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CUIDADOS DE ENFERMAGEM NOS PORTADORES DE SHUNT E FÍSTULA ARTÉRIO-VENOSA

Introdução:

O shunt ou fístula artério-venosa do qual o paciente com insuficiência renal crônica, em geral, é portador, pode compreensivelmente "assustar" o pessoal de enfermagem desfamiliarizado com o seu uso. Este temor tende a desaparecer com o conhecimento científico que o baseia. Tal conhecimento é muito desejável, uma vez que a cada dia aumenta o número de pacientes que necessitam deste veículo para o procedimento de hemodiálise.

No presente trabalho tentaremos esclarecer alguns pontos que consideramos importantes nos cuidados que lhes são dispensados.

I - Conceituação

Hemodiálise é o tratamento que consiste em retirar do organismo o excesso de líquido e substâncias tóxicas retidas no sangue devido ao mau funcionamento renal, utilizando a ultrafiltração e o princípio de difusão e pressão osmótica. As substâncias em solução, que podem passar por essa membrana semi-permeável irão difundir-se, do lado em que estão em maior concentração para o lado em que se encontram em menor concentração, até que o equilíbrio seja conseguido. Qualquer sistema de hemodiálise tem um número de componentes comuns: o paciente; o "shunt" artério-venoso externo ou interno que proporciona acesso à corrente sangüínea; o dializador ou rim artificial; o líquido dializador e sistema de monitorização que indica os sinais de complicação durante a diálise.

"Shunt" artério-venoso externo é uma conexão artério-veia de Silastic, com pontas e intermediários de teflon, usado para possibilitar a ligação do aparelho de hemodiálise. É instalado cirurgicamente sob anestesia local no membro superior, na artéria radial e veia satélite. No membro inferior na artéria tibial e veia safena, ou em qualquer artéria de grosso calibre.

Há dois tipos de "shunt", um ajustado só para acessos limitados durante um curto período de tempo, usado na insuficiência renal aguda. O outro permite acessos repetidos para período mais longo e é principalmente usado em pacientes em tratamento regular com hemodiálise. O primeiro é chamado convencionalmente de "shunt" de agudo e o segundo recebeu o nome de Scribriner, em homenagem ao seu preconizador. Para se proceder a hemodiálise o "shunt" é separado e cada cânula conectada ao equipo, sendo o sangue arterial levado até o dializador através do "set" arterial e trazido pelo "set" venoso até a veia do paciente.

Fístula ou "shunt" artério-venoso interno é a união cirúrgica de dois vasos: artéria e veia. Cerca de quatro a seis semanas após o ato cirúrgico, o sistema se arterializa. Há o aparecimento de grandes veias onde podem ser sentidos os frêmitos e escutados os murmúrios. A realização da fístula artério-venosa interna é um procedimento cirúrgico de rápida execução, feita sob anestesia local e sem complicações operatórias significativas. Para a diálise, agulhas de grande calibre são introduzidas sob um botão anestésico e o sangue sai por uma agulha colocada em situação distai e retorna pela outra colocada em situação proximal.

II - Considerações

A tentativa de conseguir dialisar o sangue através de uma aparelho teve início em 1943 por Kolff empregando a técnica intermitente, isto é, retirava de cada vez por punção venosa 50 ml. de sangue do paciente, dialisava e reintroduzia. Como este metido era lento Kolff e Berg introduziram outro método que consistia em ligar uma bureta de um lado a um vaso do paciente e de outro, ao aparelho de diálise. Até 1960 vários outros métodos foram tentados, porém todos só permitiam a realização de um pequeno número de diálises. A diálise regular da qual necessita o paciente portador de insuficiência renal irreversível, só foi possível no ano de 1960, quando Quinton, utilizando prótese de teflon e Silastic criou o "shunt" artério-venoso externo. Apesar de ser eficiente este novo método foi apresentando desvantagens tais como: tromboses, infecções, erosão da pele, saída e desconexão das cânulas, além de que a parte externa do "shunt" lembra constantemente ao paciente sua frágil existência. Para sanar estas dificuldades, um outro tipo de "shunt" foi criado - a fístula artério-venosa interna. Esta fístula criada inicialmente por Cimino e Brescia vem sofrendo gradativo aperfeiçoamento em relação a sua localização, mesmo assim, embora tida como superior em relação ao "shunt" artério-venoso externo apresenta também pequenos inconvenientes como: necessidade de bomba de pressão acoplada ao aparelho de diálise em virtude da existência de pressão alta elevada, necessidade de uma punção em cada diálise, possibilidade de sangramento pelo orifício de punção, após o término da diálise, saída da agulha ou coagulação do sangue no seu interior durante a diálise, e finalmente, necessidade de espera de alguns dias para ser usada.

III - Intercorrências

Reincidências de sérias infecções são a maior causadora da perda do "shunt", uma vez que é o processo inflamatório o responsável pelo prejuízo causado aos vasos sangüíneos. O cuidado dispensado a um "shunt" corresponde basicamente ao cuidado dado a uma recente lesão cirúrgica. Vermelhidão, dor e edema ao redor do "shunt" são os primeiros sinais de infecção para os quais o paciente e a equipe de enfermagem devem ficar alerta. A laceração da pele pode indicar sensibilidade a algum produto usado no curativo que podem ser testados por exclusão.

A obstrução do "shunt" é outra intercorrência prejudicial e freqüente e para preveni-la, o paciente deve ser instruído para que no período imediato a sua inserção evite tudo que possa impedir o sangue a correr livremente pelo "shunt", como roupas apertadas, flexão do braço por longo tempo e a enfermagem, ao usá-lo para verificação da pressão arterial. O eletrodo de E. C. G. deve ser colocado sempre acima do "shunt". A coagulação pode ser ainda ocasionada por hipotensão, desidratação ou infecção. Às vezes não tem causa específica a não ser o acúmulo de fibrinas na parede. O importante é que aos primeiros sinais de coagulação o médico seja avisado para que possa intervir em tempo hábil.

Apesar de ser difícil, a desconexão do "shunt" pode ser uma intercorrência de lamentável conseqüência. Para assegurar a tranqüilidade do paciente e da equipe, é fundamental que este conduza consigo duas pequenas pinças chamadas "clamps" e em caso de abertura do "shunt" fecha as duas saídas, ocluindo primeiro com os dedos a saída do "shunt" até pegar os clamps. Quando ocorre sangramento no local da inserção, deve-se procurar diminuí-lo, usando um manguito insuflado, até que seja descoberta a causa do sangramento.

- Cuidados com a fístula - segundo vários autores a fístula artério-venosa tem maior sobrevida em relação ao "shunt", pois é bem menor a incidência de infecção e coagulação. Suas intercorrências acontecem mais na instalação do tratamento pela hemodiálise, pela dificuldade que se tem muitas vezes de puncionar a veia e quando ocorre extravasamento de sangue, o hematoma é inevitável. Para manter o funcionamento satisfatório da fístula, o membro onde ela está localizada, deve ser poupado de toda e qualquer compressão.

VI - Assistência de enfermagem

- aspectos do comportamento do paciente em relação ao "shunt" ou fístula artério-venosa.

Quando o paciente observa o "shunt" pela primeira vez, assume uma atitude de depressão, manifestando medo e às vezes, revolta. A melhora física e emocional trazidas pela diálise age como um fenômeno e transforma essas atitudes negativas em outras opostamente positivas, como sejam de zelo e colaboração. Logo que está em condições, inicia-se seu aprendizado de como cuidar e observar o "shunt" para garantir o seu bom funcionamento.

Uma grande tarefa da enfermeira consiste em manter elevado o estado psicológico do paciente, motivando-o e orientando-o a ter uma vida compatível com suas condições orgânicas. Deve chegar mesmo a estimulá-lo a praticar um esporte ou qualquer atividade física significante.

- Cuidados de enfemagem após a inserção do "shunt"

Observar as condições gerais do paciente, se antibióticos e analgésicos foram prescritos, observar regularmente o "shunt" no sentido de verificar coagulação e sangramento, o curativo não deve comprimir o fluxo sangüíneo do "shunt" ou os vasos do membro. Orientar o paciente para que mantenha o braço distendido e evite comprimi-lo ou erguer peso. Se necessário providenciar uma tala gessada ou uma tipóia para garantir a posição adequado do membro. Prender ao curativo duas pinças clamps e orientar o paciente para pinçar cada lado do "shunt" se ocorrer hemorragia, e toda vez que for necessário abri-lo. Colocar adesivo fixando o "shunt" à pele, para reduzir o risco de tracioná-lo acidentalmente.

- Complicações

Três das principais complicações que encurtam a vida do "shunt" são - coagulação do sangue dentro do "shunt", infecção dos tecidos adjacentes e sangramento.

Coagulação - a tendência de coagulação do sangue dentro do "shunt" é maior em alguns indivíduos do que em outros. Tais pacientes necessitarão examinar seus "shunts" mais freqüentemente.

A coagulação ocorre com grande freqüência em todos os "shunts":

  • - depois de outra cirurgia

  • - quando o paciente apresenta infecção local ou geral

  • - por problema de compressão (aumento da resistência da veia)

  • - por problema de compressão (aumento da resistência da veia)

  • - quando o membro do paciente está frio

  • - após um tratamento para coagulação.

E é indicada por algum ou todos dos seguintes quadros:

  • - escurecimento ou fragmentação do sangue no tubo

  • - dor e adormecimento na área

  • - frieza do "shunt"

  • - ausência do pulso ou do murmúrio

- Descoagulação do "shunt" - é um procedimento estéril, em geral realizado pelo médico, enfermeira ou uma pessoa treinada. Requer delicadeza, conhecimento e experiência e não deve ser tentada por quem não está adequadamente preparado.

Procedimento -

  • - remover o curativo

  • - limpar o "shunt" e pele circunvizinha

  • - remover os estabilizadores (se presentes)

  • - colocar a pinça clamp em cada lado do "shunt" e abri-lo

  • - remover o conector

  • - aspirar o "shunt" usando seringa de 20 ml. com soro fisiológico mais heparina. Se isto falhar, inserir um cateter, de modo que sua ponta alcance a extremidade superior do "shunt" mas que não entre na artéria ou veia. Aspirar mais uma vez com cuidado para que nenhum coágulo contido no tubo seja conduzido à circulação sangüínea.

  • - reconectar o "shunt"

  • - verificar a velocidade do fluxo, observando o caminhar de uma pequena bolha de ar deixada no "shunt".

  • - observar o "shunt" regularmente

  • - manter o membro com o "shunt" em repouso durante 24 horas.

É necessário ficar bem claro que a causa mais comum da perda do "shunt" é a coagulação e esta é desenvolvida com mais freqüência do lado da ponta venosa. Isto é devido a um estreitamento da veia, o qual pode eventualmente obstruir o fluxo através do "shunt". Quando o reconhecimento da coagulação do lado da ponta venosa é tardio, a ponta arterial coagula também, irreversivelmente e um novo "shunt" tem de ser colocado.

- Infecção - desenvolve-se mais lentamente do que a coagulação e uma simples inspeção é suficiente para assegurar o tratamento precoce.

A infecção revela-se por dor ou adormecimento, hiperemia e edema no local do "shunt"

Conduta -

  • - comunicar ao médico

  • - colher secreção para cultura e sangue para hemocultura

- proceder ao curativo; primeiro toda área do "shunt" é desinfectada com álcool, um antisséptico é aplicado ao redor das saídas do "shunt" e em seguida passado pomada ou "spray", promovendo uma barreira às bactérias e substâncias estranhas as lesões abertas da pele. Em caso de aplicação de pomada usar suas espátulas para evitar contaminação cruzada de uma saída para outra. Geralmente duas gases são colocadas sobre cada saída do "shunt" e o braço é então enfaixado com uma atadura de crepe. Uma pequena parte do tubo de Silastic é deixada visível para que o paciente observe o aspecto do "shunt".

Chamamos a atenção para o fato de que a infecção por si só pode ser responsável pela coagulação do "shunt" como também pode provocar uma erosão das paredes vasculares com sangramento externo. Algumas vezes isto é precedido por uma ruptura ou formação aneurismática na ponta venosa, requerendo atenção médica imediata. Geralmente um novo "shunt" noutro membro é necessário, entretanto o médico pode preferir tratar a infecção, sem intervenção cirúrgica. Neste caso, a enfermeira deve estar ciente da possibilidade de hemorragia da artéria e ter um torniquete ou tensiômetro por perto.

Sangramento é tão raro quanto grave. A sintomatologia é idêntica à das hemorragias.

Conduta - manter a calma enquanto verifica a procedência do sangramento: se interno ou externo.

- quando o sangramento é externo, proveniente da abertura acidental do "shunt", deve-se colocar a pinça clamp em ambos os lados do "shunt", tomando particular cuidado em limpar as extremidades do tubo e trocar o conector se por acaso estiver estragado. Quando o sangramento se processa internamente, observar qual o lado que apresenta hematoma. Se for o lado venoso, pinçar o shunt. Se for o lado artéria, não pinçar o "shunt", mas elevar o membro e aplicar um curativo compressivo e chamar o médico.

- Colheita de sangue e medicação

A colheita de amostras de sangue para exames ou a introdução de medicamentos pelo "shunt" é uma conduta bastante discutível. A maioria dos serviços prefere não fazê-lo. Em caso extremamente necessário deve-se proceder da seguinte maneira:

- pinçar os dois lados do "shunt", abri-lo delicadamente, limpar com álcool as extremidades, abrir a pinça artéria dentro do tubo da colheita. Novamente limpar com álcool e desconectar o "shunt".

- Cuidados de enfermagem após a colocação da fístula

Consiste fundamentalmente em poupar o membro onde está a fístula, de toda e qualquer compressão. Após a hemodiálise é comum a aplicação de sulfato de protamina e a colocação de um pequeno curativo compressivo nos locais de onde foram retiradas as agulhas. Estes curativos devem ser removidos no máximo, até duas horas após o término do tratamento.

V - Conclusão:

O acesso rápido, fácil e constante aos vasos sangüíneos é condição absolutamente necessária para a instalação da hemodiálise. Para o paciente que necessita deste tratamento por longo período, o cuidado com o "shunt" é por demais importante desde que literalmente ele é sua "linha" de vida.

Embora alguns estudiosos do assunto afirmem que a duração do "shunt" está mais relacionada com a técnica de implantação do que com os cuidados que lhes são dispensados, cabe a enfermagem, até que se prove o contrário, aperfeiçoar cada vez mais estes cuidados e orientar o paciente e sua família para segui-lo adequadamente.

  • SILVA, M.P. - Cuidados de enfermagem nos portadores de shunt e fístula Artério-venosa. Rev. Bras. Enf .; DF, 29:81-86, 1976.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 1976
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