O "louco" cidadão, o técnico reconstruído: a humanização da psiquiatria
Maria Marta Duval da Silva
Acadêmica do Curso de Graduação em Enfermagem e Obstetrícia da Universidade de Brasília
Viver. Viver é um constante estressor onde o frágil limite entre o equilíbrio e o desequilíbrio do ser humano pode se romper de forma lenta. E a crise pode se tornar patológica. E o ser humano adoece psiquicamente. E é chamado "louco". Historicamente, os "loucos" sempre foram legalmente tratado através de seus seqüestro e cassação de direitos civis, num regime de exceção, que incorporou a doença mental como sinônimo de periculosidade e incurabilidade. Foram criados, dentro deste contexto, os manicômios, com sua prática de internação involuntária, isolamento, segregação, liberdade vigiada e indignidade das técnicas de atendimento, que iguala o tratamento dado aos pacientes ao tratamento recebido pelos presidiários. O manicômio é sinônimo de reprodução da marginalização onde o doente é totalmente despido da personalidade do eu e de portador de uma experiência de existir humano. O doente é tratado e visto como um não-cidadão, e não como um cidadão que se expressa de maneira diferente.
Tratar o doente dentro de uma perspectiva manicomial significa apenas administrara "loucura", com técnicas que a ampliam sem contribuir para superá-las. Significa ignorar que o "louco" possui um outro padrão de lógica que precisa ser respeitada. Esse outro padrão de lógica faz com que o "louco" perceba outros aspectos da realidade, que é multifacetada. Essa percepção faz com que interajam com o mundo de uma forma diferente da preconizada como "normal", forma essa desprovida de "nossos" valores e preconceitos. Essa realidade não pode se tornar argumento para transformar o portador de distúrbios psíquicos em um ser à parte, pois ela não é desprovida de conteúdos.
O movimentoda Reforma Psiquiátrica, através da Articulação Nacional de Luta Antimanicomial, luta hoje, por um Estatuto da Cidadania dos Usuários de Serviços de Saúde Mental, que é o conjunto de leis, normas e procedimentos de defesa da cidadania dos "loucos".
Mas o Estatuto por si só não traz mudança. No Brasil, a prática sempre foi a hospitalização em regime fechado, pois o "louco" sempre foi visto pela sociedade como um elemento perigoso, que deveria ser retirado do convívio da mesma e os profissionais de saúde, porsua vez, sempre prestaram "assistência" dentro dessa política. É preciso, então, a capacitação profissional dos técnicos para trabalhar o doente mental dentro de uma nova perspectiva e o aprendizado da aceitação e convivência. Convivência com um ser humano que, estando psiquicamente doente, pode nos revelar um pouco do muito que somos despreparados e que talvez por isso estabeleçamos uma total relação de poder edistância, seja através de normas e rotinas impostas, seja através da vestimenta do conhecimento científico. Aceitação de que somos também seres biopsicossociais, que temos nossos constructos e que temos que construir ou reconstruir o caminho e nossa formas de olhar, ver e tratar o doente mental. O resgate de cidadania dos. "loucos" requer que o fazer com seja priorizado.
A construção da cidadania dos portadores de distúrbios psíquicos implica também em serem eles agentesde seu processo social de mudança. E implica, acima de tudo, construção conjunta respeitando os conteúdos e as experiências trazidas por esses cidadãos em construção.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Fev 2015 -
Data do Fascículo
Jun 1995