Acessibilidade / Reportar erro

Comércio interestadual por vias internas e integração regional no Brasil: 1943-69

Resumos

Este artigo tem dois objetivos. Primeiro, o de fornecer suporte técnico empírico à tradicional assertiva de que o Brasil ainda constituía um ''arquipélago'' de ilhas econômicas, até pelo menos o final da década de 40. Segundo, o de descrever as relações comerciais entre os estados e as regiões brasileiras nas décadas que imediatamente precederam e sucederam a fase de aceleração do processo de integração de mercados no país. O artigo mostra, utilizando quatro matrizes de comércio interestadual, que foi apenas após a efetivação de um programa nacional de construção de rodovias, nos anos 50 e 60, que o Brasil rompeu, de fato, com o estado de relativo isolamento de suas economias regionais. A impressionante expansão dos fluxos do comércio interestadual, a partir dos anos 50, evidencia a notável intensificação das articulações inter-regionais, propiciando a formação de um mercado nacional virtualmente unificado.

integração econômica; comércio inter-regional e interestadual; integração regional


This paper has two main objectives. First, to provide empirical support to the traditional assertive that Brazil still constituted an ''archipelago'' of economic islands until at least the end of the 40's. Second, to describe the commercial relationships among the Brazilian states and regions in the decades which immediately preceded and succeeded the face of acceleration in the process of market integration in the country. The paper shows, by making use of four interstate trade matrices, that only after the completion of a national program of roadways construction, in the 50's and 60's, Brazil effectively broke up the state of relative isolation of its regional economies. The impressive expansion of the internal trade flows, starting in the 50's, attests to the striking intensification of the integration process and the formation of a virtually unified national market.


Comércio interestadual por vias internas e integração regional no Brasil: 1943-69

Olímpio J. de Arroxelas Galvão

Professor do Departamento de Economia e do Pimes da UFPE e pesquiador 1 do CNPq

Sumário: 1. Introdução; 2. Os dados; 3. O comércio interno nas economias regionais: evolução e principais características (1943-69); 4. Conclusões.

Este artigo tem dois objetivos. Primeiro, o de fornecer suporte técnico empírico à tradicional assertiva de que o Brasil ainda constituía um ''arquipélago'' de ilhas econômicas, até pelo menos o final da década de 40. Segundo, o de descrever as relações comerciais entre os estados e as regiões brasileiras nas décadas que imediatamente precederam e sucederam a fase de aceleração do processo de integração de mercados no país. O artigo mostra, utilizando quatro matrizes de comércio interestadual, que foi apenas após a efetivação de um programa nacional de construção de rodovias, nos anos 50 e 60, que o Brasil rompeu, de fato, com o estado de relativo isolamento de suas economias regionais. A impressionante expansão dos fluxos do comércio interestadual, a partir dos anos 50, evidencia a notável intensificação das articulações inter-regionais, propiciando a formação de um mercado nacional virtualmente unificado.

Palavras-chave: integração econômica; comércio inter-regional e interestadual; integração regional.

Códigos JEL: R12 e F15.

ABSTRACT

This paper has two main objectives. First, to provide empirical support to the traditional assertive that Brazil still constituted an ''archipelago'' of economic islands until at least the end of the 40's. Second, to describe the commercial relationships among the Brazilian states and regions in the decades which immediately preceded and succeeded the face of acceleration in the process of market integration in the country. The paper shows, by making use of four interstate trade matrices, that only after the completion of a national program of roadways construction, in the 50's and 60's, Brazil effectively broke up the state of relative isolation of its regional economies. The impressive expansion of the internal trade flows, starting in the 50's, attests to the striking intensification of the integration process and the formation of a virtually unified national market.

1. Introdução

Este artigo apresenta evidência empírica sobre o relativo isolamento em que se encontravam as economias das regiões brasileiras antes da Segunda Guerra Mundial e sobre a notável intensificação das articulações inter-regionais que ocorreu durante e após a década de 50.

Vale ressaltar, de início, que, antes dos anos 50 - quando o transporte rodoviário se tornou o meio predominante do comércio inter-regional - a cabotagem era o único sistema de transporte de caráter verdadeiramente nacional no Brasil e, em muitos casos, a única modalidade de comunicação existente entre as regiões. Os altos custos que sempre caracterizaram a navegação costeira e fluvial, os baixos níveis de confiabilidade dessa modalidade de transporte e as severas limitações técnicas dos navios brasileiros (por exemplo, a marinha mercante era predominantemente orientada para o transporte de matérias-primas e de cargas de baixo valor por unidade de peso) tornaram a cabotagem incapaz de se tornar um instrumento eficaz para a unificação dos mercados regionais, sobretudo na fase de maior avanço no processo da industrialização brasileira. As ferrovias nacionais, por outro lado, exerceram um papel relevante no desenvolvimento de alguns estados ou regiões e, embora em grau menor, na unificação dos mercados de certas partes das economias de regiões diferentes. Todavia, as dificuldades que sempre acompanharam a implantação de vias férreas, além dos altos custos operacionais dos sistemas regionais existentes e a ausência de manutenção adequada das linhas férreas, impediram que as ferrovias no Brasil, tal como sucedeu com a cabotagem, funcionassem como um fator verdadeiramente integrador, particularmente no período mais moderno do desenvolvimento nacional.

Como conseqüência, foi apenas após a efetivação de um programa nacional de construção de rodovias nos anos 50 e 60 que o Brasil rompeu, de fato, com o estado de relativo isolamento de suas economias regionais. A impressionante expansão dos fluxos do comércio inter-regional, a partir dos anos 50, como será examinado a seguir, testemunha o notável avanço no processo da integração econômica do país e a formação de um mercado nacional virtualmente unificado.

Assim, embora as regiões brasileiras tivessem mantido importantes articulações econômicas desde épocas bem remotas, a década de 50 pode, sem dúvida, ser vista como o momento da verdadeira inflexão na história da integração regional no país.

2. Os Dados

Estudos sobre integração regional, nas linhas deste artigo, são escassos no Brasil por duas razões inter-relacionadas: a relativamente pequena importância do comércio inter-regional, até o início dos anos 50, e a ausência de levantamentos estatísticos adequados sobre os fluxos domésticos de comércio.1 1 Não há ainda um estudo compreensivo sobre integracão regional no Brasil. Singer (1974) é, talvez, o mais ambicioso trabalho, embora seu próposito seja o de discutir o crescimento econômico das cinco cidades mencionadas no título do seu livro. Castro (1969-71) dedica um curto ensaio sobre o tópico integracão, sem fazer muito uso de material empírico. Cano (1983 e 1985), ao tentar explicar por que as regiões brasileiras ficaram mais atrasadas em relacão a São Paulo, discute, na parte 2 do primeiro capítulo (1983) e no capítulo 5 (1985), aspectos importantes do processo da integracão econômica do país. Oliveira (1977a e 1977b) e Oliveira e Reichstul (1973) examinam a questão da integracão do Nordeste ao resto do país, com ênfase no período após a criacão da Sudene. Moreira (1975), também estuda o desenvolvimento do Nordeste e o seu relacionamento com a economia nacional no período pós-Sudene. Goodman e Cavalcanti (1974), trabalhando com dados da Sudene sobre comércio interestadual para o período 1960-68, oferecem, no capítulo 2, um bom estudo empírico sobre o Nordeste, também para o período pós-Sudene. Os trabalhos de Galvão (1984 e 1988) são uma tentativa exploratória de estudar a integracão regional no Brasil por uma perspectiva nacional, usando um enfoque tanto empírico quanto histórico. Guimarães (1989), em tese doutoral apresentada à Universidade de Campinas, é, talvez, o trabalho mais completo sobre a questão da integracão regional, embora restrito ao Nordeste.

Com efeito, um exame compreensivo do comércio inter-regional é impossível no Brasil para os anos anteriores à década de 40. Existem informações disponíveis sobre exportações e importações estaduais, tanto por cabotagem (desde o início do século), quanto por vias internas (desde o início da década de 30), mas tais dados não se prestam à análise do comércio inter-regional, porque o sistema de coleta empregado pelos órgãos encarregados do levantamento e apuração dos dados não especificava o destino das exportações estaduais nem a procedência de suas importações, tornando impossível a reconstituição das informações através de matrizes interestaduais de comércio. E, mesmo depois que as informações sobre o comércio dos estados passaram a ser levantadas por origem e destino das mercadorias, não é possível a reconstituição de dados relevantes em bases anuais, seja por problemas de cobertura - muitos estados importantes ficando ausentes das tabulações - seja em decorrência da descontinuidade dos levantamentos.2 2 O instrumento de coleta das estatísticas de comércio interno no Brasil era a guia de exportacão, de emissão obrigatória em todos os estados brasileiros quando da saída de mercadorias, seja dos estados para o exterior seja destes para as demais unidades da Federacão. Freqüentes mudancas na legislacão tributária nacional, quase sempre implicando modificacões no regulamento das guias de exportacão, criavam obstáculo ao sistema de coleta, acarretando paralisacões nas apuracões em vários anos posteriores a cada alteracão. Com a suspensão dos impostos interestaduais de exportacão - que se deu em vários estados em anos diferentes ao longo das décadas de 30 e 40 - foram abolidas as guias de exportacão, passando os estados a utilizarem instrumentos de coleta precários, que provocavam imperfeicões nos dados e consideráveis retardamentos na sua apuracão (Brasil, Fibge, 1973).

Por outro lado, circunstâncias políticas operaram, algumas vezes, no sentido de impedir os levantamentos dos fluxos de comércio interestadual. É interessante registrar, a propósito, que várias tentativas de implantação de um sistema nacional de coleta, de iniciativa do Poder Executivo - por inspiração dos órgãos de estatística - foram bloqueadas, em diversas oportunidades, pelo Poder Legislativo federal. Assim é que, no início dos anos 50, o Conselho Nacional de Estatística solicitou ao presidente da República providências no sentido de se instituir um sistema unificado de levantamento das estatísticas interestaduais de exportação por vias internas, com vistas à apuração dos dados do intercâmbio comercial entre os estados, segundo a origem e procedência das mercadorias, de tal modo a possibilitar, nas palavras daquele conselho, ''a apresentação da balança comercial de cada Unidade Federada" (Fibge, 1973:3). Argüia o referido conselho sobre as enormes vantagens de tal procedimento, que permitiria dar conhecimento das ''condições de produção e abastecimento das várias regiões do país, demonstrando o jogo das forças econômicas que interferem no funcionamento do sistema de mercados internos" (Fibge, 1973:4). Transformada a solicitação do Conselho Nacional de Estatística em projeto de lei, foi este remetido pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional em 1952, não sendo aprovado. Em 1954, uma nova tentativa foi igualmente rejeitada pelo Poder Legislativo (Fibge, 1973:4), o que dá a impressão de que alguns estados - especialmente os com maiores superávits nos seus balanços de comércio e que geralmente estavam ausentes das computações realizadas - não se mostravam particularmente interessados em revelar a natureza das suas relações comerciais internas.

Por essas razões, uma longa série de mais de 40 anos (com algumas interrupções) de exaustivos levantamentos sobre o comércio por vias internas realizados pelo IBGE veio a ser considerada de escasso ou nulo valor, não tendo sido até hoje utilizada por pesquisadores. Contudo, após paciente exame desses levantamentos, os dados disponíveis, após pequenos ajustamentos (a seguir especificados) permitiram a construção de duas matrizes quase completas para a década de 40: uma para o ano de 1943, que o IBGE considerava como havendo alcançado ''elevado grau de precisão e cobertura"3 3 Sobre a qualidade e abrangência dos dados da matriz de 1943, vale anotar que a Fibge dizia à p. 288 do AEB de 1946 que, no ano de 1943 ''o levantamento havia alcancado um elevado grau de precisão e cobertura" (Fibge, Anuário Estatístico do Brasil: 1941-45). e outra para 1947, um pouco menos completa, mas, mesmo assim, a melhor que pôde ser obtida nesta década e na seguinte. Como a década de 40 pode ser vista como a da gestação de um processo nacional de integração, esses dois anos oferecem evidências novas e relevantes do estado das articulações econômicas que prevaleciam entre as diferentes regiões do país, no período que imediatamente antecedeu a aceleração das transações comerciais entre os estados e a virtual unificação dos mercados regionais.

Para os propósitos deste artigo, os dados contidos nas tabelas das matrizes e nas outras tabelas estão organizados de acordo com os diversos tipos de comércio. Uma primeira classificação separa o comércio doméstico do comércio internacional e, por conta da inexistência de deflatores adequados, o crescimento do comércio interno é avaliado através da comparação com dados referentes às exportações para fora do país e importações provenientes do exterior, a preços correntes. Uma segunda classificação dos dados consiste na desagregação dos fluxos de comércio em duas grandes categorias, definidas em função do meio de transporte utilizado: comércio por cabotagem e aquele realizado por vias internas, este último compreendendo os fluxos comerciais por todos os outros meios de transporte (ferrovias, rodovias, aquavias internas - lagos e rios - e por avião). Uma classificação final leva em conta a origem e o destino dos fluxos de mercadorias, permitindo a organização dos dados em três categorias: comércio inter-regional, intra-regional e interestadual, este última compreendendo as duas primeiras categorias.

Uma separação completa de todos esses tipos de comércio, contudo, não foi sempre possível. Por exemplo, apenas para o ano de 1969 o comércio por cabotagem pôde ser apresentado com a especificação do destino estadual das exportações e a origem das importações, porque o IBGE não publicava essas informações de tal forma. Por essa razão, as matrizes anteriores à de 1969 compreendem informações relativas apenas ao comércio por vias internas.

As informações a seguir, ainda a respeito dos dados, são pertinentes. O levantamento das exportações e importações por vias internas, realizado pelo IBGE a partir de notas fiscais emitidas pelos governos dos estados, com muita freqüência, por motivos não especificados nos anuários, não trazia algumas informações sobre o total das transações de cada estado. Nas matrizes para os anos de 1943 e 1947, por exemplo, não constavam das tabelas do IBGE as exportações e importações de e para São Paulo, referentes aos estados das regiões Norte e Nordeste. Outras omissões de menor importância também podem ser percebidas, não se sabendo, porém, se decorriam da ausência do fenômeno (a inexistência de transações), como as exportações e importações relativas ao Espírito Santo, de e para alguns estados do Nordeste, ou se resultavam da impossibilidade da apuração do dado. Contudo, para os anos de 1943 e 1947, as omissões foram muito pequenas, em comparação com as observadas em todos os anos anteriores (que incluíam levantamentos desde o início dos anos 30, como já assinalado) - o que levou à escolha dessas duas matrizes e à sua denominação, pelo autor deste artigo, de matrizes ''quase completas".

Em alguns casos, e como assinalado nas notas às tabelas, pequenos ajustamentos foram realizados pelo autor, consistindo apenas na inclusão, na matriz de 1947, de dados registrados em 1943 (e em nenhum outro ano após) e que estavam omitidos na matriz de 1947. Na ausência de um critério de interpolação julgado adequado pelo autor, este procedimento, para dar maior cobertura à matriz de 1947, sem distorcer o resultado final, foi considerado o melhor, para os efeitos deste estudo.

Além dessas duas matrizes, duas outras também puderam ser construídas para a década de 60: uma para o ano de 1961, e outra para 1969 - o último ano para o qual uma matriz relevante de comércio pôde ser obtida, já que no final dos anos 70 foram inteiramente extintos pela Fibge os levantamentos referentes ao comércio por vias internas.

No que diz respeito à matriz de 1961 - a mais completa de todas na década de 60 (excluindo a de 69) -, foi esta construída a partir de um levantamento da Fibge que excluía os estados de São Paulo e de Minas Gerais nas computações. A ausência de Minas Gerais, lamentavelmente, não pôde ser evitada e esta é uma lacuna relevante dessa matriz. Mas os dados para São Paulo foram obtidos a partir de um levantamento independente realizado pelo departamento Estadual de Estatística no início dos anos 60, utilizando, porém, as mesmas fontes e a mesma metodologia da Fibge, tornando, portanto, os dados consistentes com os demais da matriz de 1961. Vale anotar, ainda, que as transações de Minas Gerais com o estado de São Paulo estão registradas nesta matriz, ficando de fora, porém, as exportações e importações mineiras relativas às demais unidades da Federação. A matriz de 1969, por sua vez, é a mais completa de todas as quatro apresentadas neste artigo e constitui o resultado da recuperação de dados não processados pela Fibge, através de projeto executado pelo Departamento de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais, no final dos anos 70. Como as fontes dos dados era a mesma das matrizes anteriores (ou seja, as notas fiscais emitidas pelos estados e em posse das secretarias da Fazenda da cada unidade federada) e como a metodologia da apuração decorreu de trabalho conjunto entre o Cedeplar e a Fibge, os resultados dessa matriz são consistentes e comparáveis com os dos anos anteriores.

Por fim, é desnecessário advertir sobre as deficiências de parte dos dados utilizados neste artigo. Todavia, a despeito das imperfeições, os dados levantados referentes ao comércio por vias internas constituem uma fonte relevante e, de certa forma, inédita de informações (à exceção da matriz de 1969), retratando de maneira bastante consistente, como se verá a seguir, as principais características do comércio inter-regional brasileiro no período considerado.

3. O Comércio Interno nas Economias Regionais: Evolução e Principais Características (1943-69)

As quatro matrizes apresentadas nas tabelas 1, 2, 3 e 4 reproduzem os fluxos interestaduais de comércio por vias internas para os anos 1943, 1947, 1961 e 1969 - aqueles para os quais, como assinalado, informações mais completas puderam ser obtidas, permitindo sua apresentação em forma matricial.

Como será visto a seguir, os dados apontam para dois importantes fatos: a reduzida significação do comércio inter-regional por vias internas ainda na década de 40 e a notável mudança que ocorreu durante e após os anos 50, tanto na magnitude quanto na natureza das relações comerciais entre as regiões brasileiras.

3.1 O comércio na década de 40

Em 1943, o comércio inter-regional de mercadorias por vias internas, como mostrado na tabela 1, alcançou o valor de Cr$3,2 milhões correntes. Esta cifra, que corresponde a tão-somente 18% do total do comércio interestadual por vias internas - cujo valor foi de Cr$17,8 milhões -, revela que a parte mais substancial do comércio interestadual, ou seja, 82% de todos os bens exportados e importados por vias internas, não ocorreu entre as diferentes regiões do país, mas entre os estados das mesmas regiões. Mesmo se levando em conta o comércio por cabotagem - que era, no período em exame, o principal meio de articulação econômica entre as regiões -, a reduzida significação quantitativa das relações inter-regionais de comércio pode ser confirmada. Assim, embora a cabotagem totalizasse, em 1943, Cr$7,3 milhões correntes, esta cifra, não obstante superior aos Cr$3,2 milhões do comércio inter-regional por vias internas, representava tão somente 29% de todo o comércio interestadual (inter + intra-regional, inclusive cabotagem). Ademais, quando se considera o fato de que uma parcela expressiva da cabotagem (cujos dados não podem ser somados aos do comércio por vias internas na tabela 1, por não se conhecer a origem e o destino dos bens, como acima explicado) era realizada dentro das fronteiras de cada região (entre São Paulo e Rio de Janeiro, e entre os estados do Nordeste, por exemplo), o quadro usualmente desenhado pelos contemporâneos brasileiros e estrangeiros dos anos 40, que retratavam o país como um imenso ''arquipélago" de ilhas econômicas relativamente isoladas, fica amplamente confirmado. Por fim, ao se comparar o que as regiões comerciavam com o exterior (Cr$8,7 milhões correntes para exportações, e Cr$6,2 milhões para importações, com o total do comércio inter-regional de Cr$3,2 milhões, conforme tabela 5), pode-se concluir que os vínculos econômicos que uniam as regiões brasileiras com o exterior, em termos de volume de comércio, eram muito mais fortes do que aqueles que uniam as regiões do país entre si.

Antes de se proceder ao exame da evolução do comércio inter-regional, cumpre ressaltar outros importantes aspectos revelados pela matriz de 1943. Examinando-se mais uma vez a tabela 1, pode-se verificar a existência de uma marcante diferenciação no tocante à natureza das articulações regionais. Constata-se, por exemplo, que tanto no Nordeste quanto no Sudeste, e em menor grau no Norte, o comércio inter-regional apresentava uma reduzida importância, em confronto com o total dos fluxos interestaduais de comércio. No Nordeste, apenas 5% das suas exportações tinham uma destinação extra-regional (ver última coluna da tabela 1), enquanto não mais que 17% de suas importações se originavam de outras regiões4 4 Os valores entre parênteses da tabela 1, bem como os das tabelas 2, 3 e 4, representam transacões realizadas entre os estados e antigos territórios da mesma região, constituindo, portanto, comércio intra-regional. (ver última linha da mesma tabela). No Sudeste, essas cifras correspondiam a 12% para exportações e 9% para importações, e no Norte os percentuais correspondentes alcançavam 38 e 48%, respectivamente. As regiões Sul e Centro-Oeste, porém, revelavam um quadro exatamente oposto: nessas duas áreas geográficas, as transações comerciais dentro do país se davam de forma predominantemente inter-regional, sendo relativamente reduzidas suas articulações intra-regionais. Nos estados do Sul, 75 e 76%, respectivamente, de todas as exportações e importações por vias internas, tinham destino e origem extra-regional, enquanto praticamente todo o comércio do Centro-Oeste (99% dos fluxos nas duas direções) era inter-regional.

Embora os dados apresentados na tabela 1 devam ser apreciados com certa cautela, não parece haver dúvida quanto ao caráter do comércio por vias internas das regiões brasileiras no início dos anos 40: predominantemente intra-regional no Nordeste, no Sudeste e, em menor escala, no Norte, e predominantemente inter-regional no Sul e no Centro-Oeste. Vale ainda ressaltar que, nesta última região, o volume de comércio intra-regional era quase nulo, de sorte que a predominância inter-regional dos fluxos comerciais sobre o total das exportações e importações fica inteiramente explicada pela quase total ausência de comunicações viárias entre os estados de Goiás e Mato Grosso. Mas no que diz respeito ao Sul, a predominância do comércio inter-regional não é explicada, como no caso do Centro-Oeste, pela reduzida importância absoluta do comércio intra-regional, tendo em vista o expressivo volume de comércio registrado entre os estados sulinos.

Um outro ponto ainda a destacar, com base nos dados apresentados na tabela 1, diz respeito aos balanços inter-regionais de comércio, os quais estão resumidos na tabela 6. Observa-se, pelo exame desses dados, que as regiões Sudeste e Nordeste apresentavam situação exatamente oposta, a primeira revelando-se superavitária e a segunda deficitária nas suas transações com todas as regiões do país. A região Sul revelava pequeno superávit com todas as regiões, exceto com o Sudeste; o Norte apresentava posição deficitária com todas as regiões, exceto o Nordeste, e o Centro-Oeste aparecia superavitário com as regiões Norte e Nordeste e deficitário com o Sul e o Sudeste. Digno de nota, ainda, é o déficit nordestino, o maior de todos os apresentados pelas regiões brasileiras, 87% do qual resultantes do seu desequilíbrio comercial com a região Sudeste.

O exame dos dados do comércio interestadual na segunda metade dos anos 40 revela um quadro que não parece ter sofrido grandes alterações, o comércio intra-regional continuando ainda a apresentar amplo predomínio sobre o intercâmbio total por vias internas. Com efeito, entre 1943 e 1947, a importância do comércio inter-regional por vias internas aumentou de 18% para tão-somente 20%, indicando, portanto, que 4/5 de todos os fluxos comerciais por vias internas ocorriam, ainda, intra-regionalmente (ver tabela 2). As exportações totais das unidades da Federação (vias internas mais cabotagem) representaram pouco mais de Cr$44 milhões correntes, dos quais Cr$27 milhões corresponderam ao comércio interestadual total por vias internas (inter-regional mais intra-regional) de modo que não mais que Cr$5,3 milhões, ou pouco menos de 20%, como antes assinalado, corresponderam ao comércio realizado entre unidades da Federação de regiões diferentes.

Os dados revelam, ainda, que o comércio por cabotagem cresceu mais rápido do que o realizado pelos demais meios de transporte, a contribuição da cabotagem aumentando de menos de 30%, em 1943, para cerca de 36%, em 1947 - refletindo, por certo, as novas circunstâncias criadas pelo final da Segunda Guerra, com a redução das restrições à navegação ao longo do litoral brasileiro trazida pela paz (ver tabelas 5 e 7 ). Ao se comparar, finalmente, o comércio das regiões com o exterior do país - que apresentou uma cifra de Cr$21,2 milhões de exportações e Cr$22,8 milhões de importações - com o comércio inter-regional por vias internas (Cr$5,3 milhões) mais o via cabotagem (Cr$15,4 milhões), fica mais uma vez patenteado que as regiões brasileiras ainda se encontravam, na entrada dos anos 50, frouxamente ''integradas" e bastante menos articuladas entre si do que com o exterior do país, pela navegação de longo curso.

Com respeito à natureza das articulações inter-regionais, mantêm-se, em 1947, as mesmas características apresentadas pelos dados de 1943, qual seja, o comércio por vias internas das regiões brasileiras assumindo os mesmos padrões de diferenciação do início da década: predominantemente intra-regional no Norte, Nordeste e Sudeste e predominantemente inter-regional no Centro-Oeste e na região Sul. Vale ressaltar, mais uma vez, a grande diferença na natureza das articulações das regiões Nordeste e Sul com o Sudeste. O Nordeste ainda apresentava tênues ligações econômicas com a região mais desenvolvida do país (considerando-se o comércio por vias internas), já que tão-somente 4% de todas as suas exportações e 14% de suas importações, respectivamente, tinham destino e origem extra-regional. A região Sul, ao contrário, mantinha em 1947, tal como já revelado no início dos anos 40, vinculações bem mais estreitas com o Sudeste, tendo em vista que 75% das suas exportações e 67% das suas importações, por vias internas, destinaram-se a e procederam de outras regiões brasileiras, principalmente o Sudeste. A seguinte comparação reforça o fato assinalado: enquanto o total do comércio por vias internas (exportações mais importações) entre o Sul e o Sudeste alcançou a cifra de Cr$3,592 milhões correntes, a cifra correspondente para o Nordeste alcançava tão-somente Cr$377 milhões (ver tabela 2).

Digno de nota é que o Nordeste, em 1947, continuou registrando o mais volumoso déficit de todas as regiões brasileiras, invertendo apenas a sua posição com respeito ao Norte, ao transformar um pequeno déficit, em 1943, em um pequeno superávit, em 1947.

As informações consideradas até então fornecem evidência suficiente para confirmar, primeiro, que o Brasil não havia, ainda, desenvolvido um mercado nacionalmente unificado por volta do final da Segunda Guerra Mundial - os reduzidos níveis de comércio inter-regional e a inexistência ou precariedade de uma rede nacional de comunicações internas servindo como indicações para este fato - e, segundo, que os obstáculos apresentados, pelas deficiências de comunicações internas, ao comércio inter-regional variavam em graus bastante distintos entre as diferentes regiões do país.

A importância deste último ponto deve ser devidamente enfatizada: enquanto as regiões Norte e Nordeste permaneciam, ainda nos anos 40, virtualmente isoladas da região mais industrializada do país por vias internas de comunicação, tanto o Centro-Oeste quanto o Sul apresentavam estreitas vinculações com o Sudeste, através de meios interiores de transporte.

O fato de o Centro-Oeste e o Sul terem apresentado, muito mais cedo do que as regiões do norte, contatos econômicos mais intensos, via meios interiores de transporte, com a região mais desenvolvida do país propicia uma rica fonte de insights para a investigação dos efeitos diferenciados dos impactos provocados pela integração regional. Deve ser feito o registro, aqui, de que a composição do comércio de mercadorias variava grandemente no Brasil em função dos meios de transporte. A cabotagem, por exemplo, concentrava-se largamente no transporte de matérias-primas e de alimentos (ver nota de rodapé da tabela 7 ). À exceção de têxteis de algodão - que eram produzidos e exportados por vários estados de diferentes regiões -, o comércio inter-regional de cabotagem, seja de manufaturados, seja de matérias-primas ou de produtos alimentares, tinha um caráter essencialmente complementar, em comparação com o comércio através de rodovias ou ferrovias. Assim, desde que o intercurso comercial das regiões Norte e Nordeste com o resto do país, até o final dos anos 40, era realizado quase que exclusivamente pela cabotagem (a rodovia Rio-Bahia entrou em tráfego em outubro de 1949 e não havia ferrovias ligando o Nordeste ao Sudeste), essas regiões permaneceram ''protegidas" da concorrência das indústrias do Sudeste por um período muito mais longo do que as outras regiões - nas quais uma fração significativa e crescente do comércio já se realizava através de meios de transporte interiores, sejam rodovias, sejam ferrovias. Conseqüentemente, as economias do Centro-Oeste e do Sul tiveram os seus mercados expostos às mais modernas e maiores indústrias do Sudeste, em período bem mais remoto do que aquelas dos estados mais ao norte do país.5 5 Foram as seguintes as datas em que se concluíram as principais ligacões ferroviárias no Brasil: São Paulo/Rio de Janeiro, em 1877; São Paulo/Minas Gerais (área do Triângulo Mineiro), entre 1888 e 1889; Rio de Janeiro/Minas Gerais, a partir de 1869; São Paulo/Mato Grosso e São Paulo/Goiás, a partir de 1905; Rio/São Paulo/Rio Grande do Sul, em 1910; São Paulo/Bahia e outros estados do Nordeste, no final dos anos 50 e início dos 60 (Matos, 1974; Azevedo, 1950; Duncan, 1932; Silva, 1949; Singer, 1974; Brasil, 1974 e 1981).

Pelo menos três implicações importantes podem ser destacadas deste fato. Em primeiro lugar, deve ser assinalado que as indústrias sulinas tiveram um período relativamente mais longo que as do Norte/Nordeste para se ajustarem às mudanças na divisão do trabalho impostas pelo processo de integração. Quando se parte do suposto plausível de que o momento zero de um processo verdadeiro de integração de mercados entre o Sul e Sudeste (principalmente no que diz respeito à indústria) se deu com a ligação ferroviária entre essas regiões (fato que ocorreu ao final da primeira década deste século), fica claro que foi lento e prolongado o processo de ajustamento, para a região Sul, permitindo, mais facilmente do que no caso do Nordeste, que as indústrias sulistas pudessem desenvolver novas linhas de produção dissimilares das do núcleo mais desenvolvido e dinâmico do país, ou complementares a este (Galvão, 1993). Em segundo lugar, deve-se levar em conta que as diferenças entre as escalas dos estabelecimentos industriais no Sul e Sudeste não eram tão grandes na época em que se iniciou o processo de integração quanto eram, por exemplo, quando se iniciou o mesmo processo, com relação às regiões Norte e Nordeste - ou seja, nos anos 50. A ausência de vantagens apreciáveis do parque industrial do Sudeste sobre o do Sul no início do processo, tem notável implicação, porque contribuiu, de forma importante, para evitar os efeitos traumáticos que costumam ocorrer quando do choque de estruturas econômicas muito dessemelhantes em escala, porém similares quanto ao perfil da oferta industrial. Finalmente, merece ênfase especial o fato de que as economias sulinas pareceram revelar uma capacidade de transformação muito maior do que a dos estados nordestinos, o que é evidenciado pelo ajustamento, em grande parte bem-sucedido, que conseguiram realizar, tanto na sua base agrícola quanto na industrial.

3.2 As mudanças no comércio doméstico nos anos 50 e depois: o fim do ''arquipélago"

Para a década de 50 não foi possível, lamentavelmente, levantar dados sobre o comércio inter-regional por vias internas. As informações disponíveis cobrem apenas alguns estados brasileiros, ficando ausentes das computações muitos estados importantes, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, de tal maneira que deixa de ter significação o uso de ''matrizes" de intercâmbio, para qualquer ano da década citada.

A indisponibilidade de informações para os anos 50 é realmente de se lamentar, em virtude de ter sido exatamente nesta década quando ocorreram as grandes transformações na economia nacional que resultaram em alterações substanciais na magnitude e na natureza do comércio interestadual e, principalmente, do inter-regional, no país.

Os anos 50, como se verá a seguir, testemunharam a aceleração do processo de integração dos mercados regionais, em decorrência tanto da instalação, no país, de uma rede de rodovias-tronco ligando todos os espaços econômicos relevantes da nação, quanto do próprio amadurecimento do capitalismo industrial brasileiro, que passou a contar, ademais, com a presença decisiva do Estado e de empresas multinacionais no setor industrial. Como tanto os estabelecimentos industriais do Estado quanto os das corporações estrangeiras claramente se dimensionaram para operar na escala nacional, era de se esperar, por conseqüência, que fosse implantada uma rede de transportes mais eficaz no país, no sentido de viabilizar a presença desses estabelecimentos em todos os mercados regionais da nação.

A inexistência de informações para a década de 50, entretanto, é parcialmente compensada pelos dados do comércio inter-regional apresentados na matriz de 1961. A relevância deste ano é bastante óbvia, pois, por se situar logo no início da década de 60, é capaz de refletir os aspectos mais relevantes das transformações ocorridas nos anos da década anterior.

Os dados coletados para 1961 estão reunidos na tabela 3. Além da necessária advertência a respeito da qualidade das informações, as seguintes observações devem ser consideradas: para alguns estados, como o Piauí, Alagoas e Mato Grosso, os dados constantes da matriz de 1961 se referem ao ano de 1962, em virtude da ausência dessas unidades da Federação nos levantamentos daquele ano - o que, todavia, não vem trazer implicações significativas nas suas posições; Minas Gerais, estado em quase todos os anos ausente das computações, ficou fora do levantamento de 1961, constituindo, sem dúvida, uma ausência relevante, dada a sua importância nos fluxos totais de comércio. Finalmente, registre-se o fato de que os dados para São Paulo não foram obtidos através das publicações da Fibge, que não assinalaram a presença dessa importante unidade da Federação. A inclusão desse estado tornou-se possível graças a um levantamento realizado pelo Departamento Estadual de Estatística, em 1962, e publicado em forma mimeografada como um apêndice ao Plano de Ação do Governo de São Paulo, naquele ano, e de onde este autor extraiu os dados constantes da tabela 3.

Cumpre assinalar, entretanto, que mesmo considerando-se as imperfeições dos levantamentos, os dados parecem revelar, de maneira consistente, as mudanças mais fundamentais que ocorreram na natureza do relacionamento entre as regiões. Observa-se, por exemplo, que houve uma considerável expansão do grau de abertura das economias regionais, os dados apontando, além de qualquer dúvida, para uma extraordinária expansão dos fluxos inter-regionais de comércio entre 1947 e 1961. Notável evidência dessa expansão é o aumento da participação do comércio inter-regional nos fluxos totais de comércio por vias internas, de tão-somente 18 e 20% em 1943 e 1947, respectivamente, para 45% em 1961. Mesmo a região Norte, que ainda se encontrava no final da década de 50 frouxamente ''integrada" à economia nacional pelo comércio interior, revela uma intensificação apreciável nas suas vinculações com o resto do país, a natureza do seu comércio passando de predominantemente intra-regional para predominantemente inter-regional.

As principais mudanças nas relações inter-regionais ocorridas ao longo da década de 50 são as descritas a seguir.

Embora o Norte tenha intensificado suas conexões com todas as regiões do país, isto foi particularmente verdadeiro com o Nordeste - para onde se destinaram mais de 55% de todas as suas exportações por vias internas - e com o Sudeste, de onde se originaram cerca de 2/3 de suas importações. No Nordeste, se bem que o comércio intra-regional ainda continuasse a predominar sobre o comércio total por vias internas, registrou-se uma notável expansão do seu grau de abertura com respeito ao resto do país, mais de 1/3 de suas exportações e cerca de metade de suas importações havendo, respectivamente, destinado-se a e procedido de outras regiões. Confrontados esses percentuais com os apresentados na década de 40 (ver tabelas 1 e 2), é de se concluir que o Nordeste, na década de 50, tornou-se largamente exposto à concorrência de outras regiões - fato que teria de trazer enormes implicações para a base econômica de uma região cujas indústrias gozavam, até então, de óbvias vantagens decorrentes de seu isolamento em relação às áreas mais produtivas e industrializadas do país.

Igualmente expressiva foi a ampliação do grau de abertura da economia dos estados do Sudeste. Esta região apresentou uma apreciável redução na participação do seu comércio intra-regional, o qual, a despeito de ter revelado crescimento bastante acentuado, registrou taxa de expansão bem inferior à do seu comércio com outras regiões. Com efeito, enquanto as exportações do Sudeste para o resto do país representavam, tanto em 1943 quanto em 1947, tão-somente 12% das exportações totais desta região por vias internas, já em 1961 essa cifra passa para 36%, indicando, portanto, um crescimento do comércio inter-regional três vezes maior do que o do comércio realizado dentro da própria região. Esta cifra não deixa de ser eloqüente por si só, quando se leva em conta que foi o Sudeste a região mais dinâmica de todo o país nos anos 50 e onde se concentrou, nesse período, a parcela majoritária dos incrementos da renda nacional.

A região Sul, assim como o Centro-Oeste, continuou apresentando os mesmos padrões revelados em décadas anteriores, com um comércio inter-regional bastante intenso, relativamente ao total do seu comércio por vias internas. Chame-se a atenção para a relativa estabilidade dos coeficientes de exportação e importação tanto da região Sul quanto do Centro-Oeste, entre 1943, 1947 e 1961, o que parece constituir um bom indicador da relevância dos dados levantados para os anos mais remotos. Essa estabilidade, é bom notar, também constitui um reforço à constatação anteriormente assinalada, de que essas duas regiões já estavam relativamente mais ''integradas" ao centro mais desenvolvido do país em épocas bem mais remotas do que as regiões Norte e Nordeste.

Digno de nota é o comportamento do comércio por cabotagem. Embora os volumes e valores transportados tenham apresentado um crescimento apreciável - a tonelagem mais que dobrou entre 1950 e 1961 -, a importância relativa da cabotagem revela uma queda drástica, o comércio por vias internas passando a predominar amplamente sobre o comércio realizado através da navegação costeira (ver tabelas 5 e 7 ). Com efeito, enquanto o comércio por cabotagem ultrapassava, em valor, cerca de 2,3 vezes em 1943 e quase três vezes em 1947, o comércio inter-regional por vias internas, em 1961 a sua participação havia se reduzido para menos de 39% desses fluxos comerciais - outra inequívoca evidência tanto da notável expansão quantitativa quanto da mudança qualitativa que ocorreram, na década de 50, nas vinculações comerciais entre as regiões brasileiras.

Evidência adicional, talvez mais definitiva, do extraordinário crescimento das articulações inter-regionais a partir dos anos 50 é encontrada confrontando-se o comércio inter-regional por vias internas e o comércio total do país com o exterior (tabela 5). Mesmo levando-se em conta as óbvias diferenças no grau de confiabilidade das informações sobre o comércio interno e o externo, este confronto mostra uma total reversão na importância relativa do comércio exterior para as regiões brasileiras. Assim, enquanto durante todos os anos 40 e, sem dúvida, também até pelo menos a primeira metade dos anos 50, as exportações do país para o exterior superavam por uma larga margem as exportações totais inter-regionais por vias internas, verifica-se no final dos anos 50 uma drástica inversão nesses fluxos, as exportações inter-regionais passando a superar, de forma ampla, os valores exportados para o exterior. Com efeito, enquanto em 1943 e 1947 as exportações brasileiras para o exterior eram, respectivamente, 2,7 e quatro vezes maiores que as exportações inter-regionais por vias internas, na entrada dos anos 60 as exportações totais para o exterior representavam tão-somente 68% dos fluxos correspondentes ao comércio inter-regional, a despeito de, no período de 1943 a 1961, as exportações nacionais para o exterior terem revelado uma notável expansão, mais que triplicando o seu valor em dólares correntes norte-americanos.6 6 Em 1943, as exportacões brasileiras para o exterior totalizaram US $466 milhões, passando esta cifra para US $1.405 milhões no ano de 1961 (Fibge, 1946 e 1962).

Um último ponto a ressaltar nos dados de 1961 diz respeito aos balanços inter-regionais de comércio, apresentados na tabela 6. Observa-se nesta tabela que, em linhas gerais, nenhuma mudança muito expressiva parece ter ocorrido nas posições finais das regiões brasileiras. O Norte continuava registrando a sua posição tradicionalmente deficitária com todas as regiões, revelando um grande déficit com o Sudeste, quase sete vezes maior que o resultante das suas transações com o Nordeste e equivalendo a cerca de 76% de seu déficit total de comércio. O Nordeste, de igual forma, mantinha situação amplamente deficitária, conseguindo realizar reduzido superávit apenas com a região Norte. Ademais, seu déficit com o Sudeste parece ter sido bastante apreciável - na verdade, mais uma vez, o maior de todas as regiões brasileiras -, representando mais de 93% do total de seu saldo negativo. Já o Sudeste consegue inverter a posição deficitária que pareceu registrar no final dos anos 40, apresentando substancial superávit com o restante do país, revelando apenas reduzido déficit com os dois estados do Centro-Oeste. A região Sul, por sua vez, continuava a apresentar saldos positivos nas suas transações comerciais com todo o país, à exceção do Sudeste, embora seus superávits com o Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste tivessem sido pequenos em relação ao déficit com o Sudeste, fazendo com que essa região apresentasse uma posição final grandemente deficitária. O Centro-Oeste, a despeito de ter registrado saldos positivos com o Norte, o Nordeste e o próprio Sudeste, apresentava um déficit bastante grande com o Sul, mais que anulando seus saldos positivos com o restante das regiões brasileiras.

O ano de 1969 é o último para o qual pôde ser obtida uma matriz completa sobre os fluxos totais do comércio interestadual. Graças a um convênio firmado entre o Iplan e o Cedeplar no início dos anos 70, foi possível a recuperação dos dados levantados, mas não processados pelos departamentos de estatística dos vários estados brasileiros, além daqueles relativos ao comércio por cabotagem - estes, agora, computados de acordo com a origem e o destino dos bens exportados e importados.

Antes de se proceder à discussão dos principais resultados da matriz de 1969, deve-se enfatizar que a comparação das informações que ela contém com os dados das matrizes anteriores confirma plenamente a validade e relevância dessas últimas matrizes. Com efeito, a despeito de suas maiores imperfeições, as matrizes de 1943, 1947 e 1961 revelam coerência e consistência quando comparadas à matriz mais completa de 1969, confirmando as características mais relevantes do comércio inter-regional e da sua evolução, no período 1943-61, conforme assinaladas anteriormente.

O primeiro aspecto a destacar, ao se chamar a atenção para a tabela 4, é o fato de que, em 1969, o comércio por vias internas alcançou predominância quase total em relação aos fluxos inter-regionais de comércio. A cabotagem, que, um pouco mais de duas décadas antes de 1969, era o meio predominante de ligação comercial entre as regiões brasileiras, reduz sua contribuição de forma drástica durante os anos 60, participando em 1969, com apenas 4,8% do comércio interestadual total e alcançando não mais que 10% dos valores relativos ao comércio inter-regional por vias internas (tabela 5). O declínio da cabotagem, por outro lado, é acompanhado por uma enorme expansão do transporte rodoviário, que passa a constituir, de longe, o principal meio de aproximação econômica entre as regiões brasileiras.

Conforme revelam os dados da tabela 4, o comércio interestadual total (vias internas mais cabotagem) atingiu, em 1969, uma cifra de Cr$34,3 bilhões, dos quais Cr$16,1 bilhões corresponderam ao comércio inter-regional e Cr$18,2 bilhões ao comércio intra-regional. Cumpre observar que o comércio inter-regional continuou se expandindo nos anos 60 a taxas superiores ao comércio intra-regional, embora tenha crescido menos do que nos anos 50 - década que evidenciou, como mostrado, taxas espetaculares de crescimento dos fluxos inter-regionais de comércio.

Os dados da tabela 4 mostram que o comércio entre as regiões brasileiras aumentou sua participação para pouco mais de 47% (comparada a 18,3, 19,7 e 44,6%, respectivamente em 1943, 1949 e 1961) - aumento certamente não tão expressivo quanto o que se registrou na década anterior, mas mesmo assim bastante significativo, levando-se em conta que a grande melhoria das comunicações internas entre os estados de cada região trouxe, de igual modo, uma enorme expansão do comércio intra-regional. Por outro lado, também é interessante observar que, mesmo com o extraordinário crescimento revelado pelo comércio inter-regional nos anos 50 e 60, ainda predominava o comércio intra-regional no Brasil, constituindo este cerca de 53% de todas as transações comerciais entre os estados brasileiros em 1969. Esta cifra reflete, inequivocamente, as grandes disparidades espaciais de desenvolvimento existentes na economia nacional, sendo uma manifestação disso o fato de quase metade de todo o comércio interestadual brasileiro ter sido realizado entre os quatro estados da região Sudeste (Cr$14,6 bilhões contra Cr$34,3 bilhões) e de o comércio intra-regional do Sudeste ter sido praticamente equivalente a todo o comércio inter-regional brasileiro (Cr$16,1 bilhões para o inter-regional e Cr$14,1 bilhões para o comércio interestadual no Sudeste). Evidência adicional da enorme concentração de atividades econômicas no território nacional é o fato de que dois estados apenas - Rio de Janeiro (na tabela 4, Rio mais Guanabara) e São Paulo - eram responsáveis por quase 81% dessa última cifra. Visto que o Sudeste constitui 10,8% do território nacional (tal cifra para o Rio mais São Paulo é de apenas 3,4%), os dados acima revelam claramente quão fortemente estavam concentrados a renda e o comércio em tão pequena área do espaço nacional.

Os dados da tabela 4 confirmam, de forma ampla, a natureza essencial das articulações regionais, já assinaladas nos anos anteriores, para os quais foi possível construir matrizes de intercâmbio. Com efeito, observa-se que, tal como em 1943, em 1947 e em 1961, o comércio nas regiões Sudeste e Nordeste, em 1969, era predominantemente intra-regional, enquanto o das regiões Centro-Oeste e Sul assumia a forma de um intercâmbio predominantemente inter-regional.

Com relação à região Norte, verifica-se uma mudança bastante expressiva na natureza das suas conexões inter-regionais. Como foi assinalado anteriormente, os dados indicaram que, tanto em 1947 quanto em 1961, era o Nordeste a região para onde se destinava a maior parcela das exportações dos estados nortistas. Em 1969, porém, os dados parecem indicar que houve uma mudança drástica na direção dos fluxos comerciais dessa região, o Sudeste tornando-se receptor de mais de 2/3 de todos os produtos de exportação da região Norte, passando o Nordeste a absorver apenas 25% das exportações nortistas. Quando se leva em conta, ainda, que mais de 70% das importações do Norte procederam do Sudeste, enquanto a participação do Nordeste foi de tão-somente 20% do total importado por aquela região, infere-se claramente que, apesar da maior proximidade entre o Nordeste e o Norte, as vinculações desta última região se tornaram muito mais intensas com o Sudeste do que com o Nordeste, uma prova, talvez inconteste, da incapacidade nordestina de disputar os mercados nortistas com outras regiões mais distantes.

A matriz de 1969 também revela a significação das relações internas de comércio para o Sudeste e o Nordeste, uma vez mais confirmando a predominância do comércio intra-regional nessas regiões, tal como ocorria no período 1943-61, já que 62 e 64%, respectivamente, de todo o seu comércio de mercadorias foram fruto do intercâmbio realizado dentro das fronteiras dos próprios estados daquelas regiões.

No que diz respeito à predominância do comércio intra-regional da região Sudeste, fica claramente constatado que os estados que compõem esta região - os mais desenvolvidos do país - transacionavam muito mais entre si do que com as demais regiões brasileiras. Quando se considera que as importações extra-regionais do Sudeste representaram, em 1969, apenas 29% de todas as suas importações interestaduais, infere-se que esta região era relativamente auto-suficiente de fontes de insumos extra-regionais (para não falar de produtos finais), embora se revelasse extremamente dependente de insumos, bens de capital e tecnologia do exterior do país.

No caso do Nordeste, a grande importância do seu comércio intra-regional decorre, de um lado, de sua histórica dificuldade de comunicações com outras regiões do país (até os anos 50), e, de outro, do fato de dispor a região, desde longas datas, de uma rede interna de transportes relativamente desenvolvida. Como uma área da nação densamente habitada e na qual largas partes de seu território são recorrentemente afetadas por severas secas e estiagens, a construção de açudes e estradas veio a constituir a principal resposta, tanto de governos estaduais quanto do federal, ao desafio de empregar os milhões de pessoas que se tornavam temporariamente destituídas de seus meios de subsistência. O resultado dessas políticas foi o de dotar o Nordeste, nas décadas anteriores à de 50, de um bom sistema de transportes interiores, constituído de muitas estradas que não teriam sido implantadas em circunstâncias normais, por falta de justificativa econômica. Assim, quando foram realizadas as ligações entre os sistemas regionais nos anos 50 e início dos 60, o Nordeste já contava com uma rede apreciável de rodovias de tráfego permanente, que certamente estava em desproporção à importância econômica da região. Essa rede de transportes, que na época do isolamento relativo do Nordeste facilitou largamente o fluxo de mercadorias entre os nove estados da região, veio também facilitar, depois da ''integração", o intercâmbio inter-regional.

Com respeito às demais regiões brasileiras, a matriz de 1969 revela, tal como já assinalado para os anos 1943, 1947 e 1961, que o Centro-Oeste e o Sul continuaram, durante a década de 60, a manter relações comerciais predominantemente com outras regiões do país. Ou seja, o seu intercâmbio comercial continuou sendo, diferentemente das regiões Norte e Nordeste, predominantemente inter-regional, e principalmente com o Sudeste da nação. Esse tipo de relacionamento dessas duas regiões com o resto do país é em parte explicado pelo fato de as suas economias apresentarem estruturas de produção relativamente diversificadas e pela presença, nelas, de um setor agrícola mais moderno e avançado tecnologicamente. Além do mais, o Centro-Oeste e, principalmente, a região Sul são grandes produtores de bens de origem primária de amplo consumo nacional - tais como o trigo, a soja, a carne, a lã, o mate, as madeiras e diversos cereais - todos eles gozando de substanciais vantagens comparativas vis-à-vis as demais regiões brasileiras, em vista da qualidade superior dos seus solos agrícolas.

Confrontando-se mais uma vez o comércio inter-regional por vias internas e o comércio do país com o exterior, verifica-se a persistência da tendência assinalada nos anos anteriores, qual seja, a de o intercâmbio doméstico entre as regiões assumir papel cada vez mais importante, relativamente ao comércio das regiões brasileiras com o exterior do país. A confirmação dessa tendência pode ser visualizada recorrendo-se mais uma vez à tabela 5, onde se constata que, enquanto o valor total das exportações inter-regionais alcançou a cifra de Cr$16,1 bilhões, o montante das exportações totais do Brasil para o exterior correspondeu a cerca de Cr$9,2 bilhões, ou seja, a não mais de 57% de todo o comércio inter-regional. E isto, é bom frisar, a despeito de as exportações para o exterior terem revelado, na segunda metade dos anos 60, uma expressiva expansão, por força, como se sabe, das políticas de incentivo governamental ao aumento do comércio exterior, implementadas a partir de 1964.

Examinando-se, por fim, as relações inter-regionais pela ótica dos balanços comerciais, apresentados na tabela 6, observam-se pequenas mudanças nas posições de algumas regiões, sem alteração, todavia, dos padrões já assinalados para os três anos anteriormente analisados.

Deve ser salientado aqui que, para o ano agora considerado, como se dispõem de informações sobre a cabotagem de acordo com a origem e o destino das exportações e importações dos estados, as relações comerciais interestaduais podem ser visualizadas na sua integridade. Isto significa dizer que os balanços comerciais, a seguir discutidos, referem-se aos fluxos totais do comércio doméstico, incluindo tanto o intercâmbio por vias internas quanto o por cabotagem, e não apenas o primeiro, como no caso das matrizes para os anos anteriores.

Tal como nos anos já analisados, as mais atrasadas regiões - Norte, Nordeste e Centro-Oeste - apresentaram, em 1969, balanços comerciais amplamente deficitários com o resto do país. Em contraste com essas regiões, o Sudeste industrializado alcançou um substancial excedente comercial com todas as regiões - exceção feita ao Sul. Todavia, este déficit do Sudeste com o Sul, embora de ordem não desprezível, não foi capaz de anular a posição favorável que aquela região obteve com as outras, e muito especialmente com o Nordeste do Brasil.

O Sul, por sua vez, além de ter conseguido um resultado positivo com o Sudeste, emerge, no final dos anos 60, como a região brasileira a revelar superávits comerciais com todas as regiões do país. O seu superávit, embora expressivo, representava menos de 21% daquele alcançado pela região Sudeste.

Digna de nota, mais uma vez, é a magnitude do déficit comercial do Nordeste. Esta região, a despeito de ter obtido saldos favoráveis tanto com os estados do Norte quanto com os do Centro-Oeste, apresentou com a região Sul, mas principalmente com o Sudeste, um déficit realmente volumoso, que chegou a superar em mais de duas vezes o valor de todas as suas exportações para o resto do país (compare-se a cifra de Cr$1,1 bilhão para o total das exportações inter-regionais do Nordeste, como pode ser visto na tabela 4, com Cr$2,3 bilhões para o déficit do Nordeste com o resto do país, como mostrado na tabela 6).

Também deve ser anotada a significação do déficit do Nordeste para com as demais regiões superavitárias do Brasil, ou seja, o Sul e o Sudeste. Uma rápida inspeção de novo na tabela 6 revela que o Nordeste funciona como um vent for surplus de apreciável importância para as duas regiões mais desenvolvidas do país, tendo em vista ter sido responsável por mais de metade de todo o excedente comercial do Sul e por mais de 2/3 do excedente que o Sudeste alcançou com todo o país: uma evidência inconteste da fragilidade da base econômica dos estados nordestinos, pelo menos até o início dos anos 70, expressa pela sua incapacidade tanto de conquistar mercados extra-regionais quanto, principalmente, de se defender contra importações competitivas de outras regiões brasileiras.

4. Conclusões

Este artigo teve dois objetivos principais: primeiro, o de fornecer suporte empírico à tradicional assertiva de que o Brasil ainda constituía um ''arquipélago" de ilhas econômicas até pelo menos o final da década de 40; segundo, o de descrever as relações comerciais entre as regiões brasileiras nas décadas que imediatamente precederam e sucederam a fase de aceleração do processo de integração de mercados.

O material empírico utilizado é fruto de um prolongado esforço de pesquisa, do qual resultou a construção de quatro matrizes sobre o comércio interestadual por vias internas, cobrindo os anos de 1943, 1947, 1961 e 1969. Enquanto a matriz de 1969 foi levantada e divulgada pelo Cedeplar no início dos anos 70, as três primeiras constituem, da forma como apresentadas, fonte inédita de informações, somente divulgadas em trabalhos anteriores do autor (Galvão, 1996, 1993, 1988 e 1984).

As principais conclusões são as apresentadas a seguir.

• Na década de 40 e princípio da de 50, o Brasil ainda não tinha uma economia ''continental". O comércio inter-regional em geral e, especialmente, o por vias internas ainda se encontravam em fase embrionária, predominando amplamente o comércio doméstico realizado entre os próprios estados de cada região.

• Em decorrência da inexistência de uma rede nacional de rodovias ou ferrovias, o comércio inter-regional era realizado majoritariamente através da cabotagem - um meio de transporte que, no país, sempre foi lento e dispendioso, e que, ademais, se restringia a conjunto limitado de bens.

• Até o final dos anos 40 e mesmo o início dos anos 50, o comércio internacional ainda superava por larga margem o comércio inter-regional, confirmando a assertiva de estudiosos contemporâneos de que as transações comerciais das regiões eram mais intensas com o exterior do país do que aquelas realizadas entre as próprias regiões brasileiras.

• A despeito de o comércio intra-regional por vias internas ser largamente predominante no país como um todo, em duas regiões - o Sul e o Centro-Oeste - o comércio interestadual por meios interiores de transporte já assumia caráter predominantemente inter-regional, em claro contraste com o que acontecia com as demais macrorregiões brasileiras. Diferenças no grau das articulações inter-regionais, assim, já eram bastante pronunciadas antes dos anos 50, sendo o Centro-Oeste e, de modo particular, o Sul muito mais articulados comercialmente com a economia dos estados do Sudeste do que eram os estados do Norte e, especialmente, os do Nordeste, com os da região mais desenvolvida do país.

• A cabotagem era (como ainda é hoje) um meio de transporte quase inteiramente voltado para o comércio de matérias-primas e de produtos alimentares, sendo bastante reduzido o comércio inter-regional de bens manufaturados. Daípoder-se concluir ter assumido o comércio inter-regional por cabotagem um caráter muito mais complementar do que competitivo, quando comparado àquele realizado por outros meios de transporte, como o ferroviário e o rodoviário, que ofereciam muito menos restrições técnicas ao transporte de produtos industrializados.

• A década de 50 testemunhou uma extraordinária expansão do comércio inter-regional (especialmente do comércio por vias internas), passando este, a partir de então, a superar, por larga e crescente margem, as exportações regionais para o exterior do país.

• A cabotagem, embora tenha continuado a se expandir em termos absolutos, passa a ter importância marginal como meio de transporte de carga, tornando-se o caminhão o veículo de transporte dominante no comércio inter-regional. Com a construção de grandes troncos rodoviários ligando todas as regiões brasileiras, foram progressivamente removidas as barreiras naturais ao comércio inter-regional, possibilitando a unificação efetiva do mercado nacional e, assim, a penetração, em todos os mercados regionais, da produção das grandes indústrias que ainda operavam em escala regional.

• O sistema unificado de transporte que emergiu nos anos 50 e que continuou se expandindo nas décadas seguintes eliminou definitivamente o isolamento em que viviam as regiões brasileiras, condição que havia prevalecido por quase quatro séculos e meio da história econômica do país.

• O processo de unificação dos mercados regionais e a emergência de uma economia de caráter continental afetaram desigualmente as várias regiões brasileiras, provocando efeitos diferenciados sobre o desenvolvimento das regiões ''periféricas". Três aspectos importantes desse processo podem ser destacados:

a) por terem o Centro-Oeste e o Sul começado, mais cedo do que o Norte e o Nordeste, a se comunicar por vias internas com o Sudeste, as suas indústrias tiveram um período mais longo para se ajustar às mudanças na divisão do trabalho impostas pelo processo de integração, do que tiveram as das regiões Norte e Nordeste;

b) por conta dessa diferença no timing do processo de integração, as diferenças entre as escalas das unidades produtivas do Centro-Oeste e, especialmente, das indústrias do Sul, bem como as do Sudeste, não eram tão grandes, na época em que se iniciou o processo de integração de mercados, quanto eram quando teve início o mesmo processo nos casos do Norte e, especialmente, do Nordeste. Este fato, se de um lado protegeu por mais tempo as indústrias regionais do Norte e Nordeste, forçou-as, por outro, a sofrer processo mais violento de ajustamento, tanto pela rapidez em que se deu a integração quanto pelas diferenças maiores de escala entre suas indústrias e as das regiões mais desenvolvidas do país;

c) finalmente, merece ênfase especial o fato de que as economias sulinas pareceram revelar uma capacidade de transformação muito maior do que a dos estados nordestinos, o que é evidenciado pelo ajustamento em grande parte bem-sucedido que aquelas conseguiram realizar, tanto na sua base agrícola quanto na industrial.

Artigo recebido em nov. 1998 e aceito em out. 1999

  • Andrade, T. A estrutura do comércio inter-regional no Brasil. Belo Horizonte, Cedeplar/UFMG, 1976. mimeog.
  • ______. Estrutura inter-regional da economia brasileira: subsídios para uma política de descentralização industrial - comércio interestadual no Brasil em 1969. Belo Horizonte, Cedeplar/UFMG, 1977. mimeog.
  • Azevedo, F. Um trem corre para o Oeste 2 ed. Săo Paulo, Melhoramentos, 1950.
  • Brasil. Ministério dos Transportes. Conselho Nacional de Transportes. Planos de viação: evolução histórica, 1808-1973 Rio de Janeiro, 1974.
  • Brasil. Geipot. Levantamento dos transportes no Brasil Brasília, 1981.
  • Cano, W. Raízes da concentraçăo industrial em Săo Paulo 2 ed. Rio de Janeiro, Difel, 1983.
  • ______. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil, 1930-1970 São Paulo, Unicamp/Global, 1985.
  • Castro, A. B. Sete ensaios sobre a economia brasileira Rio de Janeiro, Forense, 1969-71. 2v.
  • Duncan, J. S. Public and private operation of railways in Brazil New York, Columbia University Press, 1932.
  • Fibge. Anuários Estatístico do Brasil Rio de Janeiro, 1939-70.
  • ______. Comércio interestadual: exportação por vias internas. In: Encontro Nacional de Secretários de Planejamento, 5. Anais Porto Alegre, 1973. mimeog.
  • Galvăo, O. J. de A. A interaçăo regional: um estudo dos efeitos da integraçăo econômica e do comércio sobre as desigualdades regionais. In: Desigualdades regionais no desenvolvimento brasileiro Recife, Pimes/Ipea/Sudene, 1984.
  • ______. Regional development in Brazil: a study of economic integration in an unevenly developed country. London, 1988. (PhD Thesis.
  • ______. Comércio interestadual por vias internas e integração regional no Brasil. Encontro Nacional de Economia, Anpec, 21. Anais Belo Horizonte, 1993. v. 1, p. 257-79.
  • ______. Do arquipélago à economia nacional: comércio inter-regional e integração econômica no Brasil, 1943-1961. In: Congresso Brasileiro de História Econômica - ABPHE, 2. Anais Niterói, 1996. v. 2, p. 158-72.
  • Goodman, D. E. & Cavalcanti, R. C. Incentivos ŕ industrializaçăo e desenvolvimento do Nordeste Rio de Janeiro, Ipea, 1974.
  • Guimarăes Neto, L. Introduçăo ŕ formaçăo econômica do Nordeste Recife, Massangana, Fundaj, 1989.
  • Matos, O. N. Café e ferrovias: a evoluçăo ferroviária de Săo Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira Săo Paulo, Alfa-Omega, 1974.
  • Moreira, R. El proceso industrial en el Nordeste brasileńo y el proceso de acumulación de capital a scala nacional en la década del 60 Buenos Ayres, Instituto Torquato di Tella, 1975.
  • Oliveira, F. Elegia para uma re(li)giăo. Sudene, Nordeste, planejamento e conflito de classes Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977a.
  • ______. A economia da dependência imperfeita 2 ed. Rio de Janeiro, Graal, 1977b.
  • ______ & Reichstul, H. P. Mudanças na divisăo do trabalho no Brasil Săo Paulo, 1973. (Estudos Cebrap, 4.
  • Silva, M. M. P. Geografia dos transportes no Brasil Rio de Janeiro, IBGE, 1949.
  • Singer, P. Desenvolvimento econômico e evoluçăo urbana: análise da evoluçăo econômica de Săo Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife Săo Paulo, Nacional, 1974.
  • 1
    Não há ainda um estudo compreensivo sobre integracão regional no Brasil. Singer (1974) é, talvez, o mais ambicioso trabalho, embora seu próposito seja o de discutir o crescimento econômico das cinco cidades mencionadas no título do seu livro. Castro (1969-71) dedica um curto ensaio sobre o tópico integracão, sem fazer muito uso de material empírico. Cano (1983 e 1985), ao tentar explicar por que as regiões brasileiras ficaram mais atrasadas em relacão a São Paulo, discute, na parte 2 do primeiro capítulo (1983) e no capítulo 5 (1985), aspectos importantes do processo da integracão econômica do país. Oliveira (1977a e 1977b) e Oliveira e Reichstul (1973) examinam a questão da integracão do Nordeste ao resto do país, com ênfase no período após a criacão da Sudene. Moreira (1975), também estuda o desenvolvimento do Nordeste e o seu relacionamento com a economia nacional no período pós-Sudene. Goodman e Cavalcanti (1974), trabalhando com dados da Sudene sobre comércio interestadual para o período 1960-68, oferecem, no capítulo 2, um bom estudo empírico sobre o Nordeste, também para o período pós-Sudene. Os trabalhos de Galvão (1984 e 1988) são uma tentativa exploratória de estudar a integracão regional no Brasil por uma perspectiva nacional, usando um enfoque tanto empírico quanto histórico. Guimarães (1989), em tese doutoral apresentada à Universidade de Campinas, é, talvez, o trabalho mais completo sobre a questão da integracão regional, embora restrito ao Nordeste.
  • 2
    O instrumento de coleta das estatísticas de comércio interno no Brasil era a guia de exportacão, de emissão obrigatória em todos os estados brasileiros quando da saída de mercadorias, seja dos estados para o exterior seja destes para as demais unidades da Federacão. Freqüentes mudancas na legislacão tributária nacional, quase sempre implicando modificacões no regulamento das guias de exportacão, criavam obstáculo ao sistema de coleta, acarretando paralisacões nas apuracões em vários anos posteriores a cada alteracão. Com a suspensão dos impostos interestaduais de exportacão - que se deu em vários estados em anos diferentes ao longo das décadas de 30 e 40 - foram abolidas as guias de exportacão, passando os estados a utilizarem instrumentos de coleta precários, que provocavam imperfeicões nos dados e consideráveis retardamentos na sua apuracão (Brasil, Fibge, 1973).
  • 3
    Sobre a qualidade e abrangência dos dados da matriz de 1943, vale anotar que a Fibge dizia à p. 288 do AEB de 1946 que, no ano de 1943 ''o levantamento havia alcancado um elevado grau de precisão e cobertura" (Fibge,
    Anuário Estatístico do Brasil: 1941-45).
  • 4
    Os valores entre parênteses da
    tabela 1, bem como os das
    3 e
    4, representam transacões realizadas entre os estados e antigos territórios da mesma região, constituindo, portanto, comércio intra-regional.
  • 5
    Foram as seguintes as datas em que se concluíram as principais ligacões ferroviárias no Brasil: São Paulo/Rio de Janeiro, em 1877; São Paulo/Minas Gerais (área do Triângulo Mineiro), entre 1888 e 1889; Rio de Janeiro/Minas Gerais, a partir de 1869; São Paulo/Mato Grosso e São Paulo/Goiás, a partir de 1905; Rio/São Paulo/Rio Grande do Sul, em 1910; São Paulo/Bahia e outros estados do Nordeste, no final dos anos 50 e início dos 60 (Matos, 1974; Azevedo, 1950; Duncan, 1932; Silva, 1949; Singer, 1974; Brasil, 1974 e 1981).
  • 6
    Em 1943, as exportacões brasileiras para o exterior totalizaram US
    $466 milhões, passando esta cifra para US
    $1.405 milhões no ano de 1961 (Fibge, 1946 e 1962).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 1999

    Histórico

    • Aceito
      Out 1999
    • Recebido
      Nov 1998
    Fundação Getúlio Vargas Praia de Botafogo, 190 11º andar, 22253-900 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 3799-5831 , Fax: +55 21 2553-8821 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: rbe@fgv.br