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Anatomia: a ordem do corpo

Anatomía: el orden del cuerpo

Anatomy: the bodily order

Resumos

Neste ensaio procuro mostrar a proveniência dos saberes que determinam uma certa visão que a equipe de saúde, sobretudo a enfermagem, desenvolveu sobre o corpo, especialmente o corpo doente. Entendo que esses saberes determinam maneiras de cuidar dos corpos hospitalizados. Apoiada por textos de Foucault analiso a disciplina de Anatomia. Apresento uma breve trajetória de sua construção como campo de saber, desde Vesalius até os dias de hoje, quando encontramos corpos plastinados e digitalizados. Destaco o cadáver como o primeiro contato da estudante com um corpo humano e observo que as ilustrações de livros de Anatomia privilegiam corpos masculinos e brancos. Distingo o corpo como uma invenção radicalmente histórica e observo que somos culturalmente treinados para percebê-lo, de maneira organizada, de determinados ângulos e usando certas lentes.

anatomia; corpo; história


En este ensayo procuro mostrar la procedencia de los saberes que han determinado una cierta visión que el equipo de salud, sobre todo la enfermería, ha desarrollado sobre el cuerpo, especialmente sobre el cuerpo enfermo. Entiendo que esos saberes determinan maneras de cuidar de los cuerpos en los hospitales. Apoyada por los textos de Foucault, analizo la disciplina de Anatomía. Presento una breve trayectoria de la construcción de la Anatomía como disciplina y como campo de saber. Desde Vesalius hasta nuestros días, cuando encontramos cuerpos (moldeados -con arcilla o resinas sintéticas-) y digitalizados. Pongo de relieve el cadáver como el primer contacto del estudiante con un cuerpo humano y me fijo que las ilustraciones de los libros de Anatomía dan privilegio a los cuerpos masculinos y blancos. Distingo el cuerpo como una invención radicalmente histórica y observo, que somos culturalmente entrenados a percibirlo de manera organizada, bajo determinados ángulos y usando determinadas lentes.

anatomía; cuerpo; historia


In this essay I try to show the source of the knowledge that determines a certain view that the healthcare team, particularly the nursing team, has developed on the body, especially the sick body. I understand that this knowledge determines ways of caring for the hospitalized bodies. Based on texts by Foucault I analyze the subject of Anatomy. I present a brief history of its construction as a field of knowledge since Versalius until today, when we find plastinated and digitized bodies. I highlight the cadaver as the student's first contact with a human body and observe that the illustrations contained in Anatomy books privilege male and white bodies. I characterize the body as a radically historical invention and observe that we are culturally trained to perceive it, in an organized way, from given viewpoints and by using certain lenses.

anatomy; body; history


HISTÓRIA DA ENFERMAGEM

Anatomia: a ordem do corpo* * Texto produzido a partir de Kruse MHL. Os poderes dos corpos frios - das coisas que se ensinam às enfermeiras [tese de doutorado em Educação]. Porto Alegre (RS): Faculdade de Educação: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2003. 157f.

Anatomy: the bodily order

Anatomía: el orden del cuerpo

Maria Henriqueta Luce Kruse

Enfermeira, Doutora em Educação, Professora Adjunta da Escola de Enfermagem da UFRGS. E-mail do autor: kruse@uol.com.br

RESUMO

Neste ensaio procuro mostrar a proveniência dos saberes que determinam uma certa visão que a equipe de saúde, sobretudo a enfermagem, desenvolveu sobre o corpo, especialmente o corpo doente. Entendo que esses saberes determinam maneiras de cuidar dos corpos hospitalizados. Apoiada por textos de Foucault analiso a disciplina de Anatomia. Apresento uma breve trajetória de sua construção como campo de saber, desde Vesalius até os dias de hoje, quando encontramos corpos plastinados e digitalizados. Destaco o cadáver como o primeiro contato da estudante com um corpo humano e observo que as ilustrações de livros de Anatomia privilegiam corpos masculinos e brancos. Distingo o corpo como uma invenção radicalmente histórica e observo que somos culturalmente treinados para percebê-lo, de maneira organizada, de determinados ângulos e usando certas lentes.

Descritores: anatomia; corpo; história

ABSTRACT

In this essay I try to show the source of the knowledge that determines a certain view that the healthcare team, particularly the nursing team, has developed on the body, especially the sick body. I understand that this knowledge determines ways of caring for the hospitalized bodies. Based on texts by Foucault I analyze the subject of Anatomy. I present a brief history of its construction as a field of knowledge since Versalius until today, when we find plastinated and digitized bodies. I highlight the cadaver as the student's first contact with a human body and observe that the illustrations contained in Anatomy books privilege male and white bodies. I characterize the body as a radically historical invention and observe that we are culturally trained to perceive it, in an organized way, from given viewpoints and by using certain lenses.

Descriptors: anatomy; body; history

RESUMEN

En este ensayo procuro mostrar la procedencia de los saberes que han determinado una cierta visión que el equipo de salud, sobre todo la enfermería, ha desarrollado sobre el cuerpo, especialmente sobre el cuerpo enfermo. Entiendo que esos saberes determinan maneras de cuidar de los cuerpos en los hospitales. Apoyada por los textos de Foucault, analizo la disciplina de Anatomía. Presento una breve trayectoria de la construcción de la Anatomía como disciplina y como campo de saber. Desde Vesalius hasta nuestros días, cuando encontramos cuerpos (moldeados -con arcilla o resinas sintéticas-) y digitalizados. Pongo de relieve el cadáver como el primer contacto del estudiante con un cuerpo humano y me fijo que las ilustraciones de los libros de Anatomía dan privilegio a los cuerpos masculinos y blancos. Distingo el cuerpo como una invención radicalmente histórica y observo, que somos culturalmente entrenados a percibirlo de manera organizada, bajo determinados ángulos y usando determinadas lentes.

Descriptores: anatomía; cuerpo; historia

1 Expondo minha argumentação

[...] meu projeto não é o de fazer um trabalho de historiador, mas descobrir por que e como se estabelecem relações entre os acontecimentos discursivos. Se faço isso, é com o objetivo de saber o que somos hoje. [...] Em um certo sentido, não somos nada além do que aquilo que foi dito, há séculos, meses, semanas[...].(1:258)

O corpo para a equipe de saúde é aquilo que funciona ou não funciona. Aquilo que pode ser descrito tal como é, já que sua existência é indiscutível, independente de quem observa. Assim, existiria um corpo natural, em estado puro que, como tal, possuiria uma essência e uma humanidade naturais, portanto seria um efeito da natureza, e que, assim, não dependeria da ação ou da intenção dos seres humanos. Neste texto pretendo me filiar àqueles que pensam que o corpo pertence à história, e que, portanto, está marcado indelevelmente pela cultura, sendo impossível retroceder a um tempo onde supostamente não houvesse civilização para encontrar um corpo não marcado por ela.

Assim, meu objetivo é mostrar a proveniência dos saberes que determinam uma certa visão que a equipe de saúde, sobretudo a enfermagem, desenvolveu sobre o corpo, especialmente sobre o corpo doente. Entendo que esses saberes foram sendo construídos histórica e culturalmente e determinam maneiras de ensinar e aprender sobre os corpos, principalmente os corpos hospitalizados. Para expor minha argumentação preciso reconstituir os processos geradores, não para atribuir-lhes um valor em si, uma positividade, um progresso. Pois, como um sinal de reconhecimento a Foucault, não tomarei o ponto em que nos encontramos como o final de um progresso que nos caberia reconstituir com precisão na história.

Foucault(2) considerava um mau método esta forma de problematização. Ao invés disso, preocupava-se em perguntar: como isso se passa? Pois o que se passa agora não é nem melhor, nem mais importante e nem melhor explicado do que o que se passou antes. Com Foucault, fica evidente que o importante não é buscar as transformações que um certo objeto sofreu ao longo do tempo em uma determinada cultura, mas tornar problemático e, portanto, histórico, tudo o que é visto como "objeto natural" a priori. Portanto, ele persegue as condições de possibilidade que provocam o surgimento das designações, formas de controle e resistências sobre os corpos. Para Foucault, o importante não é buscar "o corpo", mas sim as práticas, as experiências, as relações que o fortalecem ou enfraquecem em cada circunstância(3). Deste modo ao tentar perseguir as condições de possibilidade do surgimento dos modos de ver e descrever o corpo que conhecemos hoje, dirijo-me à disciplina de Anatomia e à sua inserção e organização na Modernidade, para procurar entender como tudo se passou, e poder, então, problematizar e traçar uma possível historicidade para este modo de saber.

No final do século XV e durante o século XVI, o corpo humano esteve no centro da arte renascentista, atraindo o interesse de artistas que buscavam sua beleza e perfeição estética, uma vez que nesta época uma obra de arte deveria ser uma representação direta e fiel dos fenômenos naturais. Tal concepção exigia que o artista tivesse um amplo conhecimento desses fenômenos para poder retratá-los. Enfim, a arte tornara-se científica. Deste modo, era natural que artistas como Leonardo da Vinci (1452-1519) se dedicassem com entusiasmo ao estudo detalhado do corpo humano, esboçando inúmeros desenhos com estudos anatômicos que representavam as estruturas interiores e as proporções do corpo, objetivando um maior realismo em sua obra. Ele estudava o corpo estabelecendo comparações, procurando simetrias com o microcosmo. Portanto, a história da ilustração anatômica, tal como contada nos dias de hoje, tem uma manifestação moderna inicial, onde se destaca Leonardo da Vinci e uma expressão moderna posterior, cuja figura mais representativa é Vesalius(4).

O projeto moderno propôs-se a tarefas impossíveis, dentre as quais se sobressai a busca da ordem, que deu ao mundo uma estrutura que nos tranqüiliza, pois permite que saibamos o que vai ocorrer a seguir. Tal operação, que promove a ordem no mundo, é fundamental para que possamos viver nele, uma vez que somos dotados da capacidade de aprender e memorizar. "A taxonomia, a classificação, o inventário, o catálogo e a estatística são estratégias supremas da prática moderna. A mestria moderna é o poder de dividir, classificar e localizar - no pensamento, na prática, na prática do pensamento e no pensamento da prática"( 5:23).

Ao classificar, estamos incluindo e excluindo, dividindo o mundo em dois. Criando identidades que respondem ao nome que inventamos e outras que não respondem. Dentre as classificações que criam uma ilusão de simetria no mundo, me ocuparei de uma que se refere ao corpo, tentando catalogar eventos relacionados à possibilidade de ser doente e ser sadio, produzindo um inventário de características definidoras do que é normal ou anormal. Entendo que o ideal que tal função classificadora pretenderia atingir, o de construir um espaçoso arquivo que contenha todas as classificações sobre os corpos, foi instituído como prática discursiva na disciplina de Anatomia.

2 Apresentando Vesalius

As bases da Anatomia como ciência foram estabelecidas por Vesalius(4) de Bruxelas (1514-1564), em 1543, quando publicou os desenhos e textos que compõem a obra De humani corporis fabrica, que corrigia e reformulava os conceitos e as ilustrações anatômicas da época, na busca de uma "exatidão real". A obra de Vesalius, ao privilegiar a observação e a pesquisa, é tida como o começo da ciência moderna. Nada parecido fora visto até então. Sua maneira de conceber o corpo era totalmente nova e excepcional, a postura dinâmica das figuras, provavelmente emanadas da oficina do pintor Ticiano, demonstra a maneira como os renascentistas se libertaram das formas convencionais da arte, fazendo-a se aproximar da natureza para então explorar novos campos do saber(6). Enfim, a ciência se alia à arte.

Desde então, a aula de anatomia tem se revelado um território rico na produção de visibilidades e dizibilidades que são bastante conhecidas, principalmente na arte e na literatura. O quadro A lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, que retrata a dissecação do corpo do holandês Aris Kindt, acusado de roubar um casaco e condenado à morte por enforcamento em 1632, é um exemplo disso. O corpo foi doado ao Dr. Tulp que contratou Rembrandt, então um jovem retratista, para pintar a necropsia. Rembrandt dispõe os assistentes espantados em um canto do quadro, numa espécie de triângulo, figura geométrica que tem sido associada ao saber e representativa dele. A figura em destaque é o médico, o único que usa chapéu, talvez um ícone da época para realçar o seu saber. Com o bisturi na mão, ele disseca o braço do morto, numa alusão ao pecado do roubo, associado desde a Bíblia ao mau uso das mãos. Nesta tela, o corpo parece quase secundário, deitado passivamente dentro do plano da pintura, com a face parcialmente velada, aparentemente despido de uma possível identidade pessoal. De fato, o corpo está imóvel, petrificado, irremediavelmente apaziguado pela morte, apenas compondo um objeto de estudo que possibilitará que a ciência investigue o mistério da vida e da morte.

Voltando a Vesalius, o valor da sua obra está em procurar confirmar aquilo que fora dito por Galeno, que constituía o saber médico greco-romano, e demonstrar suas discrepâncias, tendo por base o método da observação direta dos elementos anatômicos através da dissecação. Ver um mestre descer de sua cátedra para demonstrar e fazer dissecações era um fato totalmente inusitado na época. A energia desse jovem e ambicioso professor teria feito com que suas aulas estivessem sempre cheias. Ali, aqueles que questionavam suas declarações eram convencidos pelas demonstrações visuais. Para ilustrar seus argumentos, Vesalius passou a fazer uso de grandes desenhos anatômicos que foram depois transformados em xilogravuras. Estas estabeleceram um novo padrão para ilustração na disciplina de Biologia. Vencendo as dificuldades existentes na época para conseguir cadáveres, ele também idealizou e construiu o primeiro esqueleto articulado, tal como o conhecemos hoje(6). Sua obra mostra o melhor do que se fazia em gravura no século XVI e é citada como "o grandioso e singular marco inicial da anatomia moderna, (...) a obra prima que tem em si a fulgurante luminosidade que a partir da Renascença invadiu o corpo humano, destruiu os conceitos arcaicos que obscureciam o conhecimento de sua estrutura e fez nascer a anatomia científica"(7:11). Foram estes anatomistas, bem antes de Descartes, que fundaram um dualismo que é fundamental na modernidade e não só na área da saúde, a dualidade que distingue de um lado o homem e de outro seu corpo.

A obra de Vesalius foi organizada em sete livros e continha um elaborado sistema de referências entre o texto e a ilustração, o que a transformou em um admirável veículo de difusão de uma ciência, até então, descritiva. O primeiro livro tratava dos ossos, o segundo dos músculos, o terceiro do sistema circulatório, o quarto livro do sistema nervoso, o quinto do abdômen, o sexto do tórax, o sétimo livro tratava do cérebro. Este sistema, numa época em que a nomenclatura médica ainda não havia sido definida, produziu uma obra sem igual na história do livro impresso.

Vesalius pensava que a Anatomia deveria ser "o fundamento sólido de toda a arte da Medicina e sua preliminar essencial"(8:3) e prognosticou que "há razão para esperarmos que a anatomia vá ser cultivada por muito tempo em todas as nossas academias, como o foi no passado em Alexandria" (6). Mesmo com esse prenúncio, será que Vesalius imaginava o sucesso e a produtividade de sua obra, ao longo de cinco séculos?

3 Anatomia - um campo de saber

A Anatomia é, até hoje, a disciplina introdutória do currículo de Enfermagem e de todos os demais cursos da área da saúde. Apesar das transformações que ocorreram do século XVI até os dias de hoje, sua estrutura como campo de saber permanece praticamente inalterada. O cadáver impregnado de formol é considerado o recurso ideal para os ensinamentos sobre o corpo humano e, paradoxalmente, é o primeiro contato de estudantes, que se preparam para preservar a vida, com o objeto de sua futura prática. O mesmo é apresentado como semelhante ao ser humano, embora observemos que não tem a cor, a consistência, o turgor da pele, o odor ou a temperatura de um corpo quando vivo. Observo que a Anatomia tem uma posição de tal autoridade no contexto do ensino desta área, que dificilmente algum professor ou professora se atreveria a ensinar, ou sequer a pensar, sem levar em conta os seus preceitos e a forma como ela está organizada há mais de 450 anos. Embora exista um corpo organizado e desenvolvido de trabalhos que analisam a obra de Vesalius, meu objetivo aqui é simplesmente explorar as conseqüências de sua visão sobre o corpo e como ela marcou a formação na área da saúde. Para ilustrar o que está sendo dito em relação à disciplina de Anatomia, reproduzo o seguinte depoimento: Quando ingressei na Faculdade de Medicina, aos dezessete anos, nunca havia tido um contato real com um morto. Ao se iniciarem as aulas, recebi um cadáver com o qual eu deveria estar em contato, estudando a Anatomia e fazendo dissecações, durante um ano inteiro. Eu o retirava da cuba de formol todas as manhãs e essa vivência me mobilizava intensamente: perguntava-me se aquele homem tivera uma mulher e filhos, de que forma haveria se tornado meu objeto de estudo ou se tivera uma profissão. Dávamos um nome ao cadáver inclusive. Ele era subjetivado e historicizado, algo ao estilo "moderno". Era comum não comermos carne, porque o cadáver nos vinha à mente, e usávamos luvas, preocupados com alguma possibilidade de infecção e uma máscara, pois o formol irritava as mucosas. Nesse meio tempo íamos fazendo as dissecações e o cadáver, homem morto e possuidor de um nome e de uma história, ao final do semestre era apenas um conjunto de "peças anatômicas": ossos, músculos, vísceras etc. Não havia mais necessidade de usar luvas, pois o formol "esterilizava" e tampouco máscara, uma vez que nos acostumávamos ao formol e fazíamos um intervalo para lanchar na própria sala de anatomia. Banalizada a situação, havia apenas fragmentação, dessubjetivação e desistoricização, não um sujeito mas uma coisa(9:103).

Neste depoimento, podemos observar o modo como o estudante lida com seu primeiro paciente, o cadáver. Se por um lado, ele pode estar sendo protegido da angústia que a prática com doentes provoca, por outro, ele está sendo submetido à ansiedade que a morte provoca, sem que, às vezes, esta palavra sequer seja falada. A Anatomia produziu o corpo morto como um cadáver, isto é, um corpo anatômico, objeto de um discurso científico, criado a partir da técnica da dissecação. Antes de Vesalius, o corpo que não vivia era apenas um corpo morto, prestava-se a cerimônias fúnebres, a rituais de lembrança e ao enterro nos cemitérios. A partir de Vesalius, a dissecação permite o acesso a um espaço constituído, que é tornado visível e explorado geograficamente, como uma figura exterior e objetiva. Desta relação entre o visível e o enunciável surge um novo uso do discurso científico, que guarda fidelidade e obediência à experiência. Então, este primeiro paciente produz uma cisão, é algo para ser visto e não ouvido. E se antes a relação do médico com seu paciente era fortemente baseada na relação de conversa e proximidade, agora a dimensão histórica se dilui, as histórias clínicas tornam-se quase dispensáveis. Desta forma, ao se perder a história, perde-se a própria vida(10).

Ao tentar compreender como nos tornamos o que somos, me ocupo do passado e procuro esboçar alguns traços, momentos e acontecimentos que compuseram os discursos que constituem o corpo escolarizado, aquele que é objeto de estudo. Neste, destaco a Anatomia, não para incursionar pelo passado buscando encontrar uma origem, o começo da história, um lugar onde havia um corpo em estado puro que ainda não tivesse sido estudado, descrito ou dissecado; o lugar da verdade do corpo que estaria em uma "articulação inevitavelmente perdida, onde a verdade das coisas se liga a uma verdade do discurso que logo a obscurece, e a perde"(2:18). Meu objetivo é destacar, entre tantas vozes autorizadas, aquela que na minha leitura poderia constituir

o filão complexo da proveniência [e assim] manter o que se passou na dispersão que lhe é própria, [...] demarcar os acidentes, os ínfimos desvios - ou ao contrário, as inversões completas - os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós [e então] descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos - não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente(2:21).

4 Anatomia - uma prática discursiva

Destaco o texto da Anatomia como uma prática discursiva sobre o corpo, tal como proposta por Foucault. No caso da Anatomia, Vesalius seria o instituidor de uma cientificidade, que organizou um saber e uma terminologia, dita racional, que exerce sua produtividade até os dias de hoje, tal é o caso da nomenclatura referente aos músculos(11). Aproveito um pensamento de Foucault(12), para explicar o funcionamento da prática discursiva da disciplina de Anatomia como "o feixe de relações que o discurso deve manter para ter condições de tratar de tais ou tais objetos, e processá-los, nomeá-los, analisá-los, classificá-los, explicá-los, etc (...) essas relações caracterizam não a língua que o discurso utiliza, não as circunstâncias nas quais ele ocorre, mas o próprio discurso enquanto prática"(12:51).

As análises sobre o corpo atravessam toda a obra de Foucault. De acordo com Arthurs e Grimshaw(13), esta verdadeira explosão que tem ocorrido nos últimos anos no interesse acadêmico sobre o corpo, se deve principalmente à emergência do feminismo e ao trabalho de Michel Foucault. Sant'Anna(3), avalia que Foucault contribuiu para o desenvolvimento das pesquisas sobre o corpo discutindo e expondo o poder em sua positividade, como uma relação que constitui ações e formas de expressão corporal, e não apenas como algo que reprime e nega, pois, com suas análises, torna evidente que mesmo os nossos gestos mais banais, ou os cuidados corporais criados pela medicina, são datados historicamente.

No Nascimento da Clínica, Foucault(14) faz referência à importância do Atlas de Anatomia na construção do nosso olhar sobre o corpo, pois "para nossos olhos já gastos, o corpo humano constitui, por direito de natureza, o espaço de origem e repartição da doença; espaço cujas linhas, volumes, superfícies e caminhos são fixados, segundo uma geografia agora familiar, o atlas anatômico."(14:1). Sob este olhar podemos pensar que a disciplina de Anatomia e seu texto-mestre, o Atlas de Anatomia, ao descreverem o corpo humano, estabelecem os parâmetros para o que é normal ou anormal, isto é, normalizam os corpos.

Entre os estudiosos da Anatomia, destaco Laqueur(15), historiador especialista em história social e da medicina. Ele analisou a invenção cultural da bipolaridade sexual humana, mostrando que nem sempre concebemos os seres humanos divididos em dois sexos com características próprias. Até as últimas décadas do século XVIII, a medicina só admitia a existência de um sexo, o masculino. O que, atualmente, chamamos de sexo feminino era visto como um sexo masculino "frio", "invertido". Ou seja, a mulher não possuía o mesmo "calor vital" do homem, e por isso seu sexo não se desenvolvia para fora, mas para o interior do corpo: o útero era o escroto, os ovários, os testículos, a vulva, o prepúcio e a vagina era o pênis. Laqueur refere que a Anatomia não é um fato inalterado pelo pensamento ou pelas convenções, mas uma rica construção complexa baseada na observação, na estética da representação e nas restrições culturais e sociais. Deste modo, o autor menciona que as ilustrações anatômicas são resultado de conhecimentos construídos historicamente sobre o corpo humano e que, portanto, levam as marcas complexas do momento de sua produção, não sendo portanto um possível estado particular acerca do conhecimento de suas estruturas. Assim,

as ilustrações anatômicas que reivindicam um status estabelecido, que se anunciam para representar o olho humano, ou o esqueleto de mulher, são mais diretamente implicadas na cultura que as produz. A anatomia idealista, como o idealismo em geral, deve postular uma norma transcendente. Mas não há obviamente um olho, um músculo ou um esqueleto estabelecido; portanto, qualquer representação que faça essa reivindicação o faz com base em certas noções específicas do que é ideal em termos culturais e históricos, o que melhor ilustra a natureza verdadeira do objeto em questão (15:204).

Dentre os estudos feministas que se ocuparam da Anatomia, destaco o de Schiebinger(16), que analisou as ilustrações do esqueleto feminino na Anatomia do século XVII. Essa autora observou que Vesalius não sexualizou os ossos do corpo, pois na época em que publicou a sua obra, as diferenças corporais eram vistas como superficiais e não constituíam um tema de interesse. Porém, no século XVIII, ao crescimento populacional e ao ideal de maternidade, característico daquele século, correspondeu uma mudança fundamental que exigiu um delineamento das diferenças sexuais, já que a ciência, neste caso a Anatomia, poderia apontar as ditas diferenças essenciais, da qual derivariam todas as demais.

Segundo esta autora, o corpo feminino teria se tornado objeto da Anatomia em 1796, quando o anatomista alemão Samuel Soemmerring publicou a primeira ilustração do esqueleto feminino. Antes disso, a Anatomia só se referia ao corpo do homem. Como não poderia deixar de ser, as representações do corpo humano de Soemerring eram carregadas de valores culturais. Os anatomistas de sua época "consertaram" a natureza para ajustá-la aos ideais de masculinidade e feminilidade. Surgiram, então, verdades sobre as mulheres tratando de atributos que estariam inscritos em seus corpos, naturalizando sua inferioridade. Daí emergiram categorias muito divulgadas como, por exemplo, a mulher infantil, pois foi encontrada semelhança entre esqueletos de mulheres e de crianças. Da mesma forma, quando estudos revelaram que o crânio feminino era menor do que o masculino, concluiu-se pela inferioridade intelectual da mulher em relação ao homem. Sua beleza refletiria a fragilidade física e também a predestinaria à maternidade, pois ao observar que os quadris da mulher eram mais largos que os do homem, teria ficado comprovada a inscrição que a natureza fizera no corpo da mulher, "vocacionando-o" para a gestação e a procriação. O útero teve uma importância fundamental nos estudos sobre o funcionamento do corpo da mulher, sendo a ele atribuídas várias doenças como a histeria e o humor instável. Desta forma, A Anatomia, assim como outras ciências, construíram teorias da diferença sexual pois imperava o conceito que a mulher era intrinsecamente diferente do homem já que ela teria ficado "para trás" no desenvolvimento, mais próxima dos primitivos e das crianças. Rohden(17) também comenta que isso teria ocorrido porque, para a sobrevivência da espécie, era prioritário o desenvolvimento dos órgãos reprodutivos da mulher, da mesma forma como o cultivo da força física e da inteligência dos homens.

Esses estudos sobre o corpo da mulher tinham como objetivo determinar a sua natureza e tornaram-se, nesta época, uma prioridade da pesquisa científica, uma vez que questões sociais como os direitos e as capacidades das mulheres já eram ardentemente debatidas e, enfim, poderiam ser resolvidos no "frio santuário da ciência" e, portanto, iluminadas por verdades incontestáveis. Além das mencionadas, outras categorias relacionadas ao corpo, como sexo e raça, também foram consideradas, como ainda hoje, para estabelecer espaços sociais, pois, nessa época, a desigualdade social era vista como conseqüência de leis naturais.

5 Folheando livros de anatomia

Folheando livros de Anatomia é possível selecionar certo número de imagens que me parecem sugestivas disto de que falo, isto é, a propriedade que têm estes livros de produzir um discurso sobre o corpo que tem marcado não só os profissionais da saúde, mas toda a cultura ocidental. Lanço meu olhar para essas imagens, não pretendendo elaborar uma interpretação a respeito delas que seja nova e original, pois apesar de todas as possibilidades que nossa linguagem possa oferecer, na visão de Manguel(18) somos principalmente criaturas de imagens, e essas imagens nos informam, capturadas pela visão e realçadas por outros sentidos, e marcam nossos corpos com seus efeitos poderosos.

Ao analisar imagens de livros-texto de Anatomia, utilizados nos cursos destinados a formar profissionais para atuar na área da saúde, observo que as ilustrações ali presentes referem-se a corpos masculinos, e que o modelo utilizado para o estudo do corpo humano é o "masculino, europeu, branco". A caracterização da figura masculina chega a detalhes como a inclusão do cavanhaque e da barba que parecem em nada ajudar aos propósitos explicativos da figura, bem como o delineamento do "pomo de Adão" (cartilagem cricóide) em todas as figuras onde é visível a região cervical, evidenciando desse modo, que se trata de um homem. Além disso, as configurações raciais são sempre de homem branco. Da mesma forma, para uma explicação a respeito dos músculos, lá estão as figuras masculinas como exemplo, representadas pelos corpos musculosos e pelas cabeças e pescoços masculinos e brancos. Se o objetivo é a descrição da parte superior do braço, da "tabaqueira anatômicaa a Depressão, facilmente visível, entre os tendões do polegar. A estrutura se forma quando o polegar é estendido. " e da distribuição dos nervos espinhais, mais corpos masculinos surgem com suas alvas mãos e braços musculosos, além das cabeças típicas de homem. Se o objetivo é demonstrar a área drenada pelo ducto torácico, a figura humana, isto é, um homem, aparece de corpo inteiro, com todas as características físicas masculinas, inclusive o pênis, que neste caso, nada tem a ver ou acrescenta à explicação.

Da mesma forma, as imagens utilizadas para a explanação do exame físico são todas de homens brancos, não havendo nenhuma referência a alguma particularidade possivelmente existente no corpo da mulher. Este é objeto de atenção somente quando se estuda a pelve, sendo detalhadas todas as medidas que atestam as boas condições para um possível "parto bem sucedido", que parece ser a única finalidade desta estrutura óssea. É esclarecido que estas medidas podem ser executadas utilizando a mão humana, e lá aparece, obviamente, a mão de um homem. Todo o estudo da pelve está voltado para as suas finalidades obstétricas, havendo fartas ilustrações sobre o canal do parto, enquanto o termo vagina não é sequer citado.

Mesmo em publicação mais recente(19), a permanência do corpo masculino também se faz sentir, como se o modelo ideal fosse o do homem branco, europeu, provavelmente tido como o corpo "certo". Na figura da capa já se anuncia o conteúdo que será apresentado, ali estão impressos o rosto de um homem seguido da estrutura óssea e dos vasos sanguíneos da cabeça. As figuras que ilustram este Atlas também estão marcadas pelo gênero masculino. Considerando que se trata de desenhos, observo que há uma escolha deliberada pela figura humana masculina, inclusive em momentos onde parece não haver uma diferença essencial a ser mostrada. Neste, novamente o corpo da mulher só é objeto de estudos quando se refere à pelve e ao abdômen, para descrever a posição das vísceras de uma mulher multípara pouco antes do término da gravidez. Assim sendo, o corpo feminino é objeto de atenção especial na qualidade de corpo reprodutivo. De resto, o modelo é sempre constituído de corpos masculinos, adultos e da raça branca. Este jeito de representar o corpo marcou de tal forma o discurso que, até bem pouco tempo, quando um médico fazia menção ao "corpo da mulher", estava se referindo a útero, ovários e seios, ou mamas, no jargão médico. Quando o Estado delineava políticas de saúde feminina, não era a mulher o sujeito da frase mas sua natureza procriadora. Portanto, o sexo é visto como algo que constitui por si só o corpo da mulher, ordenando-o inteiramente para as funções de reprodução. Foi assim até a entrada maciça da mulher no mercado de trabalho. Desde então, cresceu a necessidade de entender lhor esse corpo, o corpo da trabalhadora, reconhecendo-o como diferente do corpo do homem, e portanto, alvo de outras tecnologias de poder, para que seja mantido e utilizado de forma econômica, para além da maternidade. Embora não seja esse o foco do meu estudo, faço essas referências para mostrar a forma como a cultura produz um corpo.

Assim, ao longo desses quase quinhentos anos, o saber anatômico foi incorporando as descobertas provenientes da pesquisa científica, e sua estrutura, tal como prevista na disciplina de Anatomia, se manteve inalterada. O que estou pretendendo mostrar é que a disciplina de Anatomia inventou maneiras de conhecer e controlar o corpo e o que observo é que essas invenções se mantiveram por se mostrarem produtivas. Assim, tanto a estrutura disciplinar quanto os arranjos e formatos concebidos por Vesalius permanecem, mesmo quando as aparências físicas inventadas são atualizadas, de forma que aquilo que foi pensado no passado permanece na atualidade.

5 O corpo virtual

Esta estrutura disciplinar persiste até o século XX, quando o corpo, alvo da biotecnologia, entrou para o espaço virtual, configurando aquilo que Santos(20) chamou de virada cibernética, uma operação que ocorreu no momento em que o primeiro homem e a primeira mulher se tornaram digitais. Este processo conferiu um novo sentido à vida e ao mundo, intervindo até na definição do que é um ser humano, sob o prisma da informação digital e genética. O Projeto do Humano Visível, lançado na rede mundial de computadores em novembro de 1994, apresenta a primeira digitalização integral do corpo humano. Trata-se do corpo de um prisioneiro texano de trinta e nove anos, condenado à morte, que após a execução, foi escolhido por ser saudável e poder se constituir em um padrão. No final de 1995, foi lançada a Mulher Visível, versão cibernética do corpo de uma mulher de cinqüenta e nove anos, desconhecida, doado pelo marido. Estes são considerados o Adão e a Eva do mundo virtual, mas sua origem é bem diferente da versão bíblica. Para transformar seus corpos em dados digitais, foram necessários vários procedimentos que anularam totalmente a massa dos mesmos, uma vez que foram congelados e secionados em finas fatias, para que fosse possível submetê-los à ressonância magnética que possibilitou a digitalização de suas estruturas. Waldby(21) examina-os concluindo que foi extraído um biovalor destas formas de vida, um excedente de vitalidade e de conhecimento, que vai alimentar as tecnologias destinadas a melhorar ou prolongar a vida de outros humanos, uma vez que estes corpos serão utilizados no ensino e, como arquivo padrão, em exames de ressonância magnética. Aparentemente, este projeto pretendia ser o último capítulo da história da Anatomia, inaugurada com as dissecações do século XVI, pois visava montar um dispositivo de imagens virtuais para tornar o corpo humano visível e solucionar um velho problema: a opacidade corporal, que impede que as estruturas que compõem os nossos corpos sejam visíveis aos nossos olhos.

Contudo, mais uma etapa sucedeu a essa dissecação virtual. Adquirindo outros sentidos culturais, que são expressos por suas modificações e redescobertas que contribuem para o desenvolvimento de outros hibridismos entre o homem e a técnica, uma exposição de cadáveres plastificados, intitulada Mundos do corpo- A Fascinação sob a superfície foi mostrada pela primeira vez na Alemanha, no Museu de Tecnologia de Manheim durante o inverno de 1997/98. A exposição é o resultado do trabalho do anatomista alemão contemporâneo von Hagens(22) , que desenvolveu uma técnica por ele chamada de "plastination". O processo é uma tentativa de superar o método egípcio de embalsamamento, que durou até o século XVII, bem como as substâncias químicas e as técnicas tradicionais que fixam os tecidos. Como resultado, von Hagens obteve a conservação de substâncias orgânicas por meio de materiais plásticos, que mantêm as células e o relevo das superfícies inalterados até ao nível microscópico, isto é, idênticos ao estado natural do corpo antes do processo. O resultado final são peças humanas secas, que não têm cheiro e que podem ser posicionadas de tal forma que permitem a visualização tridimensional do corpo e suas variações individuais, o que anteriormente era restrito ao esqueleto. Durante o processo de preparação, enquanto o silicone é incorporado, as peças podem ser manipuladas em várias posições, de modo que o resultado final as distancia dos cadáveres e as aproxima da plasticidade espacial dos movimentos dos corpos vivos.

A mostra superou as expectativas mais otimistas, tendo sido visitada por aproximadamente setecentas e oitenta mil pessoas durante um período de quatro meses. Devido às longas filas de espera formadas pelas pessoas que desejavam ver as "peças" do Dr. Gunther, foi necessário que o Museu se mantivesse aberto durante a noite. Para aqueles que visitam a exposição e não têm conhecimento prévio de Anatomia, estes corpos são perfeitamente compreensíveis, sem necessidade de grandes explanações, permitindo que se obtenha conhecimento sobre órgãos, músculos e ossos. Depois do choque inicial, revelado pelas expressões e pelo espanto estampado nos rostos de homens e mulheres fotografados em visita à exposição, há um efeito artístico, produzido pela força imagética da autenticidade e das posturas. Visitando esta exposição, observei algo que se constitui em uma "marca registrada" da disciplina de Anatomia, sua continuidade histórica: a maioria dos corpos é de homens, sendo que os das mulheres, quando presentes, revelam os "mistérios" da concepção, sendo apresentados corpos de mulheres grávidas. Penso que estes corpos, tanto os do Humano visível como os plastinados, se transformaram em paradoxais mortos-vivos, condenados a habitar eternamente o outro lado das telas dos monitores e as salas dos museus, na qualidade de "múmias pós-modernas".

Ao estudar a Anatomia, relembro Said(23) em seu texto sobre o Orientalismo. Ele refere que ao tentar entender o Orientalismo, é preciso apreender a "força nua e sólida de seu discurso", bem como a sua "temível durabilidade". Entendo que essas expressões se ajustam perfeitamente e podem ser usadas em relação à Anatomia. Suas narrativas, inscritas nos corpos dissecados até os seus mais ínfimos detalhes, estabelecem a norma que produz uma verdadeira partilha entre o que é normal e o que é anormal, constituindo um conjunto de significados que tem por finalidade dividir e classificar os humanos. Depois, a cada corpo se atribuirá "um lugar nas intrincadas grades das classificações, dos desvios, das patologias, das deficiências, das qualidades, das virtudes, dos vícios"(24:107).

Esclareço que não estou preocupada em analisar o que está oculto no texto da Anatomia, nem tenho a pretensão de destruí-la ou mostrar onde ela está errada, mas colocar em questão as suas "verdades". O que me interessa, nestas considerações que faço a respeito desta disciplina, que se ocupa de produzir e organizar um saber e uma prática sobre o corpo, é assinalar alguns pontos que entendo produtivos e importantes: a possibilidade que estes textos têm de organizar uma prática discursiva sobre o corpo que compõe este arquivo moderno que tenta catalogá-lo e organizá-lo, utilizando argumentos "naturais", genéticos, nas representações do corpo, que estão sustentadas numa lógica "legítima" - a científica, e que assim não é contestada (25).

Esta discursividade desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em que o poder de descrever o corpo está implicado e que, segundo meu entendimento instaura a idéia de uma verdade única, ao invés de admitir a possibilidade de múltiplas verdades. Com isso, estou querendo enfatizar que não penso o corpo como uma entidade natural, pronto, esperando para ser revelado, liberado ou castigado. Então, o que é o corpo? O que é um corpo? O corpo é uma substância, uma idéia ou uma palavra? Muitos filósofos contemporâneos argumentam que não existem substâncias ou idéias fora da linguagem. Substâncias ou idéias não são realidades refletidas mas categorias culturais construídas pela linguagem. O corpo não é uma exceção. É também um produto da linguagem, que adquire sentido no interior da cultura. Assim, de acordo com o pensamento de autores que se ocupam da cultura, nesse registro em que me situo, destaco Cavallaro (26) que comenta que a linguagem organiza o corpo de acordo com as crenças da cultura, o que significa que a idéia de corpo humano não é universal, mas flexível, podendo ser interpretada de várias maneiras dependendo do tempo, do local e do contexto. Com este comentário, quero destacar que o corpo, da forma como o conhecemos, é uma invenção radicalmente histórica. Somos culturalmente treinados para perceber o corpo de maneira organizada, de certos ângulos e usando certas lentes. Essa organização das percepções vem de múltiplos lugares para compor as idéias que hoje temos sobre o corpo. Se pensarmos nos séculos passados, podemos observar que as cenas eram eternizadas em óleo por serem representativas daquilo que era considerado importante e valorizado e que, portanto, deveria ser preservado, para o presente e para o futuro. Deste modo, podemos avaliar a importância que era dada à Anatomia e ao corpo, seu objeto de estudo, pois existem inúmeros quadros de pintores, principalmente dos séculos XVI e XVII, que retratavam as cenas de dissecação dos corpos. As imagens produzidas permitiam guardar as cenas importantes para que fosse possível pensar nelas, com uma fidelidade ao que fora visto. Tais imagens chegam até nós, e nos produzem, de forma que posso dizer que pensamos o corpo de determinadas formas, em relação com determinados vínculos sociais, no entendimento que os regimes que definem as verdades sobre o corpo, a saúde e a doença em cada época são contingentes e provisórios. Se pensarmos no que ocorreu durante o século XX, observamos que o corpo não cansou de ser sempre redescoberto e nunca completamente revelado, uma vez que foi alvo do higienismo, seduzido pelo cinema e pela televisão, objeto dos movimentos de liberação sexual e dos novos ritmos musicais, da moda e da massificação da pornografia(27).

Assim, o corpo está sempre sendo (re) fabricado e portanto, sempre também reinventado(28). Desta forma, são as relações que constituem os corpos, são as práticas sociais, historicamente datadas, que produzem "ao longo da vida, nossos sentimentos, nossas preferências, nossa aparência e nossa fisiologia"(3:279). Para lembrar Foucault(3), não é o sentido que busco nos discursos que são produzidos sobre o corpo, mas a função que lhes é atribuída e os efeitos que produzem.

Data de Recebimento: 21/11/2003

Data de Aprovação: 30/04/2004

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  • a
    Depressão, facilmente visível, entre os tendões do polegar. A estrutura se forma quando o polegar é estendido.
  • *
    Texto produzido a partir de Kruse MHL. Os poderes dos corpos frios - das coisas que se ensinam às enfermeiras [tese de doutorado em Educação]. Porto Alegre (RS): Faculdade de Educação: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2003. 157f.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Fev 2004

    Histórico

    • Aceito
      30 Abr 2004
    • Recebido
      21 Nov 2003
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