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Ensino de graduação em enfermagem da Unicamp: políticas e práticas

Graduate nursing teaching at Unicamp: policies and practices

Enseñanza de graduación en enfermería de Unicamp: políticas y prácticas

Resumos

Os autores analisam o ensino de Graduação em Enfermagem da Unicamp a partir da implantação de um novo currículo em 1997, bem como sua adequação às Diretrizes Curriculares emanadas da LDB. No plano teórico, as mudanças realizadas subvertem a ordem instituída. Operar reforma curricular numa conjuntura de crise financeira e de gestão da universidade pública, reflexo da aplicação do ideário neoliberal nas políticas públicas de educação que tem provocado a valorização crescente da produção científica e das atividades de extensão no cotidiano docente em detrimento das iniciativas que visem à qualidade do ensino de graduação, tem sido uma tarefa árdua. As dificuldades encontradas exigiram algumas reflexões e a proposição de sete teses fundamentais para subsidiar a análise de problemas e orientar as medidas de intervenção necessárias. Neste texto enfoca-se uma delas, as Políticas e as Práticas no ensino de enfermagem.

enfermagem; educação em enfermagem; recursos humanos; política


The authors analyse teaching at the graduate nursing program from Unicamp (SP), starting from the introduction of a new curriculum in 1997, in accordance to the curricular standards taken from Federal Law concerning education. In theory, the changes implemented subvert the established order. It has been a hard task to operate curricular reform in a public university that is experiencing a financial and management crisis - reflections of a neoliberal ideology in public education policies, which increasingly values scientific production to the detriment of iniciatives toward quality teaching. The difficulties found demanded some considerations and the proposition of seven fundamental thesis in order to subsidize problem analysis and guide necessary interventions. Among them, the theme Policies and Practice in nursing teaching is focused in this text.

nursing; education nursing; manpower; politics


Los autores analizan la enseñanza de Graduación en Enfermería de Unicamp a partir de la implantación de un nuevo Currículo en 1997, así como su adecuación a las Directrices Curriculares derivadas de la LDB. En el plan teórico, los cambios realizados subvierten el orden instituido. Llevar a cabo una reforma curricular en una coyuntura de crisis financiera y de gestión de la universidad pública ha sido una tarea ardua. Las dificultades encontradas exigieron algunas reflexiones, cuyo resultado es la proposición de siete tesis fundamentales para subsidiar el análisis de los problemas y orientar las medidas de intervención necesarias. En este texto se enfoca una de ellas, las Políticas y Prácticas en la enseñanza de enfermería.

enfermería; educación en enfermería; recursos humanos; política


Ensino de graduação em enfermagem da Unicamp: políticas e práticas

Graduate nursing teaching at Unicamp: policies and practices

Enseñanza de graduación en enfermería de Unicamp: políticas y prácticas

Márcia Regina NozawaI; Débora Isane Ratner KirschbaumI; Mauro Antônio Pires Dias da SilvaI; Eliete Maria SilvaI

IEnfermeiro, Doutor, Professor Assistente, Departamento de Enfermagem da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. E-mail do autor:nozawa@unicamp.br

RESUMO

Os autores analisam o ensino de Graduação em Enfermagem da Unicamp a partir da implantação de um novo currículo em 1997, bem como sua adequação às Diretrizes Curriculares emanadas da LDB. No plano teórico, as mudanças realizadas subvertem a ordem instituída. Operar reforma curricular numa conjuntura de crise financeira e de gestão da universidade pública, reflexo da aplicação do ideário neoliberal nas políticas públicas de educação que tem provocado a valorização crescente da produção científica e das atividades de extensão no cotidiano docente em detrimento das iniciativas que visem à qualidade do ensino de graduação, tem sido uma tarefa árdua. As dificuldades encontradas exigiram algumas reflexões e a proposição de sete teses fundamentais para subsidiar a análise de problemas e orientar as medidas de intervenção necessárias. Neste texto enfoca-se uma delas, as Políticas e as Práticas no ensino de enfermagem.

Descritores: enfermagem; educação em enfermagem; recursos humanos; política

ABSTRACT

The authors analyse teaching at the graduate nursing program from Unicamp (SP), starting from the introduction of a new curriculum in 1997, in accordance to the curricular standards taken from Federal Law concerning education. In theory, the changes implemented subvert the established order. It has been a hard task to operate curricular reform in a public university that is experiencing a financial and management crisis - reflections of a neoliberal ideology in public education policies, which increasingly values scientific production to the detriment of iniciatives toward quality teaching. The difficulties found demanded some considerations and the proposition of seven fundamental thesis in order to subsidize problem analysis and guide necessary interventions. Among them, the theme Policies and Practice in nursing teaching is focused in this text.

Descriptors: nursing; education nursing; manpower; politics

RESUMEN

Los autores analizan la enseñanza de Graduación en Enfermería de Unicamp a partir de la implantación de un nuevo Currículo en 1997, así como su adecuación a las Directrices Curriculares derivadas de la LDB. En el plan teórico, los cambios realizados subvierten el orden instituido. Llevar a cabo una reforma curricular en una coyuntura de crisis financiera y de gestión de la universidad pública ha sido una tarea ardua. Las dificultades encontradas exigieron algunas reflexiones, cuyo resultado es la proposición de siete tesis fundamentales para subsidiar el análisis de los problemas y orientar las medidas de intervención necesarias. En este texto se enfoca una de ellas, las Políticas y Prácticas en la enseñanza de enfermería.

Descriptores: enfermería; educación en enfermería; recursos humanos; política.

1 Introdução

Embora a primeira discussão sobre a necessidade de reforma curricular do Curso de Graduação em Enfermagem da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tenha ocorrido, por iniciativa de alunos, no ano de 1983, a implantação de um novo currículo de graduação ocorreu somente em 1997.

Desde então, diversas reflexões acerca da operacionalização do novo currículo têm sido realizadas por docentes e alunos, tanto em espaços coletivos ampliados e institucionais quanto no cotidiano de ensino por pequenos grupos preocupados em identificar e analisar no próprio desenvolvimento do processo de mudança. Os produtos parciais de tal reforma.

Essas reflexões estimularam os autores a elaborar sete teses abaixo descritas, sempre compreendidas em sua íntima articulação embora abordadas separadamente, que expressam um esforço de sistematização teórica para auxiliar a análise crítica do ensino oferecido e, conseqüentemente, subsidiar eventuais medidas de intervenção no novo currículo. A divulgação de cada uma dessas teses tem se dado pela consideração dos autores acerca do nível de consistência teórica do trabalho de reflexão, ainda que sempre se admita seu caráter provisório. Simplicidade & Complexidade: a noção de que a complexidade das ações de saúde e de enfermagem significa aquelas realizadas exclusivamente em serviços especializados é um mito que necessita ser des-construído. A tarefa de promover saúde implica uma noção e uma prática complexa que demanda uma percepção ampliada de saúde e um trabalho interdisciplinar, socialmente comprometido e criativo, especialmente no tocante à atenção primária de saúde; Fragmentação X Multiplicidade: o ser humano deve ser percebido nas suas múltiplas determinações, superando o enfoque fragmentário que se estrutura na perspectiva do modelo biomédico, com ênfase em órgãos e subsistemas orgânicos; Homogeneidade e Diversidade:tornar transparente as diferenças para superar aparentes homogeneidades, tanto em relação a quem é cuidado, quanto a quem se propõe a cuidar e ensinar o cuidado; Público X Privado:as distinções fundamentais entre o sentido de público e privado devem ser recuperadas, tanto na esfera da macro-política quanto no ensino e na conformação do ensino das relações profissionais, acadêmicas e pessoais; Políticas e Práticas: a análise dos limites e possibilidades das políticas em consideração às práticas de sujeitos concretos na conformação de uma dada realidade; Competência Técnica (tecnicismo)e Reflexão Crítica: o domínio do saber e do saber fazer deve considerar tanto a aquisição de competência técnica quanto a reflexão crítica da prática que pressupõe uma revisão dinâmica dos modos de ensinar e de aprender; Quantidade e Qualidade: problematizar a naturalização da equivalência desses conceitos é fundamental para a discriminação de interesses em jogo no entendimento de que a qualidade é medida apenas pela quantidade.

Esta reflexão tem por objetivo analisar os limites e possibilidades no ensino de Graduação em Enfermagem na Unicamp em consideração ao currículo implantado em 1997, à política nacional de educação, o projeto de reforma da previdência social e seus reflexos na universidade.

2 Contexto histórico de criação do curso de graduação em enfermagem da Unicamp

Com a Resolução nº 44 de 1966, o Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo(1) autoriza a instalação de uma faculdade de enfermagem na Unicamp em 1966, ano em que se dá a criação oficial da universidade. Contudo, a Graduação em Enfermagem, bacharelado e licenciatura, teve início somente no ano 1978, e conforma-se como tal dentro da FCM, unidade de ensino também responsável pelo curso de Medicina, o mais antigo da universidade, criado em 1959 mas autorizado a funcionar somente em 1963(2) . Mais recentemente, no ano de 2002, teve início o curso de Fonoaudiologia, numa parceria entre a FCM e o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

A Unicamp, como entidade autárquica, foi legalmente instituída em dezembro de 1962, mas, efetivamente, passou a existir somente em 1966 quando incorporou a então Faculdade de Medicina de Campinas. Esta, mediante acordo firmado, funcionou nas instalações da Santa Casa de Misericórdia de Campinas até o ano de 1985, tendo em vista que a construção do Hospital das Clínicas (HC) ocorreu no período de 1975 a 1986, muito embora o atendimento ambulatorial já funcionasse nas novas instalações desde 1979(2) .

De 1966 até 1978, a Unicamp foi dirigida pelo professor Zeferino Vaz (ex-diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, e da Universidade de Brasília) nomeado reitor por decreto do governador do Estado, grande idealizador que aliava em seu perfil características autoritárias e paternalistas, imprimindo um estilo de administração nada institucional. Os professores eram contratados por mérito, não havia concurso, a carreira docente não estava definida e as decisões na universidade eram tomadas caso a caso(2,3) .

Em 1978, quando se encerra o período previsto de implantação, a Unicamp contava com cerca de 1000 docentes e 14 unidades de ensino (2,3) ocorre a criação do Curso de Graduação em Enfermagem na universidade. Sabe-se que, a convite do então diretor da FCM, um enfermeiro não pertencente aos quadros da Unicamp, recebeu a incumbência de formalizar o projeto de criação do Curso de Enfermagem e iniciar sua implantação.

O argumento central para a criação do curso de Enfermagem baseava-se na necessidade emergente de formação de mão-de-obra para o Hospital das Clínicas da Unicamp, em fase final de construção, e para a rede básica de saúde do município de Campinas em processo de implantação(1).

No panorama da política estatal de saúde, observa-se, desde meados da década de 60, a hegemonia da medicina previdenciária em relação à Saúde Pública, impulsionada pelo processo de industrialização e urbanização com o surgimento do proletariado urbano e da classe média que favoreceram a instituição da Previdência Social nos anos 30 para responder às demandas político-econômicas de recuperação da saúde dos trabalhadores. Essa hegemonia se expressa no modelo assistencial voltado à acumulação de capital através da expansão de um complexo médico-hospitalar, com a tecnificação dos atos médicos, o privilégio à assistência hospitalar, a divisão técnica do trabalho médico, a especialização e assalariamento médico e expansão da indústria de medicamentos, instrumentais e equipamentos (4) .

Em meados da década de 70, alguns municípios, entre eles, Campinas, Londrina, Montes Claros e Niterói, governados por prefeituras que se opunham ao regime militar, começam experiências de organização de serviços e de formulação de políticas locais de saúde, visando estender a atenção à saúde à população total, em especial aos segmentos situados nas periferias urbanas, baseados em modelos de organização de serviços de atenção primária ou medicina comunitária(5).

Em 1978, Campinas já contava com uma rede básica de saúde composta por 20 Postos Comunitários de Saúde distribuídos em bairros periféricos, nos quais já atuavam, predominantemente, médicos e auxiliares de saúde pública que eram recrutados na própria comunidade local e recebiam treinamento em serviço. Nesse ano, foram contratadas as primeiras enfermeiras com a função de desenvolver ações de promoção e proteção à saúde, de diagnóstico e tratamento de agravos mais freqüentes, de organização de serviço, treinamento e supervisão dos auxiliares de saúde pública(5,6).

O currículo adotado, e em vigor até o ano de 1996, correspondia em termos gerais, ao currículo mínimo para os cursos de graduação em enfermagem, instituído pelo Parecer nº 163/72 do Conselho Federal de Educação(7).

Obedecendo ao currículo previsto, as disciplinas do tronco básico do Curso de Graduação em Enfermagem, concentradas no primeiro ano, foram ministradas, predominantemente, pelo Instituto de Biologia e também por alguns departamentos da FCM. A partir de 1979, quando teve início a oferta de disciplinas específicas de enfermagem, do que era denominado de tronco profissionalizante, houve a participação de diversos enfermeiros, entre eles, alguns originários do quadro de pessoal do então Hospital das Clínicas visto que não havia um corpo docente constituído para esse fim.

A instalação posterior do Departamento de Enfermagem, implicou a incorporação gradual e não institucional de enfermeiros para atender às necessidades de cada nova disciplina de graduação que ia sendo oferecida. A partir desse conjunto de profissionais, a criação oficial do Departamento de Enfermagem na estrutura da FCM, com seis docentes, ocorreria somente no ano de 1981 (8). Desde então, o Departamento de Enfermagem mantêm-se subordinado à FCM, como o único departamento de ensino, entre os diversos existentes, exclusivamente composto por docentes não médicos.

A estrutura curricular oferecia uma formação compartimentalizada por meio de disciplinas que reproduziam as especialidades médicas e voltavam-se, de modo predominante, às ações de saúde de caráter curativo, adequando-se ao modelo econômico excludente e concentrador de rendas de então, que visava, à medicalização da saúde e tecnificação do ato médico e conseqüente expansão dos interesses capitalistas na saúde. Privilegiava, assim, a assistência individual hospitalar, dentro de um enfoque bio-médico em detrimento tanto das necessidades sociais de saúde, quanto do processo de redemocratização política do país no final de 70 e década de 80, expresso, no campo da saúde, pelo movimento sanitário que culminou na VIII Conferência Nacional da Saúde e proposição do SUS baseado na concepção de saúde como direito de cidadania e dever do Estado.

Os conteúdos e cargas horárias eram distribuídos nas diferentes especialidades de enfermagem (enfermagem fundamental, médica, cirúrgica, pediátrica, ginecológica, obstétrica, psiquiátrica, em doenças transmissíveis, saúde pública, administração em enfermagem, etc) e cada uma delas era desenvolvida por meio de duas disciplinas acadêmicas distintas, uma teórica e outra prática, com programas de ensino específicos. A junção de algumas dessas especialidades organizava a subdivisão do corpo docente em quatro distintas áreas de ensino: Enfermagem Fundamental, Enfermagem Médico-Cirúrgica, Enfermagem Materno-Infantil, Administração em Enfermagem. A coordenação de Graduação mais os representantes de cada uma das áreas de ensino compunham a Comissão de Ensino de Graduação, órgão colegiado assessor ao Departamento de Enfermagem - DE para as questões relativas ao ensino de graduação. Nessa época, as disciplinas de Enfermagem em Saúde Pública estavam alocadas na área de Administração em Enfermagem e as disciplinas de Enfermagem Psiquiátrica e de Enfermagem em Moléstias Infecciosas tomavam parte da área de ensino de Enfermagem Médico-Cirúrgica.

Desse modo, 91,% da carga horária do tronco profissional era dirigido, predominantemente, à assistência individual ao paciente dentro do complexo de serviços hospitalares da universidade e os alunos tinham os conteúdos específicos de enfermagem em saúde pública e de saúde mental somente no penúltimo semestre da graduação mediante uma carga horária teórico-prática de 210 e 135 horas, respectivamente(9). O curso disponibilizava 30 vagas anuais em período integral e era passível de integralização em oito semestres ou nove semestres, respectivamente,na modalidade bacharelado (245 créditos ou 3675 horas) e licenciatura (36 créditos ou 540 horas)(9).

Em outubro de 1983, realizou-se, por iniciativa de alunos, o primeiro seminário de avaliação curricular. Nessa ocasião, o DE contava com 15 docentes, cinco deles admitidos naquele mesmo ano, entre os quais apenas dois portavam titulação acadêmica, um mestre e um livre docente, e outro era mestrando.Assim, o grupo de docentes compunha-se majoritariamente de graduados em Enfermagem, entre eles havia alguns especialistas. A admissão de docente para as disciplinas de Enfermagem em Saúde Pública ocorreu nesse mesmo ano, até então, docentes de outras áreas assumiam o ensino nessas disciplinas. Em decorrência desse fato, os alunos das primeiras turmas tomaram para si a responsabilidade de viabilizar o estágio na rede básica de saúde do município, bem como de buscar, no quadro de enfermeiros dessa rede, profissionais que pudessem lhes oferecer supervisão.

Outros dois seminários de avaliação foram realizados nos anos de 1985 e 1991, organizados pela própria Comissão de Ensino de Graduação.E stes trataram de identificar problemas e propor medidas para aprimorar o ensino ministrado.

Nos últimos anos da década de 80 e primeiros da década de 90, docentes de algumas disciplinas que desenvolviam o ensino prático em campos hospitalares, tais como, fundamentos de enfermagem, enfermagem ginecológica e obstétrica, enfermagem cirúrgica e enfermagem psiquiátrica, estenderam o ensino a unidades básicas de rede municipal de saúde de Campinas. Tendo em vista a necessidade de desenvolver nos alunos determinadas competências técnicas as quais dificilmente eram possibilitadas em unidades de internação ou ambulatoriais de um hospital especializado em decorrência de suas características e finalidade.

A constatação dessa mudança, não oficializada, aliada à crítica da inadequação do currículo efetivada, principalmente, por docentes da área de enfermagem de saúde pública e de saúde mental, que já acumulavam experiência de ensino em serviços, direta ou indiretamente, vinculados à rede de saúde do município, reforçou a necessidade de iniciar um processo de revisão e reforma curricular.

De modo mais organizado, no ano de 1993, por ocasião do evento comemorativo de 15 do Curso de Graduação, iniciou-se um movimento de avaliação curricular. Este se estendeu pelos três anos subseqüentes e resultou na proposta de um novo currículo para a graduação, implantado em 1997.

Cabe ressaltar que o processo interno de revisão curricular na enfermagem da Unicamp, apesar de tardio, foi reiterado pelo movimento nacional de crítica ao currículo mínimo de enfermagem, em vigor desde 1972, que se desenvolveu entre os anos de 1986 e 1991. Liderado pela Associação Brasileira de Enfermagem - ABEn, com a participação da Comissão de Especialistas em Enfermagem da Secretaria de Ensino Superior do Ministério da Educação e escolas de enfermagem de todo o país, através de fóruns regionais de escolas de enfermagem, seminários regionais, nacionais e oficinas de trabalho, essa iniciativa culminou com a proposição de um novo currículo mínimo de enfermagem em 1991(1). Este currículo foi aprovado em 19941 1 Diário Oficial da União de 16.12.1994, nº 238, Seção 1, página 19.801. .

3 Condições atuais de produção do ensino

No plano das proposições, o novo currículo de Graduação em Enfermagem da Unicamp, comparado ao anterior, previa uma subversão da ordem instituída pela inversão de eixos norteadores do ensino. O aprendizado do processo saúde-doença partiria do enfoque coletivo em direção ao individual, reconhecendo as condições sociais, políticas, culturais e biológicas de sua produção.

Apesar da adoção de um currículo reformulado, o corpo docente tem resistido à necessária revisão da organização interna de trabalho e mantém a mesma divisão anterior de áreas de ensino. Esta, freqüentemente, obstaculiza a análise dos problemas e necessidades da graduação e a aplicação de medidas de resolução de modo articulado.

Somente em 1999 iniciou-se o programa de pós-graduação em enfermagem nível mestrado na Unicamp. Desde então, as exigências quantitativas de produção científica do corpo docente, impostas pelas instâncias de avaliação dos programas, somadas aos indicadores institucionais de avaliação de desempenho docente aplicados nos últimos anos acabaram por conformar uma maior preocupação e atenção dos professores nessa direção com prejuízos evidentes na docência.

O objetivo de modernização e racionalização das atividades estatais define que no setor dos serviços não exclusivos do Estado, ou seja, aquele em que o Estado pode prover mas não responde pela execução direta, tampouco define uma política reguladora dessa prestação de serviços, inclui-se a educação e a saúde. Essa reforma, com o pressuposto ideológico básico de que o mercado tem racionalidade sócio-política e é o agente principal do bem-estar da República, coloca os direitos sociais, tais como, educação, saúde e cultura, no setor de serviços definidos pelo mercado. Desse modo, "a reforma encolhe o espaço público democrático dos direitos e amplia o espaço privado" não somente onde seria previsível (atividades ligadas à produção econômica) "mas também onde não é admissível - no campo dos direitos sociais conquistados"(3:6).

Na racionalidade de mercado, a posição da universidade no setor de prestação de serviços conforma determinados sentidos tanto à autonomia quanto à qualidade, avaliação e flexibilização universitária. A autonomia reduz-se à gestão empresarial da instituição, ao controle de receitas e despesas, e à possibilidade de captação de recursos privados. A flexibilização traduz-se na eliminação da carreira docente, da estabilidade de emprego, de concursos públicos e da dedicação exclusiva; da simplificação na gestão financeira para proteger as fontes não públicas de financiamento; na adaptação dos currículos às diferentes necessidades regionais, obedecendo a um sentido de social como empresarial e na separação entre docência e pesquisa, a primeira na universidade e a segunda em centros autônomos. A avaliação toma a qualidade como competência e excelência, medida pela produtividade baseada em quanto se produz, em qual tempo e com qual custo. Em outras palavras, a qualidade tornou-se sinônimo de quantidade, no entanto, a medida de produtividade não se aplica à docência, visto que ela não faz parte da qualidade universitária(3).

A proposta do MEC, concretizada na atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) também é direcionada por uma racionalidade financeira em detrimento da social(10).

Um dos reflexos da não priorização governamental da educação pública tem sido a degradação das condições gerais de trabalho do docente, tanto pela não recomposição de claros gerados pelas aposentadorias ocorridas na década de 90, quanto pela diminuição de recursos orçamentários para custeio e investimento, com comprometimento dos salários que ano a ano acumulam perdas em relação aos índices de inflação. Esse cenário tem provocado a crescente adesão do corpo docente das universidades públicas às atividades de extensão que, por via institucional, permitem alguma forma de acréscimo salarial pela prestação de serviços, amparados em convênios, seja pela oferta, cada vez mais ampla e diversificada, de cursos pagos de extensão universitária.

Cerca de 85% do corpo docente do DE da FCM, Unicamp, desenvolvem atividades assistenciais nas unidades do complexo de saúde da Unicamp e em serviços da rede municipal de saúde. Apesar dessa atividade representar uma via potencial de integração ensino-serviço, ela tem se formalizado por interesses e motivações individuais. Portanto, carecendo de articulação interna que permita apresentar-se como projeto coletivo de aproximação aos serviços na perspectiva de integrar assistência, ensino e pesquisa.

A partir do concurso vestibular 2000, houve ampliação de dez vagas de graduação, conformando um ingresso anual de 40 alunos, sem crescimento do corpo docente já afetado pelas aposentadorias, sem reposição, ocorridas ao longo da última década. Em virtude de o pagamento das aposentadorias dos docentes das universidades públicas paulistas ser mantido com recursos orçamentários próprios, a manutenção do quadro docente ativo tem sido gravemente prejudicada.

Atualmente, o DE compõe-se de 27 docentes, 26 doutores e uma doutoranda. Em relação à carreira, seis docentes são professores associados, 20 assistentes doutor e um professor assistente. Ao longo dos últimos anos, vários enfermeiros têm compartilhado conosco as responsabilidades no ensino de graduação, mediante contratos temporários ou transferência para o nosso Departamento. Assim, contamos, também, com oito enfermeiros da carreira assistencial, entre esses, um pós-doutor, um doutor, um doutorando, um mestre e dois mestrandos.

Considerando que o atual quadro docente, já deficitário, encontra-se diante de redução drástica pela formalização de pedidos de aposentadoria de nove docentes, cerca de 30% do corpo docente, em decorrência da reforma previdenciária em processo de votação no Congresso Nacional, ao final do corrente ano seremos 23 docentes e 15 enfermeiros. Entendemos que este fato seja mais uma forma de expressão do movimento de precarização das condições de trabalho na universidade, uma vez que embora os enfermeiros respondam às necessidades imediatas do ensino de graduação, não estando alocados na carreira docente além de sofrerem diferença salarial significativa, estão privados dos direitos específicos que a docência lhes possibilitaria.

Na mesma direção, o projeto de reforma tributária representa uma ameaça concreta ao futuro das universidades estaduais paulistas que se mantêm com uma quota-parte do ICMS arrecadado. A continuarmos nessa direção, em prazo relativamente curto, voltaremos, no mínimo, às condições semelhantes aos anos iniciais do Curso, ou seja, com a participação majoritária de enfermeiros não docentes no ensino.

4 Considerações acerca das possibilidades de enfrentamentos dos desafios

Frente às atuais condições, como manter e aprimorar a graduação? Quais os mecanismos possíveis para recuperar a devida valorização da graduação? Seria possível a estruturação de mecanismos internos de re-valorizar a graduação se, institucionalmente, este âmbito de atuação não é objetivamente priorizado? Como viabilizar o estágio curricular supervisionado diante da insuficiente integração academia-serviço intra e extra-muros? Como buscar a necessária articulação institucional da graduação com a pós-graduação se as políticas nacionais que as orienta também não são minimamente integradas?

Diante do exposto, é clara a importância de construir condições mais favoráveis para a elaboração de um projeto político-pedagógico que leve em consideração a urgente necessidade de incluirmos o novo cenário como um problema intrínseco à produção de nossas práticas. Trata-se de descobrir como seria possível transformar situações tão adversas em momentos de aprendizagem e de construção de saídas a partir da fundação de novos laços sociais. Como, por exemplo, os que possibilitem a instauração de um processo de responsabilização do docente com a formação dos colegas que não compõem a carreira docente, e do resgate das atividades de planejamento, sob a coordenação da Comissão de Graduação que deve apropriar-se da discussão do processo ensino-aprendizagem como seu objeto de trabalho ao invés de atender a demandas que visam principalmente a manutenção do funcionamento das atividades meio. Este posicionamento efetivo, em que pesem as falas que apontam para a direção contrária, talvez contribua ainda mais para a manutenção de uma certa ordem tecnocrática que subjuga as discussões das questões pedagógicas, reforçando mais ainda as condições para o predomínio da racionalidade instrumental.

Data de recebimento:01/09/2003

Data de aprovação: 30/03/2004

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  • 1
    Diário Oficial da União de 16.12.1994, nº 238, Seção 1, página 19.801.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Aceito
      30 Mar 2004
    • Recebido
      01 Set 2003
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