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Deflação, desemprego e recuperação econômica: um modelo keynesiano

Resumos

Este artigo mostra que a hipótese de salários e preços perfeitamente flexíveis é insuficiente para garantir que o efeito oriundo de uma queda na demanda autônoma seja eliminado, ou seja, a restauração do equilíbrio original não se verifica. Um modelo keynesiano é elaborado para demonstrar que, sob tais condições, uma redução na demanda levaria a uma nova redução da demanda e, portanto, ao aprofundamento da recessão inicial. O resultado obtido sugere que o equilíbrio original pode ser restabelecido, por exemplo, por meio de um aumento dos gastos governamentais capaz de reverter a expectativa da economia, desencadeando um processo de recuperação econômica.

efeito Pigou; deflação; expectativa de preços; preferência pela liquidez; gastos governamentais


This paper reveals that the hypothesis of fully flexible prices and wages is insufficient to guarantee that the effect of a decrease in the autonomous demand could be eliminated. In other words, the return to the original equilibrium would never take place. A Keynesian model is elaborated to demonstrate that a decrease in demand induces another decrease in demand and thus increases recession. The findings indicate that the original equilibrium could be restored, for instance, by way of an increase of government expenditures which would be able to change the expectational state of economy, starting a process of recovery.


Deflação, desemprego e recuperação econômica: um modelo keynesiano* * Os autores agradecem a Jorge Cláudio Cavalcante de Oliveira Lima, Carmem Feijó, Fernando Ferrari, Gilberto Tadeu Lima e a dois referees anômimos pelos valiosos comentários que fizeram a uma versão anterior deste artigo. Valem, contudo, as observações de praxe.

João Sicsú; Helder Ferreira de Mendonça

Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF)

''Cheapness which is due to increased efficiency and skill in the arts of production is indeed a benefit. But cheapness which means the ruin of the producer is one of greatest economic disasters which can possibly occur.'' Keynes (1972:136)

Sumário: 1. Introdução; 2. O modelo: preferência pela liquidez com deflação; 3. Keynes e a deflação; 4. À guisa de conclusão: Keynes, Patinkin e Kalecki.

Este artigo mostra que a hipótese de salários e preços perfeitamente flexíveis é insuficiente para garantir que o efeito oriundo de uma queda na demanda autônoma seja eliminado, ou seja, a restauração do equilíbrio original não se verifica. Um modelo keynesiano é elaborado para demonstrar que, sob tais condições, uma redução na demanda levaria a uma nova redução da demanda e, portanto, ao aprofundamento da recessão inicial. O resultado obtido sugere que o equilíbrio original pode ser restabelecido, por exemplo, por meio de um aumento dos gastos governamentais capaz de reverter a expectativa da economia, desencadeando um processo de recuperação econômica.

Palavras-chave: efeito Pigou; deflação, expectativa de preços, preferência pela liquidez; gastos governamentais.

Códigos JEL: E12 e E31.

ABSTRACT

This paper reveals that the hypothesis of fully flexible prices and wages is insufficient to guarantee that the effect of a decrease in the autonomous demand could be eliminated. In other words, the return to the original equilibrium would never take place. A Keynesian model is elaborated to demonstrate that a decrease in demand induces another decrease in demand and thus increases recession. The findings indicate that the original equilibrium could be restored, for instance, by way of an increase of government expenditures which would be able to change the expectational state of economy, starting a process of recovery.

1. Introdução

Segundo a teoria convencional, uma economia com preços e salários plenamente flexíveis possuiria o mecanismo de convergir sua taxa corrente de (des)emprego em direção à posição original de pleno emprego (ou em direção à taxa natural de desemprego) caso houvesse algum desequilíbrio. O desemprego somente poderia ocorrer em períodos bastante curtos. Com preços e salários perfeitamente flexíveis e variando diretamente com a demanda, a convergência quase que imediata ao ponto original de equilíbrio estaria assegurada caso houvesse uma queda dos gastos privados autônomos. Tal como os clássicos, contemporâneos de Keynes, a ortodoxia dos dias de hoje afirma que esse processo de convergência está baseado no efeito-riqueza ou efeito-Pigou.1 1 Patinkin (1967), em artigo publicado originariamente em 1948 na American Economic Review, foi quem batizou o efeito descrito a seguir de efeito-Pigou. Romer (1993), expoente da nova ortodoxia, é um autor que acredita na operação restauradora desse efeito se preços e salários forem plenamente flexíveis.

Conforme a teoria ortodoxa, uma queda dos gastos privados autônomos é capaz de provocar uma redução do nível de emprego; tal redução geraria uma queda dos salários nominais; como os salários são parte dos custos, os preços também se reduziriam, embora numa proporção menor que os salários. A redução do nível de preços elevaria o estoque real da parte monetária da riqueza. Com mais recursos disponíveis, isto é, com recursos superiores às necessidades de poupança, os agentes econômicos aumentariam suas despesas. Assim, a demanda voltaria a igualar-se à oferta de bens. Nesse sentido, desequilíbrios ocorreriam, mas seriam passageiros, persistiriam somente durante o período de tempo entre a queda dos gastos autônomos e sua posterior elevação em virtude da ação do efeito-riqueza.

Neste artigo, um modelo é construído para mostrar que uma queda de demanda autônoma, que provocaria uma queda do nível de preços, teria como conseqüência um aprofundamento da recessão inicial - e não sua eliminação. Para tanto, bastaria que os agentes fossem racionais, se comportando de acordo com a teoria da preferência pela liquidez apresentada na Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Trata-se de um modelo baseado nas idéias de Keynes para mostrar, como disse Patinkin (1967:239), que ''o resultado final de se deixar o efeito Pigou operar plenamente pode ser uma espiral deflacionária desastrosa''. Em outros termos, um modelo para mostrar que, como disse Keynes (1972:128), ''nem a restrição da produção nem a redução de salários servem por si mesmas para restaurar o equilíbrio''.

O artigo busca mostrar que uma queda do nível de preços, provocada por uma diminuição da demanda, faz aumentar a preferência pela liquidez dos agentes. Um aumento da preferência pela liquidez, por sua vez, provoca uma queda de demanda. Como uma queda de demanda provoca uma redução do nível geral de preços, então, uma queda de demanda provoca um aumento da preferência pela liquidez, o que, por seu turno, provocaria uma nova redução de demanda. Tal seqüência tende a se repetir, gerando uma espiral do tipo deflação-desemprego. Assim, o resultado final de uma queda de demanda poderia ser uma profunda depressão - e não o retorno à posição original de equilíbrio de pleno emprego (ou à posição correspondente à taxa natural de desemprego). O equilíbrio original poderia ser restabelecido, por exemplo, com um aumento dos gastos governamentais capaz de reverter a expectativa da economia, desencadeando um processo de recuperação econômica.

A idéia principal desenvolvida no artigo é que, se uma economia está em uma posição qualquer de equilíbrio e sofre um choque negativo de demanda, o resultado final poderá ser o pior dos mundos, ou seja, uma profunda depressão. Mas isto ocorrerá somente se seus preços e salários forem flexíveis e variarem diretamente com a demanda e, ainda, se não houver qualquer intervenção governamental em um contexto em que os agentes se comportam de acordo com a teoria da preferência pela liquidez apresentada por Keynes na sua Teoria geral.

O tema é atual e bastante relevante. Recentemente, o periódico The Economist (em matéria reproduzida na Gazeta Mercantil de 27-10-1998) alertou: ''parece que todos estão subitamente preocupados com uma deflação global''. E concluiu que, ''se a expectativa dos consumidores é que os preços caiam, eles adiam os gastos - uma demanda mais fraca obriga, desse modo, os produtores a reduzir os preços ainda mais, ameaçando desencadear uma incômoda espiral descendente da produção e da demanda''. No entanto, The Economist reconheceu que existe uma ''coisa que impõe um limite para a queda dos preços, é que na maioria dos países, com notável exceção do Japão, é difícil abaixar os salários''. Mas, finalmente, afirmou: ''o Japão, porém, está oscilando à beira da deflação: os preços ao consumidor, os dos imóveis e os salários estão todos caindo''.

Pode-se afirmar, portanto, que o processo deflacionário que ronda algumas economias avançadas nos dias de hoje está longe da primeira possibilidade destacada na epígrafe do artigo (de autoria de Keynes), ou seja, barateza como resultado de uma maior eficiência e habilidade na arte de produzir, o que seria um benefício. A barateza do presente está mais próxima da segunda possibilidade apontada na epígrafe, ou seja, arruinamento do produtor, um dos maiores desastres que podem ocorrer.

O artigo está dividido em mais três seções. Na seção 2, apresenta-se o modelo em que uma queda inicial de preços provocada por uma redução autônoma de gastos privados levará a economia para uma profunda depressão. Além disso, mostra-se uma das políticas econômicas capazes de restaurar o nível de emprego original. Na seção 3, são discutidas as considerações de Keynes, na sua Teoria geral, acerca da deflação, à luz dos resultados obtidos pelo modelo apresentado na seção anterior. Na última seção, sumariam-se as principais conclusões do artigo, cotejando-as com as idéias de Keynes, Patinkin e Kalecki a respeito do tema em discussão.

2. O Modelo: Preferência pela Liquidez com Deflação

Considere-se uma economia em que a oferta monetária é igual à demanda por moeda, tal como descrito pela equação (1):

onde:

A demanda total por moeda está dividida em demanda transacional, demanda precaucionária e demanda especulativa, de acordo com a equação (2):

onde:

A tríade da demanda por moeda está baseada no capítulo 15 da Teoria geral. A demanda transacional é função dos gastos com bens de consumo, dos gastos com bens de capital, do nível de preços desses bens e dos gastos totais do governo, como é indicado na equação (2a):

onde:

Expressando (2a) em termos lineares, obtém-se:

onde a demanda por moeda transacional mínima () pode ser expressa por:

onde

O motivo precaução, segundo Keynes, é o estímulo para reter fundos para enfrentar despesas e/ou negócios vantajosos que são imprevisíveis. A demanda por moeda precaucionária é, assim, função do nível esperado de preços e da incerteza presente na economia. Se é esperada uma queda do nível geral de preços, o comportamento racional é a retenção de moeda, porque assim cada agente aumentaria a sua capacidade de realizar negócios mais proveitosos no futuro. Keynes argumentou, ainda, que o futuro econômico é incerto, no sentido de que não pode ser conhecido com antecedência nem ser estatisticamente prognosticado através de tábuas de probabilidades. Quando as expectativas são pessimistas (ou o grau de confiança nas expectativas é fraco), os agentes demandam segurança no presente para enfrentar o futuro incerto. Keynes mostrou que a moeda é o ativo mais seguro, aquele capaz de acalmar nossas inquietudes em relação ao futuro desconhecido e imprevisível (Keynes, 1987:116). A preferência pela liquidez, decorrente das vagas conjecturas dos agentes sobre o desconhecido, pode ser estimulada por um número significativo de argumentos: fatores políticos, climáticos e estritamente econômicos, entre outros. Em síntese, a demanda por moeda pelo motivo precaução é função do nível esperado de preços e da incerteza.2 2 Segundo Keynes, os incentivos para se reter recursos pelo motivo precaução são oriundos da incapacidade do agente de formar expectativas com elevado grau de confiança sobre o movimento futuro de determinadas variáveis; então, estariam incluídas também, entre esses motivos, ''as oportunidades não-previstas de se realizar compras vantajosas'' (Keynes, 1973:196). Assim, quando ocorre uma deflação esperada, abre-se a possibilidade incerta de os agentes realizarem bons negóçios, a preços mais baixos, no futuro. Cabe ressaltar, contudo, que não necessariamente existirão bons negócios para todos no futuro. Por exemplo, pode haver escassez dos bens desejados. Os negócios futuros é que são incertos, e não o movimento dos preços; isto justifica que a demanda precaucionária seja simultaneamente função da Y e do Pe. Esta última variável representa especificamente a possibilidade incerta de realização de bons negócios. Optou-se por representar o conjunto de argumentos geradores de incerteza pela notação Y da equação apresentada a seguir:

onde:

onde:

Yt – Yt – 1 é a variação do nível de renda entre os instantes t e t – 1.

Expressando (2b) em termos lineares, obtém-se:

A demanda por moeda especulativa é função da taxa de juros, como descrito pela seguinte equação:

onde g é uma constante positiva;

onde r é a taxa real de juros e i é a taxa nominal de juros.

Como a queda da taxa nominal de juros é proporcional à redução de preços, a atratividade dos títulos se mantém inalterada. A demanda especulativa por moeda e a demanda por títulos permanecem constantes. Utiliza-se esse artifício com o intuito de neutralizar o impactos de uma elevação real da taxa de juros sobre as decisões de investir, se a taxa nominal de juros fosse rígida e houvesse uma deflação. Adotando-se essa hipótese de rigidez dos juros reais, anulam-se os efeitos negativos das decisões de portfólio sobre o investimento em capital fixo em um contexto deflacionário. A hipótese da flexibilidade da taxa nominal de juros é menos favorável para se alcançarem os resultados sugeridos pelo modelo do que seria uma eventual hipótese de rigidez. Se prevalecesse a rigidez da taxa de juros nominal, os títulos tenderiam a se tornar cada vez mais atrativos em um processo deflacionário vis-à-vis os ativos de capital. Conseqüentemente, a rigidez da taxa de juros nominal seria mais um fator que impulsionaria a economia da recessão com deflação para a depressão.

No modelo que está sendo apresentado, portanto, o efeito-Keynes, que mostra que uma redução dos salários nominais poderia estimular o investimento, não operaria e, então, não seria capaz de recuperar a economia. Uma economia com desemprego involuntário teria uma queda de salários nominais (conseqüentemente, uma queda de preços), o que provocaria uma redução na demanda nominal transacional dos agentes, o que, dada uma oferta de moeda, reduziria a taxa real de juros (uma vez que as demais necessidades de liquidez dos agentes são consideradas satisfeitas). A redução dos juros estimularia o investimento, o que recuperaria a economia que sofreu um choque negativo de demanda. Entretanto, uma condição bastante particular tem de ser satisfeita para que o efeito-Keynes possa operar: a preferência pela liquidez dos agentes não pode ser alterada ou não pode aumentar na mesma magnitude que a redução da demanda transacional. Contudo, no modelo em apresentação, a preferência pela liquidez (expressa pela demanda precaucionária) dos agentes aumenta em função da queda do nível de preços e do aumento da incerteza: a demanda precaucionária varia na mesma magnitude que a demanda transacional, embora em sentido inverso - como será detalhado a seguir. Assim, o efeito-Keynes não pode operar porque a taxa de juros real torna-se rígida. Então, toda a atenção do modelo está voltada para as conseqüências da impossibilidade de operação do efeito-Pigou.

Substituindo (2a'), (2b') e (2c') em (2), encontra-se a equação de demanda por moeda:

Considerando-se uma economia fechada com governo, sua renda é:

onde G, que são os gastos totais do governo, é uma variável de política econômica. Os gastos correntes (Gc) não são alterados pelo governo, mas a variável gastos de capital (GK) é modificada segundo suas ações discricionárias. Segundo Keynes, o governo deveria ter esses dois orçamentos: corrente e de capital. O primeiro deveria estar sempre equilibrado e não deveria ser objeto de política econômica, enquanto o segundo deveria ser utilizado como alavanca fiscal do governo. Em virtude de possíveis hiatos, que podem ser longos, entre a decisão das autoridades de gastar e a implementação de um projeto de investimento, o governo deveria ter uma reserva de planos prontos para executar, diante do primeiro sinal de desaquecimento da economia (Carvalho, 1999:272-4).

O consumo total é função do consumo autônomo () e da renda (Y), isto é,

onde 0 < c < 1.

O investimento tem como variáveis determinantes a incerteza e o nível esperado de preços. A taxa de juros é a taxa de rendimentos esperados dos ativos líquidos; logo, poderia produzir uma rejeição dos ativos de capital vis-à-vis os ativos líquidos. Como a taxa de juros real é considerada constante no modelo (restrição estabelecida em 2c'), então somente a incerteza e o nível esperado de preços são capazes de influenciar o investimento. A incerteza, neste caso, se refere aos rendimentos esperados dos projetos de investimento. Ademais, quando os empresários esperam uma queda de preços, tendem a adiar seus investimentos expressando o aumento de sua preferência pela liquidez. Então,

podendo ser reduzida a:

Pela equação (2b) e a restrição assumida em (2c'), a equação de investimentos pode ser reescrita como:

e onde b é uma constante positiva.3 3 Está explícito em todas as equações que representam o investimento no modelo que tal variável é determinada na teoria de Keynes em processos de decisão de portfólio, isto é, que a decisão de adquirir bens de capital é tomada juntamente com a decisão de rejeitar ativos líquidos, inclusive a moeda. Esta é a abordagem feita por Keynes em sua Teoria geral; considerações na tradição keynesiana que relacionam decisões de investimento com aspectos específicos do mercado de ativos de capital podem ser encontradas em Davidson (1994, cap. 4) e em Kalecki (1965, cap. 9). O primeiro construiu um diagrama para mostrar que o estoque de capital somente será alterado positivamente quando o preço de mercado (ou de demanda) for superior ou igual ao preço de oferta dos ativos de capital, que é o preço mínimo capaz de garantir a remuneração do empresário produtor de bens de investimento e cobrir os custos da sua produção. Kalecki mostrou que haverá um hiato entre a decisão de adquirir um ativo de capital e a sua utilização, já que haverá um tempo necessário à produção dos ativos de capital – que são, em geral, produzidos sob encomenda.

Substituindo (2b'), (4a') e (4c') em (4), encontra-se:

Derivando-se a equação (5) em relação ao tempo, é obtida a equação que descreve a dinâmica da renda, ou seja:

Embora a variável que captura os argumentos geradores de incerteza (Y) esteja definida de forma independente de Pe, ambas se movem em sentidos opostos. Portanto, os impactos de suas mudanças sobre a demanda por moeda são convergentes: quando cai (sobe) Pe, cresce (decresce) Y; desta forma, ambas derrubam (elevam) a renda. A rigor, há uma ligação entre o movimento de ambas e, formalmente, isto poderia justificar o estabelecimento de uma dependência funcional entre elas, bem como introduzir apenas uma delas nos argumentos. As duas variáveis atuam dinamicamente para cima ou para baixo sobre a renda. Assim, pode-se ocultar o termo Y e simplificar a equação (6) sem qualquer prejuízo para a análise, como a seguir:

O que foi dito até aqui, expresso de forma sintética pelas equações (6) e (6a), pode ser entendido com o auxílio da figura 1. Na ausência de variações nos gastos governamentais ( = 0), uma queda da renda (em razão de uma queda autônoma do investimento) reduz o consumo, gerando expectativas de queda do nível de preços e aumento da incerteza. O aumento da incerteza e as expectativas de queda de preços fazem aumentar a demanda por moeda pelo motivo precaução. Por outro lado, a redução do nível de preços provoca uma redução na demanda transacional por moeda, reforçando o aumento da demanda precaucionária, tendo por conseqüência uma redução do investimento. Por conseguinte, há uma queda no nível de renda. Nesse sentido, o processo se realimenta: uma queda autônoma no nível de investimento é capaz de dar início a um processo de queda contínua do nível de renda.


Conforme pode ser observado na figura 1, a demanda por moeda precaucionária, que é a expressão da preferência pela liquidez dos agentes, desempenha papel fundamental na determinação da renda. A preferência pela liquidez tem um significado muito preciso na teoria de Keynes: a preferência pela liquidez não é revelada simplesmente pela quantidade de moeda retida, mas é, acima de tudo, revelada através da forma como recursos líquidos são retidos.4 4 Para uma discussão detalhada sobre esse aspecto da teoria da preferência pela liquidez de Keynes, ver Carvalho (1998). Nesse sentido é que a demanda precaucionária é reveladora da preferência pela liquidez dos agentes. Cabe ressaltar que no modelo aqui apresentado a quantidade total de moeda demandada é constante, possui a mesma magnitude da oferta, embora a preferência pela liquidez se altere em função da expectativa dos agentes. Pode-se dizer, então, que a preferência pela liquidez dos agentes estabelece dois casos limites para o nível de renda no modelo:

a) Caso 1:

b) Caso 2:

onde q = MS - ( + ).

Esses dois casos representam, respectivamente, o teto e o piso do nível de renda dessa economia. Já que a taxa de juros real e a oferta de moeda permanecem constantes, deve-se deixar claro que o modelo está baseado em um efeito crowding out entre as demandas monetárias transacional e precaucionária, pois a demanda especulativa permanece inalterada. Pode-se supor que o banco central possui uma meta de taxa de juros real, o que impõe uma redução (elevação) da taxa nominal durante os episódios deflacionários (inflacionários). A demanda especulativa por moeda é, então, constante porque o banco central possui uma meta de taxa de juros real que é sempre alcançada.

A figura 2 descreve, na fase I, a trajetória da renda quando a demanda precaucionária tende a zero, o caso-limite 1. A fase II terá início se esta economia sofrer uma queda autônoma do investimento, que provocará uma queda contínua (a taxas crescentes) da renda até o limite representado pelo caso 2. Nesta fase, a demanda por moeda transacional diminuirá na mesma magnitude em que a demanda precaucionária aumentará. Há, assim, um aumento da preferência pela liquidez. Em síntese, a fase II representa um período com espiral do tipo deflação-desemprego. Cabe destacar que a passagem da fase I para a fase II ocorre se, e somente se, houver a referida queda autônoma do investimento. Caso contrário, a economia manteria sua trajetória sobre o caso-limite 1.


Na ausência de qualquer alteração dos gastos autônomos, a economia sairia da fase II e adentraria a fase III, uma situação de depressão. Uma fase de plena preferência pela liquidez representada pelo caso-limite 2. Na situação de depressão não se deve esperar que haja uma elevação autônoma do investimento, pois a incerteza é bastante elevada. Portanto, a fase IV terá início se, e somente se, o governo aumentar seus gastos (representados pela variável de política G), iniciando um processo de recuperação do nível de renda, que crescerá continuamente (a taxas crescentes) até o limite representado pelo caso 1, em que a economia penetraria na fase V. Durante a fase IV, a demanda por moeda transacional aumentaria na mesma magnitude em que a demanda precaucionária diminuiria, revelando uma redução na preferência pela liquidez. Ao contrário da fase II, esta é uma fase com espiral do tipo inflação-emprego. A fase V mostra a trajetória da renda, após a fase IV ter sido completada, no caso-limite 1, equivalente à fase I.

A análise formal de cada fase é apresentada a seguir.

• Análise das fases de renda constante: I, III e V

Dado que (ver equação 2b), e que as diferenças Yt0-Y0, Yt2- Yt1 e Yt4-Yt3 (que representam respectivamente as fases I, III e V) são iguais a zero, e ainda que = 0, isto implica que Pt0 = P0, Pt2 = Pt1 e Pt4 = Pt3, o que, por conseguinte, acarreta que e = 0. Então, de acordo com a equação (6a), tem-se que = 0 para os intervalos (0, t0), (t1, t2) e (t3, t4).

• Análise da fase de renda decrescente: II

Considerando-se que = 0 e que ocorre um choque negativo de demanda agregada, ou seja, Yt < Yt–1 ou Yt –Yt–1 < 0, verifica-se que < Pt–1"t Þe < 0, o que, por sua vez, denota, por intermédio da equação (6a), que |t0, t1 < 0. Portanto, é uma função decrescente no intervalo (t0, t1).

Ademais, adota-se a hipótese de que os agentes esperam que a queda nos preços seja cada vez maior. Assim, a equação (6a) permite observar que

O que implica que é uma função cuja concavidade é voltada para baixo nesta fase.

• Análise da fase de renda crescente: IV

Fazendo-se uso da equação (5),5 5 A equação (5), que mostra a composição do produto em um determinado instante, foi utilizada porque por meio dela é possível observar que um aumento nos gastos governamentais, mantido tudo o mais constante, implica um aumento da renda para o instante seguinte. Assim, observa-se que um único aumento dos gastos é capaz de gerar uma expectativa de preços crescentes ao longo do tempo, o que permite utilizar a equação (6a), tal como realizado na fase II, para explicar a trajetória da renda na fase IV. reapresentada a seguir,

e admitindo-se que em t–1 o governo realizou uma variação positiva dos seus gastos, então, DG > 0 Þ Yt > Yt–1. Assim, de forma análoga ao que foi demonstrado na fase II, observa-se que > Pt–1"t Þe > 0. Destarte, t2, t3 > 0. Logo, é uma função crescente no intervalo (t2, t3).

Outrossim, é admitido que, devido ao gasto adicional do governo e conseqüente aumento da renda, os agentes esperam que os preços continuem crescendo. Desse modo, a equação (6a) implica que

Por conseguinte, é uma função cuja concavidade é voltada para cima na fase IV.

Para concluir esta seção, pode-se afirmar que pode ser desastroso o resultado final de se esperar que o efeito-riqueza opere em uma economia com preços e salários perfeitamente flexíveis e em que o agentes têm preferência pela liquidez. Isto é representado pelo processo recessivo descrito pela fase II e o estacionamento da economia numa posição de profunda depressão, a fase III. É importante dizer que um governo não necessita esperar a economia adentrar a fase III para somente aí começar a agir com suas políticas fiscais. Certamente, uma ação governamental quando a economia apresentasse seus primeiros sinais recessivos diminuiria as oscilações da renda, impedindo a economia de atingir o caso-limite 2. Em economias com essas características, a política fiscal seria um importante instrumento estabilizador de expectativas, do nível de preços e do produto.6 6 Recentemente, o Financial Times (em matéria reproduzida na Gazeta Mercantil de 27-10-1998) elogiou a intenção do governo francês de aumentar seus gastos, o que provocaria uma quebra da meta de déficit estabelecida no Tratado de Maastricht. Clamando por políticas fiscais expansionistas, o Financial Times afirmou: ''a economia mundial vai mal e precisa de toda a ajuda possível. Uma política fiscal mais frouxa para incentivar a produção (...) é bem-vinda''. E concluiu: ''o que importa para uma economia mundial que cresce em ritmo cada vez mais lento não é o não cumprimento de uma meta''.

Diante do aparecimento de problemas que poderiam levar a economia a uma recessão, Keynes sempre foi favorável à intervenção governamental quando os primeiros sinais expectacionais negativos começassem a emergir. Segundo ele, ''o remédio seria, mais propriamente, controlar o padrão de valor de tal maneira que quando ocorresse alguma coisa que, deixada a si mesma, criaria uma expectativa de mudança no nível geral de preços, a autoridade controladora deveria caminhar para contra-atacar essa expectativa pela colocação em movimento de algum fator de tendência contrária. Mesmo se tal política não fosse inteiramente bem-sucedida, seja em contra-atacar expectativas, seja em evitar movimentos reais, seria um progresso em relação à política de nada fazer, porque um padrão de valor governado pela sorte do acaso e deliberadamente fora do controle central gera expectativas que paralisam ou intoxicam o rumo da produção'' (Keynes, 1972:74).

3. Keynes e a Deflação

Na perspectiva da Teoria geral de Keynes, uma importante questão a ser respondida consiste em saber se uma queda dos preços eliminaria a insuficiência de demanda no mercado de bens. Em outras palavras, qual o efeito de uma queda dos preços sobre os determinantes dos gastos privados (que são a propensão a consumir, a taxa de juros e a incerteza em relação aos rendimentos esperados do capital)? Esta seria a pergunta precisa, uma vez que o gasto privado, segundo o modelo descrito na Teoria geral, é função inversa da incerteza em relação aos rendimentos esperados dos ativos de capital, inversa da taxa de juros e direta da propensão a consumir da sociedade. Como o objetivo desta seção é comparar os resultados do modelo apresentado anteriormente com o modelo da Teoria geral, cabe discutir, dada a restrição estabelecida em (2c'), apenas os efeitos sobre a incerteza e sobre a propensão a consumir decorrentes de uma queda de preços.7 7 Para uma análise dos efeitos de uma queda de preços sobre a taxa de juros no modelo de Keynes, ver Sicsú (1999).

3.1 Sobre a incerteza dos rendimentos esperados do capital

Para Keynes, uma queda dos salários nominais acompanhada de uma queda de preços teria, em princípio, um efeito positivo sobre os rendimentos esperados dos ativos de capital. O preço desses ativos se reduziria, gerando uma redução da incerteza relativa aos rendimentos esperados do capital, o que é um estímulo ao investimento. Contudo, isto somente ocorreria se houvesse a formação de expectativas de que no futuro haveria um novo aumento de salários e preços, o que, por sua vez, estimularia o surgimento de expectativas de que haveria um aumento dos preços dos ativos de capital no futuro. Assim, haveria uma antecipação das decisões de investir, porque os empresários pagariam um preço supostamente menor pelos ativos de capital em relação ao preço esperado. Entretanto, o modelo apresentado na seção anterior mostrou que as expectativas não seriam do tipo sugerido por Keynes. As expectativas seriam, pelo contrário, de que haveria uma continuidade da queda do nível de preços e da renda (equações 6 e 6a e figura 1).

Keynes, contudo, alertou que uma queda de preços poderia suscitar expectativas de que haveria novas quedas futuras (Keynes, 1973:263). Dessa forma, haveria o adiamento das decisões de investir porque os empresários não estariam dispostos a comprar ativos de capital por um preço mais alto do que comprariam no futuro, quando supostamente ocorresse a queda esperada que reduziria todos os preços - inclusive os dos bens de capital. Logo, uma simples queda de preços e salários poderia não provocar um aumento de gastos via redução da incerteza em relação aos rendimentos esperados dos ativos de capital. Esse alerta de Keynes está totalmente de acordo com o modelo apresentado na seção 2.

3.2 Sobre o comportamento da propensão a consumir da comunidade

Uma queda dos salários reais decorrente de uma redução dos salários nominais e de uma diminuição em menor proporção dos preços provocaria uma transferência de renda real dos trabalhadores para os demais agentes da economia. Supondo-se que os trabalhadores possuem uma alta propensão a consumir (aproximadamente 1), esse rearranjo distributivo reduziria a propensão a consumir da comunidade. Logo, os gastos totais de consumo seriam menores. Portanto, uma queda de preços e salários provocaria uma diminuição dos gastos via redução da propensão a consumir da comunidade. Esses foram os argumentos de Keynes para mostrar a influência de uma deflação sobre a variação da propensão a consumir da comunidade e, desta, sobre a renda. O modelo apresentado na seção 2 obtém o mesmo resultado de Keynes em sua Teoria geral, embora tenha-se considerado outra estrutura causal. No modelo elaborado, considerou-se constante a propensão a consumir da comunidade; é a queda de preços esperada que provoca uma redução da renda (equações 6 e 6a), sendo este o elemento responsável pela diminuição do consumo total.

No modelo de Keynes, a queda dos preços e salários somente seria capaz de restaurar o produto de pleno emprego em uma situação extremamente peculiar: quando tal queda formasse expectativas de que haveria uma reversão do movimento dessas variáveis e que as decisões de investimento daí decorrentes compensassem a redução de gastos de consumo decorrente da diminuição da propensão a consumir da comunidade: somente sob essa circunstância específica é que os gastos privados aumentariam. Dado que a situação descrita é extremamente particular, Keynes não demonstrou qualquer confiança na sua ocorrência. Mostrou, conseqüentemente, que a inexistência de falhas de mercado (rigidez de preços e salários) não é condição necessária nem suficiente para a economia alcançar o pleno emprego automaticamente.

Embora Keynes tenha concebido um modelo em que as variáveis preços e salários eram plenamente flexíveis, não aceitou que essa flexibilidade pudesse restaurar o equilíbrio dos mercados. Portanto, a causa da insuficiência de demanda no mercado de bens e do desemprego involuntário não foi atribuída a falhas de mercado. Em outras palavras, o desemprego não persiste em função da rigidez de variáveis. Sua causa, segundo Keynes, são as expectativas que inibem as decisões de gastos privados. Assim, a economia capitalista não possui forças endógenas de convergência em direção à posição de pleno emprego. O modelo apresentado neste artigo mostra que, muito pelo contrário, estabelecida uma série de parâmetros comportamentais e processos quanto às expectativas, a economia capitalista poderia conter forças endógenas divergentes da posição de pleno emprego, se preços e salários forem flexíveis.

4. À guisa de conclusão: Keynes, Patinkin e Kalecki

Kalecki (1944) também se mostrou cético em relação às forças restauradoras do emprego descritas pelo efeito-Pigou. Argumentou que uma queda de preços poderia abalar drasticamente as finanças dos devedores, deprimir o valor de ativos não-monetários componentes da riqueza (ouro, casas, por exemplo) e, conseqüentemente, piorar o estado de confiança dos empresários, desestimulando-os ao gasto. Patinkin também já havia suspeitado que as forças restauradoras do efeito-Pigou poderiam não funcionar. Contudo, segundo ele, o argumento a favor do efeito-riqueza é que ''existe sempre um nível de preços suficientemente baixo que (...) gerará pleno emprego" o que chamou de teorema-Pigou (Patinkin, 1967:236).

Patinkin procurou atenuar as críticas feitas por Kalecki à operação do efeito-Pigou. Afirmou que, no modelo de Pigou, os efeitos distributivos de uma queda de preços são nulos porque as perdas de um segmento são compensadas pelos ganhos de outro. As compensações poderiam ocorrer também no interior dos portfólios das famílias: quedas no valor real dos ativos não-monetários poderiam ser mais do que compensadas por uma elevação em uma proporção maior dos ativos monetários, o que acabaria por estimular gastos. Neste ponto, aplica-se o argumento do teorema-Pigou, isto é, a queda de preços desvaloriza ativos reais, mas este declínio é estimulante de gastos, porque valoriza consideravelmente ativos monetários.

Diferentemente de Patinkin, Keynes não acreditava na neutralidade dos efeitos redistributivos de uma variação dos preços sobre a dinâmica da economia. Enquanto Patinkin, baseado no teorema-Pigou, concluiu que redistribuições poderiam estimular gastos, Keynes argumentou que suas conseqüências poderiam ser o desapontamento, o desânimo e a paralisia. Ele afirmou: ''quando muda o valor da moeda, não muda igualmente para todas as pessoas ou para todos os propósitos'' (Keynes, 1972:59, grifo do autor). Por exemplo, aqueles que se endividaram com o propósito de gastar em ativos tangíveis, com a chegada de um processo deflacionário, realizariam gastos reais menores e suas dívidas reais aumentariam. E nada garante que os ganhos reais dos credores, devido a queda de preços, seriam transformados em gastos com ativos tangíveis, que era o propósito dos devedores. Portanto, a redução de gastos dos devedores pode desaquecer a demanda da economia. Nas palavaras de Keynes, ''uma mudança em preços e ganhos, quando medida em moeda, geralmente afeta diferentes classes desigualmente, transfere riqueza de uma para outra, produz aqui a abundância e ali a necessidade, e redistribui os favores da Fortuna de forma que frustra intenções e desaponta expectativas (Keynes, 1972:59, grifo do autor).8 8 É importante notar que, muito embora Keynes tenha argumentado sobre as possibilidades de predomínio de um ambiente de desânimo e desapontamento como conseqüência de um processo redistributivo, segundo ele, a causa mais fundamental que poderia levar a economia para essa situação seria uma variação positiva de preços, uma inflação, e não uma variação negativa de preços, uma deflação. Em duas passagens do seu Essays in persuasion, suas palavras são precisas sobre o tema. A primeira: ''cada processo, tanto a inflação quanto a deflação, provocou grandes danos. Cada uma tem um efeito em alterar a distribuição de riqueza entre diferentes classes; a inflação nesse aspecto é a pior das duas. Cada uma também tem um efeito em superestimular ou retardar a produção de riqueza, embora aqui a deflação seja a mais danosa'' (Keynes, 1972:60, destaque do autor). Na outra passagem, Keynes afirmou: ''a inflação é injusta e a deflação é inconveniente. Das duas, talvez a deflação seja, se nós desconsideramos inflações exageradas tais como aquela da Alemanha [de 1923/24], a pior; porque é pior, em um mundo empobrecido, provocar desemprego do que desapontar o rentier. Mas não é necessário compararmos um mal com o outro. É necessário reconhecer que ambos

Por fim, Patinkin reconheceu implicitamente que Keynes e Kalecki estavam corretos, quando afirmou que o interesse de Pigou era meramente intelectual, voltado para uma análise puramente estática, não-realística. Para apoiar sua conclusão, citou uma passagem de um texto de Pigou: ''os problemas que temos considerado (...) são exercícios acadêmicos, talvez com alguma utilidade para clarear idéias, porém com muito pouca chance de vir a se prestar para uma confrontação com a vida real'' (Patinkin, 1967:237). Em suma, Patinkin concluiu que o teorema-Pigou não é útil para uma análise dinâmica, isto é, para uma análise do mundo real.

Patinkin argumentou que, em um contexto dinâmico, uma queda de preços poderia efetivamente estimular expectativas de novas quedas; assim, os agentes adiariam seus planos de gastos, em vez de realizá-los de imediato. Nesse contexto, os agentes poderiam ser estimulados a aumentar sua riqueza real monetária - e não a aumentar de imediato a quantidade de bens que possuem. Como reconheceu Patinkin, este é o ponto, em que Keynes tanto insistiu. Nas palavras de Patinkin (1967:239), ''a incerteza criada pela queda de preços poderá fazer com que as pessoas acumulem indefinidamente maiores encaixes reais, aumentem muito pouco os seus gastos, se é que aumentam. (...) Assim, à medida que a queda de preços ocorre, as expectativas acerca do futuro se tornarão piores progressivamente e as incertezas aumentarão ainda mais''.

Em 1923, muito antes destas conclusões de Patinkin, publicadas originariamente em 1948, Keynes já havia afirmado que uma queda esperada de preços poderia ter como resultado a paralisação da produção e a queda do nível de emprego. Nas palavras de Keynes: ''um medo generalizado de uma queda de preços pode inibir todo o processo produtivo. Pois se preços são esperados cair, não serão encontrados tomadores-de-risco que estejam desejosos de manter uma posição de bull, isso significa que empresários estarão relutantes em se envolver em processos produtivos de longa duração que impliquem um adiantamento de recursos bastante anterior ao reembolso - então o desemprego. O fato da queda de preços prejudica os empresários; conseqüentemente, o medo de queda dos preços os leva a protegerem-se pelo corte de suas operações; e é do agregado de suas estimativas de risco que as atividades de produção e do emprego principalmente dependem''.

Em resumo, o modelo descrito neste artigo buscou formalizar as idéias embrionariamente elaboradas por Keynes e, posteriormente, lapidadas por Patinkin, as quais tentavam mostrar que uma deflação, em contextos em que os agentes se comportam de acordo com a teoria da preferência pela liquidez, não garante a recuperação da economia diante de uma queda autônoma dos gastos privados. A partir dessas idéias é possível, inclusive, afirmar que, sob certas condições, os processos econômicos seriam endogenamente divergentes da posição de pleno emprego. Foi por este motivo que Keynes (1972:67) afirmou: ''não é seguro nem justo combinar a organização social desenvolvida durante o século XIX (e ainda mantida) com uma política de laissez-faire em relação ao valor da moeda''.

Artigo recebido em abr. 1999 e aprovado em maio 2000

  • Carvalho, F. Cardim de. On bank's liquidity preference. In: International Seminar on Post Keynesian Economics, 5. Proceedings Knoxville, 1998.
  • ________. Políticas econômicas para economias monetárias. In: Lima, G. T.; Sicsú, J. & De Paula, L. F. Macroeconomia moderna: Keynes e a economia contemporânea Rio de Janeiro, Campus, 1999.
  • Davidson, P. Post-Keynesian macroecnomic theory Cheltenhan, Edward Elgar, 1994.
  • Kalecki, M. Professor Pigou on the Classical Stationary State - a comment. Economic Journal, 54, Apr. 1944.
  • ________. Theory of economic dynamics London, George Allen & Unwin, 1965.
  • Keynes, J. Essays in persuasion London, MacMillan, 1972.
  • ________. The general theory of employment, interest and money London, MacMillan, 1973.
  • ________. The general theory and after London, MacMillan, 1987. (Part 2, Defence and development.
  • Patinkin, D. Price flexibility and full employment. In: Mueller, M. G. (ed.). Readings in macroeconomics New York, Holt, Rinehart and Winston, 1967.
  • Romer, D. The new Keynesian synthesis. Journal of Economic Perspectives, 7(1), Winter 1993. p. 5-22.
  • Sicsú, J. Keynes e os novos-keynesianos. Revista de Economia Política, 19(2):84-105, abr./jun. 1990.
  • *
    Os autores agradecem a Jorge Cláudio Cavalcante de Oliveira Lima, Carmem Feijó, Fernando Ferrari, Gilberto Tadeu Lima e a dois referees anômimos pelos valiosos comentários que fizeram a uma versão anterior deste artigo. Valem, contudo, as observações de praxe.
  • 1
    Patinkin (1967), em artigo publicado originariamente em 1948 na American Economic Review, foi quem batizou o efeito descrito a seguir de efeito-Pigou. Romer (1993), expoente da nova ortodoxia, é um autor que acredita na operação restauradora desse efeito se preços e salários forem plenamente flexíveis.
  • 2
    Segundo Keynes, os incentivos para se reter recursos pelo motivo precaução são oriundos da incapacidade do agente de formar expectativas com elevado grau de confiança sobre o movimento futuro de determinadas variáveis; então, estariam incluídas também, entre esses motivos, ''as oportunidades não-previstas de se realizar compras vantajosas'' (Keynes, 1973:196). Assim, quando ocorre uma deflação esperada, abre-se a possibilidade incerta de os agentes realizarem bons negóçios, a preços mais baixos, no futuro. Cabe ressaltar, contudo, que não necessariamente existirão bons negócios para todos no futuro. Por exemplo, pode haver escassez dos bens desejados. Os negócios futuros é que são incertos, e não o movimento dos preços; isto justifica que a demanda precaucionária seja simultaneamente função da Y
    e do Pe. Esta última variável representa especificamente a possibilidade incerta de realização de bons negócios.
  • 3
    Está explícito em todas as equações que representam o investimento no modelo que tal variável é determinada na teoria de Keynes em processos de decisão de portfólio, isto é, que a decisão de adquirir bens de capital é tomada juntamente com a decisão de rejeitar ativos líquidos, inclusive a moeda. Esta é a abordagem feita por Keynes em sua Teoria geral; considerações na tradição keynesiana que relacionam decisões de investimento com aspectos específicos do mercado de ativos de capital podem ser encontradas em Davidson (1994, cap. 4) e em Kalecki (1965, cap. 9). O primeiro construiu um diagrama para mostrar que o estoque de capital somente será alterado positivamente quando o preço de mercado (ou de demanda) for superior ou igual ao preço de oferta dos ativos de capital, que é o preço mínimo capaz de garantir a remuneração do empresário produtor de bens de investimento e cobrir os custos da sua produção. Kalecki mostrou que haverá um hiato entre a decisão de adquirir um ativo de capital e a sua utilização, já que haverá um tempo necessário à produção dos ativos de capital – que são, em geral, produzidos sob encomenda.
  • 4
    Para uma discussão detalhada sobre esse aspecto da teoria da preferência pela liquidez de Keynes, ver Carvalho (1998).
  • 5
    A equação (5), que mostra a composição do produto em um determinado instante, foi utilizada porque por meio dela é possível observar que um aumento nos gastos governamentais, mantido tudo o mais constante, implica um aumento da renda para o instante seguinte. Assim, observa-se que um único aumento dos gastos é capaz de gerar uma expectativa de preços crescentes ao longo do tempo, o que permite utilizar a equação (6a), tal como realizado na fase II, para explicar a trajetória da renda na fase IV.
  • 6
    Recentemente, o Financial Times (em matéria reproduzida na Gazeta Mercantil de 27-10-1998) elogiou a intenção do governo francês de aumentar seus gastos, o que provocaria uma quebra da meta de déficit estabelecida no Tratado de Maastricht. Clamando por políticas fiscais expansionistas, o Financial Times afirmou: ''a economia mundial vai mal e precisa de toda a ajuda possível. Uma política fiscal mais frouxa para incentivar a produção (...) é bem-vinda''. E concluiu: ''o que importa para uma economia mundial que cresce em ritmo cada vez mais lento não é o não cumprimento de uma meta''.
  • 7
    Para uma análise dos efeitos de uma queda de preços sobre a taxa de juros no modelo de Keynes, ver Sicsú (1999).
  • 8
    É importante notar que, muito embora Keynes tenha argumentado sobre as possibilidades de predomínio de um ambiente de desânimo e desapontamento como conseqüência de um processo redistributivo, segundo ele, a causa mais fundamental que poderia levar a economia para essa situação seria uma variação positiva de preços, uma inflação, e não uma variação negativa de preços, uma deflação. Em duas passagens do seu Essays in persuasion, suas palavras são precisas sobre o tema. A primeira: ''cada processo, tanto a inflação quanto a deflação, provocou grandes danos. Cada uma tem um efeito em alterar a distribuição de riqueza entre diferentes classes; a inflação nesse aspecto é a pior das duas. Cada uma também tem um efeito em superestimular ou retardar a produção de riqueza, embora aqui a deflação seja a mais danosa'' (Keynes, 1972:60, destaque do autor). Na outra passagem, Keynes afirmou: ''a inflação é injusta e a deflação é inconveniente. Das duas, talvez a deflação seja, se nós desconsideramos inflações exageradas tais como aquela da Alemanha [de 1923/24], a pior; porque é pior, em um mundo empobrecido, provocar desemprego do que desapontar o rentier. Mas não é necessário compararmos um mal com o outro. É necessário reconhecer que ambos
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2000
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