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Nas trilhas da etnografia: reflexões em relação ao saber em enfermagem

On the track of ethnography: reflections on nursing knowledge

Por los caminos de la etnografía: reflexiones respecto al saber en enfermería

Resumos

Apresenta-se uma reflexão sobre a etnografia como meio para a construção do conhecimento em enfermagem. A partir da concepção antropológica de etnografia e do cotejamento de alguns estudos de enfermeiras que usaram a etnografia como método/metodologia em suas pesquisas, são tecidas considerações acerca da problematização, do quadro teórico utilizado, da opção pela etnografia como caminho metodológico, da concepção e envolvimento com o trabalho de campo e do texto etnográfico elaborado no cenário do cuidado de enfermagem, apontando-se então algumas implicações que deixam entrever uma forma especial da "etnoenfermagem" contribuir para a "disciplina de enfermagem".

etnografia; enfermagem; enfermagem


This study presents a reflection on ethnography, as a means for developing knowledge in nursing. From the anthropologic conception of ethnography, and the comparison of a few studies by nurses who have used ethnography as a method/methodology in their research, considerations are made about problem solving techniques, the theoretical framework, the option for ethnography as a methodological mean, the conception and involvement with fieldwork and the ethnographic text developed within the nursing care setting. A few implications are then presented, making possible to perceive a special way "ethnonursing" has to contribute towards the discipline of Nursing.

ethnography; nursing; nursing


Se presenta una reflexión sobre la etnografía como un medio para la construcción del conocimiento en Enfermería. A partir de la concepción antropológica de etnografía y del cotejo de algunos estudios de enfermeras que usaron la etnografía como un método/metodología en sus investigaciones se tejen consideraciones respecto a la problemática, al marco teórico utilizado, a la opción por la etnografía como camino metodológico, a la concepción y envolvimiento con el trabajo de campo y del texto etnográfico elaborado en el escenario del cuidado de enfermería. Se indican entonces, algunas implicaciones que dejan entrever una forma especial de la "etnoenfermería", o sea, cuando ella contribuye para la "disciplina de enfermería".

etnografía; enfermería; enfermería


REFLEXÃO

Nas trilhas da etnografia: reflexões em relação ao saber em enfermagem* * Texto apresentado no 12° SENPE, de 27 a 30 de abril de 2003, em Porto Seguro – Bahia.

On the track of ethnography: reflections on nursing knowledge

Por los caminos de la etnografía: reflexiones respecto al saber en enfermería

Ingrid ElsenI; Marisa MonticelliII

IDra. em Enfermagem; Membro do Grupo de Assistência, Pesquisa e Educação na Área da Saúde da Família – GAPEFAM/UFSC

IIDra. em Enfermagem; Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem da UFSC; Membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Parto e Nascimento (NIPPN/UFSC)

RESUMO

Apresenta-se uma reflexão sobre a etnografia como meio para a construção do conhecimento em enfermagem. A partir da concepção antropológica de etnografia e do cotejamento de alguns estudos de enfermeiras que usaram a etnografia como método/metodologia em suas pesquisas, são tecidas considerações acerca da problematização, do quadro teórico utilizado, da opção pela etnografia como caminho metodológico, da concepção e envolvimento com o trabalho de campo e do texto etnográfico elaborado no cenário do cuidado de enfermagem, apontando-se então algumas implicações que deixam entrever uma forma especial da "etnoenfermagem" contribuir para a "disciplina de enfermagem".

Descritores: etnografia; enfermagem/conhecimento; enfermagem/pesquisa

ABSTRACT

This study presents a reflection on ethnography, as a means for developing knowledge in nursing. From the anthropologic conception of ethnography, and the comparison of a few studies by nurses who have used ethnography as a method/methodology in their research, considerations are made about problem solving techniques, the theoretical framework, the option for ethnography as a methodological mean, the conception and involvement with fieldwork and the ethnographic text developed within the nursing care setting. A few implications are then presented, making possible to perceive a special way "ethnonursing" has to contribute towards the discipline of Nursing.

Descriptors: ethnography; nursing/knowledge; nursing/research

RESEUMEN

Se presenta una reflexión sobre la etnografía como un medio para la construcción del conocimiento en Enfermería. A partir de la concepción antropológica de etnografía y del cotejo de algunos estudios de enfermeras que usaron la etnografía como un método/metodología en sus investigaciones se tejen consideraciones respecto a la problemática, al marco teórico utilizado, a la opción por la etnografía como camino metodológico, a la concepción y envolvimiento con el trabajo de campo y del texto etnográfico elaborado en el escenario del cuidado de enfermería. Se indican entonces, algunas implicaciones que dejan entrever una forma especial de la "etnoenfermería", o sea, cuando ella contribuye para la "disciplina de enfermería".

Descriptores: etnografía; enfermería/conocimiento; enfermería/investigación

1 Introdução

A preocupação da Enfermagem com a produção do conhecimento não é recente. No Brasil, desde o seu surgimento como disciplina, as enfermeiras têm realizado investigações, buscando diagnosticar problemas e maneiras de cuidar de pacientes, famílias e comunidades. A partir da década de 70, com a expansão dos cursos de pós-graduação stricto sensu, houve não só aumento considerável do número de estudos, como um aprofundamento das discussões em torno do conhecimento de Enfermagem.

As publicações internacionais e nacionais têm documentado os debates sobre temas polêmicos como: a relevância das teorias de Enfermagem para a disciplina; o ensino e a prática profissional; o objeto de estudo e da prática da Enfermagem; os diferentes tipos de conhecimento presentes no fazer profissional; a Enfermagem ciência e/ou arte, entre outros.

Neste sentido, de forma provisória, como todo conhecimento precisa ser considerado, formou-se um certo consenso em torno de quatro conceitos básicos (construtos) que, de certo modo, definem e ao mesmo tempo delimitam o campo do saber-fazer: enfermagem, ser humano (indivíduo/família, grupo, comunidade), ambiente/sociedade e saúde-doença. Tais conceitos e suas inter-relações consubstanciam o paradigma da Enfermagem(1). Suas conceituações, inter-relações e pressupostos, variam ao longo da história e das linhas teóricas, porém, são eles que têm dado especificidade ao conhecimento de Enfermagem.

Essas discussões em torno da construção de um conhecimento caracterizado como sendo próprio da disciplina ou inerente a ela, tiveram reflexos substanciais na pesquisa. Aqui, como no exterior, estudos e eventos científicos comprovam a constante preocupação das enfermeiras com os modos de pensar-fazer-refletir a pesquisa em Enfermagem. Um exemplo disto são os Seminários Nacionais de Pesquisa em Enfermagem (SENPE) promovidos pela Associação Brasileira de Enfermagem. O referencial teórico e seu papel no processo de pesquisa, as linhas e grupos de pesquisa, os métodos e técnicas de coleta de dados, as questões relacionadas à ética e ao rigor na pesquisa, são alguns dos temas exaustivamente debatidos e que contribuíram para o aperfeiçoamento do processo investigativo em Enfermagem.

Desta forma, podemos constatar que o aperfeiçoamento dos projetos de pesquisa e, conseqüentemente, do processo de pesquisar e do seu produto final, não tem sido resultante apenas de requerimentos externos, provenientes dos órgãos financiadores, mas principalmente do esforço coletivo da comunidade de Enfermagem na busca de um saber-fazer próprio que oriente e redimensione constantemente a sua prática. Isto, sem deixar de manter vigília às dimensões técnicas, éticas e humanísticas que se acham profundamente imbricadas na ação da Enfermagem, em todos os campos de atuação profissional.

Neste momento, entretanto, é necessário que nos detenhamos em torno da etnografia, cuja origem remonta à antropologia, e que tem sido empregada em investigações de enfermagem.

Ao longo deste texto, tentaremos, numa primeira incursão reflexiva, identificar e comentar semelhanças e diferenças a respeito do conceito "etnografia", conforme alguns autores antropólogos, bem como as formulações desenvolvidas por enfermeiras que optaram por fazer uso da etnografia em seus estudos, para, em seguida, retomarmos alguns aspectos apresentados nesta introdução.

2 Buscando caminhos na antropologia

O encontro entre a Antropologia e a Enfermagem não ocorreu ao acaso. Enfermeiras americanas, ao realizarem seus cursos de doutorado em Antropologia, optaram por adotar uma abordagem cultural aos seus problemas de pesquisa, provenientes de suas práticas profissionais. Esta aproximação resultou, por um lado, em estudos antropológicos (etnografias) sobre problemas relacionados ao ser humano e seu processo saúde-doença, tendo entretanto um impacto direto na disciplina e profissão de Enfermagem. Madeleine Leininger, a precursora desta associação, desenvolve uma teoria sobre o cuidado, escreve artigos e livros sobre pesquisa qualitativa em Enfermagem que tem servido de referência a mais de uma geração de enfermeiros, no qual consta a etnografia(2-5), funda juntamente com outras enfermeiras, antropólogas e não antropólogas, a "Transcultural Nursing Society", e cria o periódico "Journal of Transcultural Nursing", que vem se mantendo ativo há aproximadamente vinte anos.

Metodologias e técnicas da Antropologia são analisadas e adaptadas à Enfermagem, como história de vida, observação participante, uso de documentos, fotografias(6-9). Assim, aos poucos, instrumentais teóricos e metodológicos originários ou bastante freqüentes na Antropologia começam a ser introduzidos nos estudos de enfermeiras em diferentes países, inclusive no Brasil. Podemos destacar como ponto de referência em nosso país para pesquisas de natureza qualitativa, nela incluindo-se a etnografia, o Seminário Internacional de Pesquisa Qualitativa – promovido em parceria pela USP e UFSC, em 1989. Alguns aspectos dessa discussão, por exemplo, encontram-se publicados por Leininger, sob o título "Ethnomethods: the philosophic and epistemic bases to explicate transcultural nursing knowledge"(10).

3 A etnografia segundo os antropólogos

Genericamente, o termo "ethnos" provém do grego e denota um povo, uma raça ou grupo cultural. Quando combinado com "graphic", o significado faz referência à disciplina conhecida como Antropologia descritiva – o que equivale a dizer que é a ciência devotada a descrever as formas de viver das pessoas(11).

O uso original da palavra "etnografia" provém do campo da Antropologia, quando os estudiosos começaram a pesquisar os estilos de vida das pessoas, em diferentes lugares do mundo.

Os pioneiros no uso da etnografia foram W. Rivers, Franz Boas, Bronislau Malinowski e Margarete Mead. Mas, foi com Malinowski – o pai da moderna Antropologia inglesa – que o trabalho de campo surgiu como referência para a construção etnográfica e para o fazer do antropólogo, principalmente no estudo clássico denominado "Argonauts of the Pacific Islands"(12,2).Na história da Antropologia, diz-se que Malinowski inventou a pesquisa de campo e trouxe legitimação ao próprio empreendimento investigativo(13).

Muitos autores contemporâneos, mesmo considerando que os estudos desse antropólogo refletem concepções funcionalistas, enfatizam a enorme importância de seu trabalho, tanto pelas bases metodológicas dele oriundas, quanto pela riqueza das experiências transmitidas. Malinowski, ao desenvolver suas investigações, fundamentou-se na necessidade da bagagem científica do estudioso; enfatizou os valores da observação participante, bem como das técnicas de coleta, ordenação e apresentação daquilo que denominou "evidências" do trabalho de campo(14). O antropólogo enfatizou a importância do pesquisador distinguir os resultados da observação direta em relação aos depoimentos dos nativos e suas interpretações dos fatos, e as interpretações e inferências do pesquisador. Estas premissas continuam válidas até os dias atuais e se revigoram no cotidiano dos trabalhos de campo de pesquisadores de diversas áreas de saberes e arenas de investigações.

De acordo com a antropóloga Jean Langdonª, a etnografia é a descrição de um grupo étnico, vale dizer, a construção textual final (embora sempre provisória) do fenômeno sócio-cultural estudado ou observado (o produto).

A etnografia não é algo que se faz espontaneamente, mas carrega consigo alguns critérios para sua realização, como disciplina, criatividade e algum talento para o desenvolvimento do ofício da etnografia. Realça-se que a etnografia não é só para conhecer o curioso, o exótico, mas também e principalmente para universalizá-lo(13). São estas duas direções - a especificidade do caso concreto e o caráter universalista de sua manifestação - que levam a Antropologia a um processo de refinamento de problemas e conceitos(13:19).

Alguns estudiosos admitem ainda que as etnografias são construídas dentre inúmeras possibilidades, que deixam transparecer o percurso intelectual do pesquisador e que permitem situá-lo em determinado contexto disciplinar e, mais importante, fazer justiça ao autor porque, dando a ele a palavra, admitem eventualmente nele redescobrir uma riqueza inesperada(13).

Na compreensão de autores contemporâneos, o fazer antropológico inicia seu percurso a partir de uma determinada maneira de olhar a realidade, extraindo dela as interrogações. Esse olhar, referido como olhar disciplinado é aprendido durante a formação do profissional, e funciona como uma espécie de prisma, por meio do qual a realidade sofre um processo de refração, sendo que esta, advém da disciplina, compreendida como o conhecimento da área. Este olhar disciplinado é o que direciona, inclusive, a problematização e a definição do objeto de estudo(15).

Quando no campo (fieldwork) o antropólogo, ainda que exercite a interpretação sobre a interpretação que os informantes fazem, ele continua o processo de olhar disciplinado, considerando-o como um ato cognitivo. Esse olhar (também denominado de etnográfico), sensibilizado pela teoria adotada ou disponível, é que vai animar o pesquisador para compreender pessoas, relações, organizações, ambiente, estruturas, poderes, dentre outros(15).

Mas o olhar não é suficiente; há necessidade de outro ato cognitivo tão importante quanto o primeiro, e que mantém relação quase que de interdependência com ele - que é o ouvir. São portanto, duas bases de sustentação ao trabalho de campo, que permitem ao antropólogo, caminhar na estrada do conhecimento(15:21).

O ouvir, tal qual o olhar, não é um escutar qualquer, mas permanece eivado de significação, principalmente para permitir compreender o outro. Para ouvir é preciso haver um diálogo, ou seja, uma relação dialógica que cria um espaço semântico partilhado por ambos interlocutores (o genuíno encontro etnográfico).

Ao trocarem idéias e informações, o antropólogo e o informante abrem-se a um diálogo diferente metodologicamente falando, onde "o ouvir ganha em qualidade e altera uma relação, qual estrada de mão única, e uma outra de mão dupla, portanto, uma verdadeira interação"(15:24).

Os atos cognitivos de olhar e ouvir são parte do estar lá (being there); ou seja, o antropólogo presente no cenário onde ocorre o fenômeno sócio-cultural, e integram a observação participante necessária à compreensão do fenômeno sob estudo.

Finalmente, o ato de escrever, que ocorre após o trabalho de campo, acontece na situação de being here, isto é, fora do campo propriamente dito, quando o antropólogo retorna à universidade ou à academia e então inscreve a realidade observada. É o inscrever que cumpre a mais alta função cognitiva, porque aí ocorre a textualização dos fenômenos sócio-culturais observados no estar-lá (being there), ou seja, a etnografia(15).

Mais do que traduzir a cultura nativa para a disciplina, o ato de escrever realiza uma interpretação, balizada pelas categorias ou pelos conceitos básicos constitutivos da disciplina.

4 O olhar das(os) enfermeiras(os) à etnografia

4.1 A problematização

Podemos identificar através de seus escritos que as enfermeiras que decidem realizar uma pesquisa etnográfica inclinam-se por temas e problemas próximos, advindos de sua prática profissional, de ensino ou de assistência. Todas fazem referência, na introdução ou na problematização, a busca de respostas para o problema através de estudos anteriores, cujos resultados foram insuficientes para esclarecer a questão, podendo-se daí concluir que a etnografia surge como um novo caminho a ser percorrido, resultante de uma trajetória de buscas com resultados incompletos. Várias autoras fazem referência a esta história e a necessidade de se buscar novas perspectivas, novos olhares para um velho e persistente problema(16-19).

Mas existem outras similaridades entre as enfermeiras etnógrafas ao apresentarem a problemática. Uma delas é a inquietude provocada pela permanente necessidade de conhecer o outro, a sua visão de mundo, suas crenças, seus valores, seus saberes e práticas, enfim, seu modo de viver. Este outro não é um ser distante, desconhecido, pelo qual se tem curiosidade. É a equipe de enfermagem, de saúde, o cliente, grupos, famílias, trabalhadores, profissionais e clientes, um coletivo que tem uma história, inserido em um contexto sócio-cultural, com crenças, valores e significados compartilhados e que, em muitos aspectos, diferem daqueles incorporados tradicionalmente em seu saber profissional.

Quando o interesse se volta para o encontro entre profissionais e clientes, a inquietude se concentra em como se dão as interações entre os dois grupos, uma vez que pertencem a dois mundos simbólicos diferentes. Além disso, há a preocupação com o outro e com o seu modo de ser e viver, seu estilo de vida, seus modos de relacionar-se e em situações que enfrenta em seu cotidiano. Daí advindo a necessidade do problema ser estudado no próprio ambiente/contexto em que ocorre.

Outro aspecto que ainda chama atenção do leitor no que se refere à explicitação da problemática é o posicionamento questionador das pesquisadoras quanto aos modelos presentes nas instituições de saúde. Elas se mostram cépticas quanto às possibilidades do modelo biomédico ser capaz de responder satisfatoriamente a questões de interações, de diversidades de visões de mundo, de saúde e doença, das experiências de conviver com a dor, a morte e a exclusão de diferentes naturezas.

A formulação de perguntas de pesquisa de algumas pesquisadoras podem nos ajudar a entender suas inquietações:

Qual o significado da regulação da fecundidade para os adolescentes residentes no bairro X, a partir de seus valores, crenças e práticas no que se refere a ter ou não filhos?(20)

- qual a percepção dos adolescentes em relação às normas e práticas dos serviços estatais de saúde relativos ao Planejamento Familiar, no que se refere ao controle da fecundidade?(20)

- quais as relações que se estabelecem entre as trabalhadoras de enfermagem e as famílias que vivenciam o período pós-parto em Unidade de Alojamento Conjunto?(19)

- quais as perspectivas ou referências que as trabalhadoras adotam, ao interagirem com as famílias que vivenciam o pós-parto, durante a hospitalização?(19)

- como se dá a interface entre a equipe de enfermagem e a família em uma unidade de internação clínica de um hospital pediátrico?(21)

Pode-se constatar que muitas vezes as enfermeiras têm buscado compreender o outro em um contexto próximo, como num hospital/unidade de saúde do município, num distrito, numa área rural, que permite um deslocamento mais fácil. Pode-se pensar que a proximidade do campo seja decorrente da impossibilidade de se afastar de suas famílias, do trabalho, ou mesmo, a falta de financiamento para seus projetos(13). Mas é preciso também suspeitar que o desejo de quem pesquisa seja exatamente o de estudar contextos conhecidos e interagir com pessoas que possam auxiliar na busca de respostas às suas inquietações.

A opção por esta proximidade certamente implica em cuidados especiais a serem tomados pelas pesquisadoras no que se refere ao estranhamento. Algumas autoras, por exemplo, fazem referências sobre suas dificuldades em realizar o estudo em comunidades com as quais compartilham muitos símbolos, significados e práticas de saúde(17). Outras, em complementação, descrevem algumas medidas que permitiram minimizar a familiaridade com o campo e os sujeitos de seus estudos(19,21).

É importante ressaltar que as enfermeiras, ao optarem por pesquisa etnográfica, têm objetivos a curto e a médio prazo, isto é, com o estudo propriamente dito, desejam compreender o universo simbólico do outro, suas perspectivas em relação à vida, saúde, doença. Mas, terminada a etnografia, esperam modificar suas próprias práticas profissionais e, de certa forma, promover uma transformação no sentido de garantir um cuidado culturalmente congruente.

4.2 O quadro teórico das etnografias das enfermeiras

As enfermeiras, de maneira geral, sentem a necessidade de tecer um referencial teórico em que suas áreas de interesse clínico (fecundidade, obstetrícia, gravidez, crescimento e desenvolvimento, epidemiologia, doenças crônicas etc.) se interconectem com os conhecimentos advindos de outros campos, como a educação e a psicologia, com aqueles que darão o pano de fundo para o trabalho etnográfico, ou seja, a antropologia.

Percebe-se que a Enfermagem, iniciante neste aspecto, tem algumas vezes encontrado dificuldades nesta tecitura teórica, levando algumas autoras a fragmentar seu referencial em dois ou três conjuntos separados de literatura.

Por outro lado, aquelas que utilizam conceitos/construtos de teorias antropológicas e sociológicas como a enfermeira que estudou o suicídio em uma comunidade rural(22), ou a que investigou o significado da fecundidade para adolescentes de uma comunidade urbana, a partir da teoria transcultural de Leininger(20), transitam mais facilmente neste importante, porém ainda problemático componente do processo de pesquisa.

De qualquer modo, se confrontamos os conceitos que integram o paradigma da enfermagem(1) – amplamente aceito por nossos pares – com as etnografias consultadas, podemos constatar que os mesmos estão presentes no quadro teórico, sendo que a dimensão cultural está sempre permeando estes conceitos.

Embora em alguns estudos o quadro teórico das etnografias das enfermeiras, ainda se apresente de forma estanque, concentrado em um capítulo isolado, em outros, já se percebe as articulações entre o problema, a teoria e a pesquisa propriamente dita.

4.3 A opção das enfermeiras pela etnografia como caminho metodológico

É no capítulo da metodologia que as enfermeiras se detém a descrever suas concepções sobre etnografia e os motivos de suas opções pela mesma. Uma das estudiosas, por exemplo, assim se refere em seu percurso metodológico: "tendo ao longo de minha trajetória profissional interesse pela maneira com que o cliente entende o cuidado, o estudo etnográfico tornou-se a opção pela qual não poderia afastar-me para ..."(21:52).

Já, outra, afirma em seu referencial metodológico:

para este estudo escolheu-se como metodologia a etnoenfermagem [...] com o fim de explorar a perspectiva única dos/das adolescentes quanto a seus valores, crenças e práticas, sobre a regulação da fecundidade(20:53).

Da mesma forma, outra autora ainda, em seu caminho metodológico, assume o estudo com uma abordagem qualitativa pelo fato da mesma viabilizar a incorporação da rede de símbolos e da intencionalidade, como inerente aos atos, às relações e às estruturas sociais(19).

Mais adiante, na fundamentação do trabalho de campo, declara que por ter seu estudo bases teóricas, fundadas no campo antropológico, além de ter o propósito de compreender o universo cultural que permeia as relações entre as trabalhadoras de enfermagem e as famílias em um campo de saber-fazer específico, o "método etnográfico" foi utilizado como um amplo caminho de descoberta para compreender o fenômeno sob investigação(19).

Percebemos destes três recortes, que as investigações das enfermeiras vinculam-se ao conhecimento antropológico e/ou à teoria transcultural de Leininger que se fundamenta em pressupostos da antropologia cultural. Além disso, as aproximações das enfermeiras com a etnografia levam-nas a realizar cursos em disciplinas sobre cultura, e a aprofundar seus conhecimentos antropológicos, através de leituras de textos publicados nessa área(21).

Fica ainda constatada a articulação entre o problema, a questão de pesquisa, seus objetivos e propósitos, o referencial teórico e a opção metodológica das autoras.

Leininger, a precursora dos estudos antropológicos em enfermagem, situa a etnografia com um dos etnométodos mais antigos das ciências sociais e argumenta que a mesma continua a ser usada como o método nuclear, seja na antropologia e ainda por muitas outras disciplinas. Esta teórica tem definido etnografia como sendo um relato denso e sistemático de

como as pessoas de diferentes culturas ou subculturas vivem em seus ambientes familiares, naturais e não naturais, com referência às suas crenças, valores e estilos de vida(10:46).

Já, para uma estudiosa brasileira(21), a etnografia se constitui na metodologia de estudo, que tem por objetivo conhecer o ponto de vista do outro, sendo a cultura um conceito chave deste processo. Outra enfermeira, assumindo significado similar, afirma que o

lançar-se no percurso etnográfico significa não ter pretensões de captar explicações derradeiras, ou verdades absolutas; o desenho é aberto à invenção, à obtenção de dados, ao descobrimento, à análise e à interpretação (19:70).

4.4 O trabalho de campo: o pesquisar das enfermeiras

As enfermeiras referem-se ao campo como o espaço geográfico, simbólico e de relações aonde se desenvolve uma parte significativa do seu fazer-pesquisar. Este campo pode ser uma unidade de internação, uma clínica, um posto de saúde, uma empresa, uma comunidade. Para que possa nele entrar, a enfermeira negocia com clientes, direção, apresenta seu projeto, solicita permissão para seu trabalho, compromete-se a garantir os direitos dos sujeitos envolvidos e a apresentar o texto final aos interessados.

É no campo que as enfermeiras desenvolvem a observação participante, que compreende o olhar e o ouvir do antropólogo. No entanto, no interstício mesmo da pesquisa, enfrentam situações em que são chamadas a intervir. Portanto, o campo de estudo, inevitavelmente, é o mesmo campo do cuidado, da ação profissional, e não apenas e tão somente o ato cognitivo, como referem os antropólogos. Deste modo, as enfermeiras enfrentam dilemas de diversas ordens, e que são próprios de sua disciplina.

As enfermeiras, durante o trabalho de campo, revelam em seus textos, a dificuldade que têm em assumir algumas atitudes que para o antropólogo seriam esperadas, como por exemplo, o desempenho do papel de aprendiz, quando, na lida cotidiana do cuidado, são elas que tomam a frente, lideram, localizam-se em posições hierárquicas mais tendentes à verticalização, de acordo com o modelo hegemônico de assistência à saúde.

No que se refere ao processo de registro, as enfermeiras são unânimes em argumentar que os atos de olhar e de ouvir se dão em concomitância com o processo inicial de análise etnográfica.

4.5 O texto - a construção do conhecimento

Nas primeiras etnografias havia uma preocupação em descrever de forma detalhada os achados da pesquisa, porque se entendia que, deste modo, se estaria garantindo as vozes dos sujeitos da pesquisa. Na atualidade observa-se que, com a maior articulação e domínio da relação entre teoria e pesquisa, as etnografias das enfermeiras, além de descrever em pormenores os achados (considerando-os aqui, do ponto de vista emic)b, articulam o processo descritivo com a interpretação desses achados à luz das teorias antropológicas e de enfermagem, o que vem a se constituir num novo conhecimento para guiar a prática.

5 Síntese reflexiva

Um olhar apressado às etnografias das enfermeiras pode nos levar a concluir que as mesmas são semelhantes, ou seja, que procuram reproduzir o fazer do antropólogo. Entretanto, aguçando um pouco mais o olhar, percebemos que algo mais particular acontece aí e que este algo deixa entrever uma interface entre a antropologia e a enfermagem, possibilitando uma forma própria de se fazer etnografia, que aqui chamamos de etnoenfermagem, inspiradas nos estudos de Madeleine Leininger. Além disso, a etnografia em enfermagem se focaliza nos entornos do cuidado humano. Este modo de fazer particularizado não se dá apenas no trabalho de campo, mas principia ainda nos primeiros delineamentos do problema.

Em suma, a etnoenfermagem mostra-se como um processo que emerge da prática e a ela retorna, com indicações, propósitos, pressupostos, fundamentação no conhecimento antropológico e em enfermagem transcultural, um fazer-pesquisar próprio, um campo específico e um texto próprio da disciplina de enfermagem que procura dar respostas à prática e às exigências das construções dos saberes profissionais.

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Data de recebimento: 30/04/2003

Data de aprovação: 26/06/2003

E-mail do autor: marisa@nfr.ufsc.br

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    Texto apresentado no 12° SENPE, de 27 a 30 de abril de 2003, em Porto Seguro – Bahia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2003

    Histórico

    • Recebido
      30 Abr 2003
    • Aceito
      26 Jun 2003
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