achado deste estudo foi a redução nos níveis de fibrinogênio plasmático entre os momentos de amostragem 1 e 2 no Grupo Rocurônio-Sugamadex.

Em todos os grupos examinados, observou-se que os pesos dos animais ficaram dentro dos parâmetros dos critérios de inclusão. Nenhum dos animais apresentou hipotermia, o que poderia influenciar os efeitos farmacodinâmicos das drogas de bloqueio neuromuscular.1212 Murata T, Kubodera T, Ohbayashi M, et al. Recurarization after sugammadex following a prolonged rocuronium infusion for induced hypothermia. Can J Anaesth. 2013;60:508-9.

A redução nos níveis de hematócrito no momento T2 poderia ser parcialmente explicada pela redução das células sanguíneas resultante dos procedimentos de coleta de amostras de sangue, seguidos por reposição volêmica com solução salina, assim levando à diluição das células sanguíneas.1313 Melo M, Dória G, Serafini M. Valores de referência hematológicos e bioquímicos de ratos (Rattus novergicus linhagem Wistar) provenientes do biotério central da Universidade Federal do Sergipe. Scientia Plena. 2012;8:1-6.

O tempo de protrombina foi usado para avaliar a via extrínseca e a via comum de coagulação (fatores de coagulação II, V, VII, X e fibrinogênio).1414 Fries D, Martini WZ. Role of fibrinogen in trauma-induced coagulopathy. Br J Anaesth. 2010;105:116-21. Conceitualmente, o tempo de protrombina aumenta em casos de deficiências de fibrinogênio ou fatores II, V, VII e X. O fibrinogênio é uma glicoproteína hexamérica que está envolvida nos estágios finais da coagulação como precursor dos monômeros de fibrina necessários para a formação do tampão plaquetário. O fibrinogênio possui alta massa molecular (número), é solúvel no plasma sanguíneo e é a enzima ativa que media a conversão de trombina em fibrina.1515 Carlos MML, de Freitas PDFS. Estudo da cascata de coagulação sangüínea e seus valores de referência. Acta Vet Bras. 2007;1:49-55.

O presente estudo demonstrou redução no fibrinogênio plasmático no Grupo Rocurônio-Sugamadex. Apesar do rebaixamento nos níveis de fibrinogênio, estes permaneceram na faixa normal, sem alterações no tempo de protrombina. A disponibilidade de fibrinogênio é regulada por meio de alterações dinâmicas na síntese e quebra, a fim de manter a função de coagulação. A deficiência de fibrinogênio pode levar a polimerização disfuncional da fibrina e pode prejudicar a hemostasia, mas os baixos níveis de fibrinogênio que foram observados neste estudo não levaram a nenhum sangramento nos preparos. Entretanto, a hemodilução, hiperfibrinólise, acidose e hipotermia podem ter resultado da redução da disponibilidade de fibrinogênio e podem, consequentemente, ter afetado o processo de coagulação.1414 Fries D, Martini WZ. Role of fibrinogen in trauma-induced coagulopathy. Br J Anaesth. 2010;105:116-21.

Como não foi encontrada nenhuma indicação de acidose, hipotermia ou hiperfibrinólise no presente estudo, presume-se que a redução de fibrinogênio ocorreu como resultado da hemodiluição, devido à reposição com solução salina do volume do sangue que foi coletado para testes laboratoriais.1313 Melo M, Dória G, Serafini M. Valores de referência hematológicos e bioquímicos de ratos (Rattus novergicus linhagem Wistar) provenientes do biotério central da Universidade Federal do Sergipe. Scientia Plena. 2012;8:1-6. Isso pode ter levado a uma discreta hemodilução que pode ter promovido a redução nos níveis de fibrinogênio. Portanto, a redução nos níveis de fibrinogênio pode ser devido aos parâmetros metodológicos do estudo e não especificamente devido às drogas examinadas.

O tempo de tromboplastina parcial corresponde ao tempo que a coagulação do plasma recalcificado leva para ocorrer na presença de cefalina. O tempo de tromboplastina parcial ativada é usado para avaliar a eficiência da via intrínseca de coagulação na mensuração da formação de coágulos de fibrina. Um tempo prolongado de tromboplastina indica que um dos fatores está apresentando um valor mais baixo que o normal, ou que há presença de inibidores, como os fatores VIII, IX, XI e XII (via intrínseca) ou fatores II, V e X (via comum).1515 Carlos MML, de Freitas PDFS. Estudo da cascata de coagulação sangüínea e seus valores de referência. Acta Vet Bras. 2007;1:49-55. O presente estudo demonstrou que o sugamadex não alterou o tempo de tromboplastina parcial ativada entre os momentos estudados; portanto, após a administração da droga, a via intrínseca de coagulação ficou preservada. Em contraste, Rahe-Meyer et al.1616 Rahe-Meyer N, Fennema H, Schulman S, et al. Effect of reversal of neuromuscular blockade with sugammadex versus usual care on bleeding risk in a randomized study of surgical patients. Anesthesiology. 2014;121:969-77. demonstraram um prolongamento transitório (< 1 hora) no tempo de tromboplastina parcial ativada após a administração de sugamadex. Podemos pressupor que essa diferença pode ser porque nosso estudo foi realizado em ratos, ao passo que a pesquisa de Rahe-Meyer et al.1616 Rahe-Meyer N, Fennema H, Schulman S, et al. Effect of reversal of neuromuscular blockade with sugammadex versus usual care on bleeding risk in a randomized study of surgical patients. Anesthesiology. 2014;121:969-77. foi realizada em humanos, e os tempos das mensurações eram diferentes. Tas et al.1717 Taş N, Yağan Ö, Noyan T, et al. Effect of low and high dose sugammadex on the coagulation and fibrinolytic system in rats. Adv Anesthesiol. 2015;2015:708915. mostraram que a administração de sugamadex em ratos não teve efeito nas mensurações de TP, PTTa e fibrinogênio, o que foi confirmado neste estudo.

Uma possível causa para o efeito do sugamadex nos vários ensaios de coagulação foi anteriormente descrito por Dirkmann et al.1818 Dirkmann D, Britten MW, Pauling H, et al. Anticoagulant effect of sugammadex: just an in vitro artifact. Anesthesiology. 2016;124:1277-85. e é explicado por um aparente efeito de ligação fosfolipídica, assim sugerindo que os efeitos anticoagulantes do sugamadex são provavelmente um artefato in vitro.1818 Dirkmann D, Britten MW, Pauling H, et al. Anticoagulant effect of sugammadex: just an in vitro artifact. Anesthesiology. 2016;124:1277-85.

Uma importante questão a ser respondida é se esses efeitos adversos são reprodutíveis em contextos clínicos com risco aumentado de sangramento no período pós-operatório. Raft et al.77 Raft J, Belinga JFB, Jurkolow G, et al. Clinical evaluation of post-surgical bleeding after a sugammadex injection. Ann Fr Anesth Reanim. 2011;30:714-7. estudaram a evolução clínica dos transtornos de coagulação pós-operatórios (reoperação para hemostasia e avaliação de sangramento em curativos) em humanos e demonstraram que o sugamadex não estava associado a taxas mais altas de sangramento. Enquanto isso, Carron1919 Carron M. Bleeding risk in surgical patients receiving sugammadex: definitive conclusions are not yet possible. Anesthesiology. 2015;123:1212. afirmou que não são possíveis conclusões definitivas ainda acerca dos riscos de sangramento em pacientes cirúrgicos que recebem sugamadex. Um estudo in vitro mais recente com voluntários saudáveis sugeriu que doses supraterapêuticas de sugamadex estavam associadas a hipocoagulação moderada no sangue total, o que pode ser confirmado por tromboelastografia.2020 Lee IO, Kim YS, Chang HW, et al. In vitro investigation of the effects of exogenous sugammadex on coagulation in orthopedic surgical patients. BMC Anesthesiol. 2018;18:56. Tal hipótese precisa ser testada e isso exigirá a coleta de dados humanos.2121 Franco NH. Animal experiments in biomedical research: a historical perspective. Animals. 2013;3:238-73.

O presente estudo teve algumas limitações. Por exemplo, devido às diferenças entre as espécies, não é possível extrapolar os resultados para humanos. Ademais, nas áreas da bioquímica clínica, hematologia e toxicologia, há variações fisiológicas consideráveis entre as espécies animais, e mesmo os resultados positivos deste estudo podem ser devido a fatores metodológicos. Não foram usados testes de viscoelasticidade neste estudo.

São necessários mais estudos clínicos não apenas para investigar a influência global do sugamadex sobre a coagulação, mas também para examinar a influência mais específica da droga em pacientes com transtornos de coagulação.

Resumo

No presente estudo com ratos, o grupo complexo Rocurônio-Sugamadex apresentou redução nos níveis de fibrinogênio plasmático entre momentos de amostragem 1 e 2 no Grupo Rocurônio-Sugamadex. Entretanto, a redução nos níveis de fibrinogênio plasmático permaneceu dentro dos limites normais e não causou sangramento. Estudos clínicos futuros são necessários para investigar os efeitos do sugamadex sobre a coagulação.

References

  • 1
    Kumar GV, Nair AP, Murthy HS, et al. Residual neuromuscular blockade affects postoperative pulmonary function. Anesthesiology. 2012;117:1234-44.
  • 2
    Baillard C. Incidence and complications of post operative residual paralysis. Ann Fr Anesth Reanim. 2009;28(Suppl. 2):S41-5.
  • 3
    Booij LH, Van Egmond J, Driessen JJ, et al. In vivo animal studies with sugammadex. Anaesthesia. 2009;64(Suppl. 1):S38-44.
  • 4
    De Boer HD, Van Egmond J, Driessen JJ, et al. A new approach to anesthesia management in myasthenia gravis: reversal of neuromuscular blockade by sugammadex. Rev Esp Anestesiol Reanim. 2010;57:181-4.
  • 5
    Yang LP, Keam SJ. Sugammadex: a review of its use in anaesthetic practice. Drugs. 2009;69:919-42.
  • 6
    Peeters PA, Van den Heuvel MW, Van Heumen E, et al. Safety, tolerability and pharmacokinetics of sugammadex using single high doses (up to 96 mg kg−1) in healthy adult subjects: a randomized, double-blind, crossover, placebo-controlled, single-centre study. Clin Drug Invest. 2010;30:867-74.
  • 7
    Raft J, Belinga JFB, Jurkolow G, et al. Clinical evaluation of post-surgical bleeding after a sugammadex injection. Ann Fr Anesth Reanim. 2011;30:714-7.
  • 8
    Tas N, Korkmaz H, Yagan O, et al. Effect of sugammadex on postoperative bleeding and coagulation parameters after septoplasty: a randomized prospective study. Med Sci Monit. 2015;21:2382-6.
  • 9
    Moon YJ, Kim SH, Kim JW, et al. Comparison of postoperative coagulation profiles and outcome for sugammadex versus pyridostigmine in 992 living donors after living-donor hepatectomy. Medicine (Baltimore). 2018;97:e0129.
  • 10
    De Kam PJ, Grobara P, Prohn M, et al. Effects of sugammadex on activated partial thromboplastin time and prothrombin time in healthy subjects. Int J Clin Pharmacol Ther. 2014;52:227-36.
  • 11
    Reagan-Shaw S, Nihal M, Ahmad N. Dose translation from animal to human studies revisited. FASEB J. 2008;22:659-61.
  • 12
    Murata T, Kubodera T, Ohbayashi M, et al. Recurarization after sugammadex following a prolonged rocuronium infusion for induced hypothermia. Can J Anaesth. 2013;60:508-9.
  • 13
    Melo M, Dória G, Serafini M. Valores de referência hematológicos e bioquímicos de ratos (Rattus novergicus linhagem Wistar) provenientes do biotério central da Universidade Federal do Sergipe. Scientia Plena. 2012;8:1-6.
  • 14
    Fries D, Martini WZ. Role of fibrinogen in trauma-induced coagulopathy. Br J Anaesth. 2010;105:116-21.
  • 15
    Carlos MML, de Freitas PDFS. Estudo da cascata de coagulação sangüínea e seus valores de referência. Acta Vet Bras. 2007;1:49-55.
  • 16
    Rahe-Meyer N, Fennema H, Schulman S, et al. Effect of reversal of neuromuscular blockade with sugammadex versus usual care on bleeding risk in a randomized study of surgical patients. Anesthesiology. 2014;121:969-77.
  • 17
    Taş N, Yağan Ö, Noyan T, et al. Effect of low and high dose sugammadex on the coagulation and fibrinolytic system in rats. Adv Anesthesiol. 2015;2015:708915.
  • 18
    Dirkmann D, Britten MW, Pauling H, et al. Anticoagulant effect of sugammadex: just an in vitro artifact. Anesthesiology. 2016;124:1277-85.
  • 19
    Carron M. Bleeding risk in surgical patients receiving sugammadex: definitive conclusions are not yet possible. Anesthesiology. 2015;123:1212.
  • 20
    Lee IO, Kim YS, Chang HW, et al. In vitro investigation of the effects of exogenous sugammadex on coagulation in orthopedic surgical patients. BMC Anesthesiol. 2018;18:56.
  • 21
    Franco NH. Animal experiments in biomedical research: a historical perspective. Animals. 2013;3:238-73.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    4 Set 2019
  • Aceito
    23 Ago 2020
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org