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Marina de Andrade Resende: um depoimento

ESPAÇO DO LEITOR

Marina de Andrade Resende: um depoimento

Cléa A. de Figueiredo Fernandes

Graduada em enfermagem e psicologia. Professora aposentada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense

Ao reler parte de minha antiga correspondência com pessoas amigas ou pessoas às quais dediquei grande admiração, destaquei as cartas de Marina Andrade Resende. Deu-me vontade de evocar sua figura, o que teria feito conforme me foi solicitado na época, mas a emoção dominava-me e não queria ficar piegas. O tempo que passou, já tão longínquo..., não dissipou a lembrança da personalidade rica que foi Marina. Muitos a conheceram, estimavam-na e admiravam-na. Foi um exemplo de mulher, quer como possuidora das melhores qualidades da psicologia feminina, quer como mulher profissional. Ela escolhera uma profissão difícil, complexa e ainda com pouco ou relativo reconhecimento público, não obstante o pioneirismo revolucionário da notável Florence Nightgale. Trata-se da Enfermagem. Ela a seguiu motivada por ideias altruístas e progressistas advindas de uma educação cristã que encarava o bem-estar social como resultado de vários tipos de trabalho.

Conheci Marina Resende como colega bolsista da "Kellog Foundation", nos Eslados Unidos em 1945. Vivia-se o final da 2ª; Guerra Mundial, e os Estados Unidos saíram triunfantes pela participação que tiveram na Europa. Eram vencedores. O povo americano sentia-se orgulhoso, no auge da popularidade mundial. Aquele clima de vitória reverteu cm um incentivo insuperável da tomada industrial norteamericana de modo abrangente e intenso. Várias profissões, inclusive a enfermagem, absorveram esse "boom", sabendo-se que a enfermagem americana era tida como parte do esforço de guerra. Muitas escolas preparavam "cadet nursing" para o "front". Daí o rigor no preparo e os resultados obtidos de um serviço de alto padrão. Como se trabalhava! Mesmo as estudantes que não iam para o exército c as estrangeiras seguiam aquele ritmo com entusiasmo. Nessa circunstância especial da vida norte-americana fizemos- Marina, eu e outras 4 jovens brasileiras - o curso de Enfermagem do Providence School of Nursing em Washington D.C.. Ela iniciou o curso um semestre após eu ter começado, mas Fizemos alguns estágios hospitalares na mesma ocasião.

Desejo evocarem rápidas linhas a personalidade de Marina, que desde o início se sobressaiu dentre as alunas brasileiras pela sua atitude compreensiva, elegante e pelo senso de responsabilidade. Tudo sem apelação ou exibicionismo. Era a voz geral entre os superiores, colegas e pacientes. No entanto, teve dificuldades pessoais no que se referia à adaptação à rigidez de horário, á disciplina da escola por causa de sua saúde um tanto quanto frágil. Superava essa limitação, porem, com a tenacidade e a dedicação de quem quer firmemente chegar a uma meta: terminar bem o curso de enfermagem. Foi aluna inteligente e aplicada na parle teórica e nas enfermarias se desdobrava não só nas técnicas pertinentes como também na atenção humaníssima que dava aos pacientes, o que já não era tão comum devido à pressa americana.. Marina era uma espécie de consoladora dos aflitos, no que fazia par com outra colega brasileira também muito estimada pelos pacientes, a Myriam Graça Esta encantava-os com sua conversa e conselhos: ficava tão eloqüente que, às vezes, não linha tempo de terminar as tarefas de técnica no horário. Figura inesquecível a Myriam Graça, de quem Marina e eu fomos boas amigas. Nós achávamos até instigante como conseguiu terminar o desafio daquele curso, colocando na frente de tudo o lado "espiritual", não se importando demais com horários da rígida escolaridade.

Quando deixei os "States", no meado de 1948. Marina foi gozaras férias de verão em Battle Creek. Michigan. Voltou depois a Washington a fim de se preparar para os "State Board's examinations" e ainda fez os estágios de Saúde Pública, em seguida o estágio de doenças contagiosas. O esforço triplo no final de um forte verão fez com que ela. fragilizada, contraísse uma gripe preocupante. Ao voltar para o Brasil, foi recebida festivamente pela numerosa família. Escreveu-me. contando a festa que a alegrou bastante.

Como todas as bolsistas da "Kellog Foundation" recebeu proposta do S.E.S.P. e começou a trabalhar nos programas da instituição em Belo Horizonte e cidades vizinhas. Depois de um ano de trabalho, recebeu uma bolsa de estudo para a França. Fez sua primeira viagem à Europa e ficou comovida ao pisar o solo francês. Era seu velho sonho realizando-se. Em Paris, apesar da satisfação que sentiu, ela fala das dificuldades de hospedagem e de convivência. Só encontrou quartos de aluguel, mas sem banheiro; achou até divertido quando uma proprietária lhe perguntou por que fazia tanta questão de banheiro "porventura teria doença de pele?" - e acrescentou que ela desmaiava quando entrava numa banheira... Finalmente encontrou acomodações adequadas e se sentiu em casa na Paris encantadora. Notou que o meio social era muito fechado. Tudo só funcionava com cartão de apresentação; o meio intelectual bastante elitista. Como estudante observou que havia uma distância enorme entre professores c alunos. O professor-conferencista não permitia interrupções nem dava oportunidade para perguntas no fim da aula; ela terminava sempre com palmas do auditório. Marina achou que esta falta do mínimo diálogo nas aulas era um péssimo método pedagógico e também criticou a aplicação de lestes psicológicos pelos alunos, pois eles eram tão-somente orientados pela leitura das regras existentes em cada teste e, além disso, não sabiam dos resultados obtidos que iam somente para os professores, sabendo-se que estes eram de difícil acesso. Isso demonstrou à diligente aluna que os métodos franceses eram pouco democráticos, pelo menos naquela época. Eis que Marina, observando tudo, ora com criticas, ora com aplausos, terminou o curso de Psicologia Patológica do Instituto de Psicologia de Sorbonne.

O seu enorme interesse para ver de que modo se desenvolvia a profissão de enfermagem na França não encontrou vazão, pois era impossível entrar em hospitais sem apresentação oficial, e ela não soube de escolas específicas de enfermagem. Será que os franceses ignoravam a existência da inglesa Florence Nightingale? Ficou ainda mais decepcionada, quando indagava constantemente, teve a informação de que "a enfermeira aqui é considerada como simples empregada!". Nada podendo fazer sobre o assunto, tratou somente de estudar e desfrutar do lazer possível: teatro e passeios. Em abril de 1950 foi em peregrinação a Roma com os dominicanos, cheia de fé e gratidão a Deus por ter recebido tantos benefícios. Ela escrevia: "minha estadia na Europa tem sido uma profusão de dons os quais, naturalmente, eu procuro aproveitar o máximo: dons de ordem material, intelectual e espiritual". Assim, antes de voltar para o Brasil, esteve em Genebra, Londres, Amsterdan, Bruxelas e Lisboa.

Na década de 50 trabalhou pelo SESP em sua sede - Diretora da Divisão de Enfermagem - no Rio. Foi quando se projetou como líder da Enfermagem no Brasil, ocupando diversos cargos e sendo eleita presidente da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), em 1958. Marina viajou por esse Brasil afora, participou dos vários congressos de Enfermagem e era convidada a fazer palestras em diversos estados e até fora do país. Nesta fase nos víamos freqüentemente no Rio; segui sua brilhante trajetória. Mas sabia também de seus dissabores e algumas incompreensões profissionais, o que era de se esperar. A tudo procurou superar com firmeza e sem abrir mão daquela elegância moral que eu conhecia desde os tempos do Providence Hospital. Foram anos de liderança, intensamente vividos e também sofridos.

Em 1963, foi à Europa de férias. Ao voltar, estava adoentada; mesmo assim assumiu seu trabalho, mas pouco tempo ficou no Rio. Foi para Belo Horizonte onde se submeteu a exames clínicos. Teve que se operar. Ela escrevia-me em janeiro de 64: "...Entrei na faca (nov. 63) e passei a residir no hospital onde ainda me encontro. Estou melhor mas sem saber quando sairei. Milhões de tratamentos, muitos bons cuidados, repouso obrigatório, muitas visitas e sem tempo de escrever". Fiquei deveras penalizada em não poder visitar Marina. Eu estava com criança nova, a sua quase afilhada. Ela pedira-me que não esperasse sua volta de Belo Horizonte, que batizasse a menina logo, considerava-se madrinha de longe e sempre. Nós nos correspondíamos como era possível, e eu também recebia notícias através de amigos comuns entre os quais Myriam Graça, Yolanda Bettencourt e Ernest Fromm.

Suas cartas mostravam-me a luta contra a doença, câncer, mas também a resignação consciente com o fim próximo inexorável. Dizia-se um "cordeiro paciente". (...) "A experiência da doença é ao mesmo tempo amarga e compensadora."(...) "Estou plenamente feliz, querendo que, em mim, se faça a vontade D'Ele. Estou muito em paz". Em outra carta: "...A doença é mais uma experiência que enriquece a minha existência de si já tão cheia de coisas boas".

Mesmo tão doente, sob rigoroso, controle, não perdeu o interesse pela enfermagem. Indagava, sugeria, orientava as visitas que trabalhavam na área e efetivamente revisava e coordenava artigos para a Revista de Enfermagem. Pessoalmente pediu cópia do meu trabalho, um libreto sobre a "História da Escola de Enfermagem do Estado do Rio", sobre o qual fez uma avaliação, dando também sugestões; desta história, criticou o destaque dado aos professores-médicos da Escola em detrimento do destaque de nomes de enfermeiras-professoras. Como grande defensora da enfermagem, julgou este fato negativo para a profissão. Solicitou-me ainda e estava esperando um texto sobre enfermagem geriátrica que eu estava preparando. Um tal intercâmbio era feito com vários participantes da Revista. Marina procurou ficar ativa dentro dos seus limites, ate o fim. Quando teve uma melhora, em outubro de 64. "planejou" vir ao Rio; surgiu, porem, uma nova formação cancerígena com dores, o que exigiu tratamento imediato e intenso.

Não mais saiu de Belo Horizonte, onde, cercada do maior carinho e confrangimento de parentes e alguns amigos, faleceu no dia 25 de junho de 1965. Aqui no Rio celebrou-se uma missa de 7º dia na Igreja da Candelária; acorreram amigos, admiradores e numerosas enfermeiras. Belo Horizonte. Rio de Janeiro. entre outras cidades brasileiras, honraram-lhe a memória, dando seu nome a bibliotecas e a prêmios de enfermagem.

Bem sei que este depoimento, tão simples quanto sincero, não ira acrescentar grande coisa à memória de Marina. Os que a conheceram, sabem ou sabiam de suas qualidades e grande capacidade de liderança, tendo sempre como objetivo o progresso da Enfermagem nos aspectos técnico, científico, psicológico e social. Se o fiz, foi cumprindo um dever pessoal de grata admiração por quem se dedicou a um ideal e que deu exemplar mostra do modo pelo qual a mulher pode conquistar seu espaço na sociedade contemporânea.

Quando se fala ou escreve sobre alguém que nos deixou uma impressão indelevelmente positiva, parece que se tende a fazer uma descrição hagiológica. Não se trata de hagiologia; eu só quis relembrar a figura esbelta, elegante, irradiadora de simpatia que. com seu doce e peculiar sorriso, soube ser receptiva e também comunicativa. Expediu mensagens que iam do prático administrativo à transcendência humanístico-cultural referente à vocação vivenciada da enfermagem.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2015
  • Data do Fascículo
    Mar 1993
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