Acessibilidade / Reportar erro

Saber popular: sua existência no meio universitário

Popular wisdom: its existence in the university environment

Saber popular: su existencia en el medio universitario

Resumos

Mitos e crendices estão presentes hodiernamente, apesar do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, principalmente na busca por soluções de problemas que fogem ao entendimento humano. Objetivou-se verificar na comunidade universitária a existência de crendices e mitos, investigando suas origens, influências, adoção e credibilidade, correlacionando-os com o nível de conhecimento dos indivíduos. Pesquisa descritivo-analítica desenvolvida em Unidades de Ensino da Área de Saúde da Universidade Federal de Goiás. Seguiu-se a técnica de análise de conteúdo para análise dos dados. Foram criadas duas categorias: Atitudes Pessoais Relacionadas a Crenças e Influências e Superação das Crenças. Concluiu-se que há colisão entre os saberes popular e científico, gerando a exclusão do saber popular, sua manutenção "velada", ou mesmo, a aliança dos saberes.

medicina tradicional; cultura; ciência


Nowadays, myths and superstitions are present in spite of scientific and technological developments, especially when trying to solve problems that escape human understanding. This study was aimed at determining the existence of superstitions and myths in the university community, investigating their origins, influences, adoption and credibility, correlating them with people's level of knowledge. It is a descriptive/analytical research conducted at Teaching Units in the Area of Health of the Federal University of Goiás. The technique of content analysis was utilized for data analysis. Two categories have been created: Personal Attitudes related to Superstitions and Influences and Destruction of Superstitions. It was found out that there is a clash between popular and scientific knowledge, either leading to the exclusion of popular wisdom, to its 'veiled' maintenance, or even to an alliance between the two types of knowledge.

traditional medicine; culture; science


Mitos y creencias están presentes actualmente, a pesar del desarrollo de la ciencia y de la tecnología, principalmente en la búsqueda por soluciones de problemas que escapan al entendimiento humano. El estudio tuvo como objetivo verificar en la comunidad universitaria la existencia de creencias, mitos y otras prácticas populares, investigando sus orígenes, influencias, adopción, credibilidad y correlacionándolos con el nivel de conocimiento de los individuos. La investigación cuya naturaleza es descriptiva-analítica, fue desarrollada en Unidades de Enseñanza del Área de Salud de la Universidad Federal de Goiás. El grupo se constituye de profesores y estudiantes de los cursos del área de salud. Los resultados posibilitaron la creación de dos categorías, la primera, Actitudes personales relacionadas a Creencias, evidenció el poder de las prácticas populares y de las creencias sobre el comportamiento humano y la segunda, Influencias y Superación de las Creencias, permitió la comprensión del contento social y cultural del grupo investigado. Se concluye que existe una colisión entre el saber popular y el científico, generando la exclusión del saber popular, su mantenimiento "oculto", o también, la alianza de los saberes.

medicina tradicional; cultura; ciencia


PESQUISA/RESEARCH/INVESTIGACIÓN

Saber popular: sua existência no meio universitário

Popular wisdom: its existence in the university environment

Saber popular: su existencia en el medio universitario

Maria Alves BarbosaI; Márcia Borges de MeloII; Raul Soares Silveira JúniorII; Virginia Visconde BrasilI; Cleusa Alves MartinsI; Ana Lúcia Queiroz BezerraI

IEnfermeira. Professora Doutora da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás

IIAcadêmicos da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás

E-mail do autor: malves@ih.com.br

RESUMO

Mitos e crendices estão presentes hodiernamente, apesar do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, principalmente na busca por soluções de problemas que fogem ao entendimento humano. Objetivou-se verificar na comunidade universitária a existência de crendices e mitos, investigando suas origens, influências, adoção e credibilidade, correlacionando-os com o nível de conhecimento dos indivíduos. Pesquisa descritivo-analítica desenvolvida em Unidades de Ensino da Área de Saúde da Universidade Federal de Goiás. Seguiu-se a técnica de análise de conteúdo para análise dos dados. Foram criadas duas categorias: Atitudes Pessoais Relacionadas a Crenças e Influências e Superação das Crenças. Concluiu-se que há colisão entre os saberes popular e científico, gerando a exclusão do saber popular, sua manutenção "velada", ou mesmo, a aliança dos saberes.

Descritores: medicina tradicional / história; cultura / comparação transcultural; ciência/educação

ABSTRACT

Nowadays, myths and superstitions are present in spite of scientific and technological developments, especially when trying to solve problems that escape human understanding. This study was aimed at determining the existence of superstitions and myths in the university community, investigating their origins, influences, adoption and credibility, correlating them with people's level of knowledge. It is a descriptive/analytical research conducted at Teaching Units in the Area of Health of the Federal University of Goiás. The technique of content analysis was utilized for data analysis. Two categories have been created: Personal Attitudes related to Superstitions and Influences and Destruction of Superstitions. It was found out that there is a clash between popular and scientific knowledge, either leading to the exclusion of popular wisdom, to its 'veiled' maintenance, or even to an alliance between the two types of knowledge.

Descriptors: traditional medicine / history; culture / cross-cultural comparison; science/education

RESUMEN

Mitos y creencias están presentes actualmente, a pesar del desarrollo de la ciencia y de la tecnología, principalmente en la búsqueda por soluciones de problemas que escapan al entendimiento humano. El estudio tuvo como objetivo verificar en la comunidad universitaria la existencia de creencias, mitos y otras prácticas populares, investigando sus orígenes, influencias, adopción, credibilidad y correlacionándolos con el nivel de conocimiento de los individuos. La investigación cuya naturaleza es descriptiva-analítica, fue desarrollada en Unidades de Enseñanza del Área de Salud de la Universidad Federal de Goiás. El grupo se constituye de profesores y estudiantes de los cursos del área de salud. Los resultados posibilitaron la creación de dos categorías, la primera, Actitudes personales relacionadas a Creencias, evidenció el poder de las prácticas populares y de las creencias sobre el comportamiento humano y la segunda, Influencias y Superación de las Creencias, permitió la comprensión del contento social y cultural del grupo investigado. Se concluye que existe una colisión entre el saber popular y el científico, generando la exclusión del saber popular, su mantenimiento "oculto", o también, la alianza de los saberes.

Descriptores: medicina tradicional / historia; cultura / comparación transcultural; ciencia / educación

1 Introdução

As mudanças tecnológicas e os grandes avanços científicos não são suficientes para eliminar, em diferentes grupos populacionais, a presença de crenças e práticas populares vinculadas a tradições que são passadas entre gerações. Essas práticas possuem um significado totalizante e são capazes de articular experiências em dimensões de presente e passado (1). Este fato pode ser explicado pela permissão que o sistema de crenças oferece ao homem de livrar-se das incertezas que o cercam, e ao mesmo tempo ajustar-se dentro de um processo evolutivo com a realidade cercada de mistérios e incógnitas(2) .

As práticas populares podem ser evidenciadas na área de saúde, pois os indivíduos procuram formas de tratamento e prevenção de doenças diferentes daquelas adotadas pela medicina convencional. Há pessoas que ao mesmo tempo ou de forma alternada, procuram benzedeiras, usam chás, fazem simpatias, aderem fervorosamente a uma religião e/ou seguem o tratamento prescrito pelo médico(3).

A medicina popular, também conhecida como medicina do povo, pode ser conceituada como todas as práticas relativas ao processo saúde-doença que ocorrem independentemente do domínio da medicina institucionalizada. Essas práticas de saúde conseguem sobreviver mesmo diante da sua rejeição pela ciência e pela medicina oficial porque de certa forma respondem às necessidades e expectativas da população. É importante ressaltar que se elas não oferecessem alguma compensação, já teriam sido abandonadas e trocadas por outras formas de tratamento. Apesar da interiorização da assistência, preconizada pela política de saúde vigente no Brasil, as práticas populares ainda estão presentes e muitas vezes constituem-se na única fonte de acesso que a população tem para a cura de doenças(4).

Ainda que os recursos populares não tenham uma comprovação científica de sua eficácia as repetidas experiências de seu uso dentre a população permitem validar sua utilidade, pois, esse conjunto de saberes e práticas tem sua estrutura pautada na experiência empírica, na vivência, na experimentação e na avaliação do sucesso ou insucesso desses recursos(5).

As motivações que levam as pessoas a adotarem métodos não convencionais relacionados à saúde são variadas e, de um modo geral, independem de aspectos sociais, pois mesmo em centros urbanos adiantados persistem crenças, crendices, tabus e preconceitos anacrônicos em indivíduos de todas as classes sociais e de diferentes níveis de escolaridade(6).

Um dos fatores que explicam a origem das crenças e práticas populares é o da experiência individual que ao longo do tempo e através da sociedade exprime uma cultura, influenciando nas explicações dadas aos acontecimentos e na escolha de decisões, provocando muitas vezes repercussões sociais, cuja intensidade é proporcional à quantidade de pessoas que faz adesão a tais práticas.

Paralelo aos recursos populares com fins medicinais existem também as crendices e mitos populares. Nas diversas áreas do conhecimento são desenvolvidas pesquisas que buscam esclarecer a fundamentação de crendices e mitos populares relacionados a assuntos que fazem parte do cotidiano, como sexualidade, amamentação, entre outros(7).

A vida social é susceptível à opinião pública, a qual é influenciada pelas crenças que são difundidas por meio da comunicação. Não se considera crença como conhecimento, uma vez que esta necessita de fundamentos irracionais para o seu princípio e manutenção. Estas se dividem crenças em coletivas e individuais. As coletivas são mais estáveis, abrangendo inteiramente a sociedade e são propagadas entre os indivíduos; as individuais são instáveis e irregulares, podendo ser abandonadas e substituídas por outras de maior veracidade(7).

A origem de certas crendices justifica-se muitas vezes pela magia e pelo modo de ditar o comportamento, por exemplo, quando dizem que não se deve deixar o sapato virado. Em lógica estão propondo que o sapato deve ficar arrumado para conservar o lar em ordem. O mesmo pode ser empregado para a crença de que tomar banho após as refeições faz mal, pois na verdade a intenção é ensinar que o banho deve ser tomado antes das refeições. Logo, podemos perceber que as crenças culminam em ações que podem inibir ou estimular comportamentos, conforme as experiências vividas e/ou adquiridas. O ser humano tende a ser e a viver de acordo com suas crenças(8).

Torna-se importante que nas consultas clínicas o profissional de saúde esteja disposto a atender o paciente holisticamente, respeitando seus valores sócio-culturais, que representam uma força positiva para o conforto e até mesmo para recuperação do paciente(9).

Há indivíduos que não se modelam passivamente aos tratamentos prescritos por serem marcados por uma cultura e por limitações materiais(10), fazendo-se necessário que a assistência à população seja uma ação educativa e de trocas que integrem o saber científico e as práticas populares de saúde.

O profissional de saúde precisa ser cauteloso para não agir de modo dominador e inflexível frente às práticas populares que a sociedade utiliza (11). É importante respeitar as crenças do paciente e mesmo sua escolha em preservar junto ao tratamento prescrito, o uso de medicamentos populares. Além disso, ao se considerar que saúde, não é apenas ausência de doença, e sim o bem-estar físico, psíquico e social, os fatores religiosos, culturais e econômicos também devem ser respeitados.

2 Objetivos

a) Investigar se há presença de crendices e mitos, entre professores e estudantes universitários da área de saúde.

b) Correlacionar adoção de crendices e mitos populares com o nível de conhecimento dos indivíduos.

3 Metodologia

Estudo de natureza descritivo-analítica, com abordagem qualitativa, desenvolvido na Universidade Federal de Goiás, no período de agosto de 2002 a julho de 2003.

A população constituiu-se de professores e estudantes da área de saúde. Trabalhou-se com uma amostra de 45 indivíduos, sendo 14 professores e 31 acadêmicos dos cursos de enfermagem, farmácia, medicina, nutrição e odontologia. Tratando-se de pesquisa qualitativa, o tamanho da amostra foi definido pela saturação das respostas durante a coleta de dados. A inclusão dos participantes no estudo aconteceu de forma aleatória, conforme suas disponibilidades, nas dependências das unidades acadêmicas.

O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a entrevista semi-estruturada, que possibilitou investigar a existência de mitos, crenças e crendices entre os participantes, bem como suas experiências pessoais com estas práticas e também conhecer suas influências na vida e nos relacionamentos sociais dos participantes. As respostas foram gravadas e posteriormente transcritas.

Entre os aspectos éticos observados no estudo, incluem-se a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa Médica Humana e Animal do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e permissão dos participantes para a gravação das entrevistas.

As respostas foram submetidas à técnica de análise de conteúdo preconizada por Bardin(12).

4 Resultados e discussão

No grupo pesquisado houve leve predominância do sexo masculino em relação ao sexo feminino, uma vez que o primeiro representou 56,00% e o segundo 44,00% da amostra. A faixa etária do grupo participante variou entre 17 e 50 anos, sendo predominante aquela situada entre 17 e 29 anos, até porque a maioria dos entrevistados era composta por estudantes.

Quanto a religião, a maioria era de católicos (60,00%), seguidos do mesmo percentual de evangélicos e aqueles que não possuem religião (17,77%) e 4,46% eram espíritas.

4.1 As atitudes pessoais relacionadas a crenças

Desde os primórdios da humanidade, o homem busca a evolução da vida, procurando o alívio para os seus males e adotando práticas de acordo com suas crenças. Muitas destas práticas estão pautadas na experiência empírica, que funcionam de acordo com modelos explicativos que fogem da lógica científica da medicina convencional(13). A alusão que as pessoas fazem quanto à origem das suas próprias crenças refere-se a boas ou más experiências.

[...] quando eu venho do cemitério, eu tenho que passar sal grosso na mão. Quando eu vinha do enterro, a minha cabeça ficava rachando [...] aquela pressão. Eu achava que tinha um encosto junto de mim, e que assim aquilo iria embora, entendeu? Parecia que eu trazia alguém junto de mim, e eu comecei a acreditar porque acontecia mesmo". (Entrevistado 08)

Há que se considerar o estado subjetivo de quem crê, de quem toma como sagrado, sem que haja necessidade de uma comprovação científica. O poder que as crenças exercem, não importando se isoladas ou submetidas à lógica, influencia diversas circunstâncias, as tomadas de decisões, a idealização de ações e a organização de comportamentos(8). Muitos dos entrevistados norteiam suas atitudes de acordo com suas crenças.

Eu tenho uma mania muito grande que é nunca deixar os calçados separados e nem virados de cabeça pra baixo, porque dizem que a mãe pode morrer. (Entrevistado 12). [...] eu acredito muito é no problema do chinelo, não deixo o chinelo virado, eu tenho medo disso... passar embaixo de escada eu também não passo, e não gosto de ver gato preto. (Entrevistado 08)

Foram identificadas algumas motivações e justificativas que levaram os entrevistados a buscar alternativas para solucionar seus problemas cotidianos: a satisfação pessoal, o fato de crer e a experiência vivida.

Quando eu vou fazer alguma coisa que eu quero ter êxito, eu uso o vermelho. Acho que ela me dá sorte, me traz bons fluidos, o vermelho também é por ver sempre acontecer coisas positivas (Entrevistado 08).

As práticas populares só são integradas ao comportamento humano após passarem pelo processo de verificação da sua eficácia, que comporta as seguintes etapas: vivência, experimentação e avaliação do êxito ou não que elas proporcionam. Você tenta e dá certo, aí você recomenda para a próxima pessoa e assim vai (Entrevistado 29).

As crenças estão ligadas a questões sociais de uma comunidade, as quais possuem tradição e costumes peculiares. Alguns entrevistados atribuíram a origem de suas crenças ao fato de terem passado sua infância no interior do país ou na zona rural.

Eu acho que é muito passada pelos familiares quando você mora numa cidade pequena. A família, a maioria vem da região rural, mesmo que esteja há muito tempo na cidade ainda acredita em muitas coisas (Entrevistado 03).

A introjeção das crenças, em grande parte é realizada por influência familiar, por meio das heranças culturais, que é trazida da antiguidade do seio familiar às gerações futuras.

A forma como eu adotei essas crenças foi através da minha família, mais com as minhas avós que são pessoas bem antigas, esse pessoal que acredita mais, e [...] com a minha mãe que tem algumas crenças (Entrevistado 05).

É importante analisar o contexto social em que o indivíduo está inserido, pois com o avanço da tecnologia o consumismo está sendo cada vez mais estimulado. Viver bem hoje significa possuir produtos de última geração, tais como celular, computador, televisão, e não mais livros e instantes de troca de conhecimento com familiares mais antigos, como os avós. Isto, evidentemente, leva a quebra na transmissão de muitos conhecimentos populares.

Algumas pessoas recorrem a poderes sobrenaturais, frente às situações incontroláveis que geram insegurança como doença, morte e provações. A conotação mágico-religiosa dada a alguns objetos, simbolizando um poder sobrenatural, exerce influências benéficas ou não no dia-a-dia das pessoas, chegando até mesmo a controlar suas ações.

Sempre que eu vou fazer uma prova ou alguma coisa importante eu tenho a mania de ir com esse anel aqui, que tem essa santa, eu não vou sem ela (Entrevistado 05).

Muitos participantes citaram a utilização de crenças religiosas, as quais podem ser consideradas, o espectro da organização social. Assim, a religião apresenta-se como uma fonte ordenadora, permitindo a mudança de um estado de fragilidade para um de força, protegendo contra a vulnerabilidade frente ao mundo(14).

A vida cotidiana pode ser entendida como vida por excelência, onde há a criação de teorias que tentam simplificar ou mesmo interpretar fatos descritos pela ciência(15). Esse tipo de conhecimento é espontâneo, intuitivo, sendo denominado de senso comum. Podemos verificá-lo facilmente em nosso dia-a-dia, por exemplo, com as plantas medicinais que em nossa sociedade são bastante difundidas, tendo sua utilização pautada nos costumes e nas comprovações empíricas e não nos seus estudos farmacológicos. É mais uma questão cultural, de família, parentes da gente (Entrevistado 31).

A pesquisa revelou que os participantes, ora por respeito, ora por hábito, acabam experimentando no seu cotidiano várias crenças, mesmo afirmando não acreditar nas mesmas, isto porque os mitos não se opõem à realidade, e sim expressam-na através do ritual que se incorpora nos costumes, instituições e técnicas habituais da coletividade (16).Apesar de não ter e não acreditar, às vezes é preciso efetuar algumas dessas práticas pelo respeito a outras pessoas que acreditam (Entrevistado 09).

As relações interpessoais fornecem situações excepcionais para propagação de crenças, sendo esse processo mais saliente quando dele participam modelos sociais ou pessoas que possuem uma autoridade formal(7).

Com o nascimento de filho acontece da gente usar algum tipo de azeite, de coisas, que não são normalmente recomendadas pela medicina atual, mas que a gente usa muito mais em virtude da mãe, da avó, achar necessário, e para a gente não entrar em choque com estas gerações. (Entrevistado 27)

A preferência individual por um sistema terapêutico é mais influenciada pela cultura, tradição familiar e moda, do que pelo julgamento racional dos seus fundamentos(6).Alguns entrevistados atribuíram o uso de crenças e de práticas populares aos costumes e não a uma lógica.

[...] não faz mal não, aquele negócio que pé de coelho dá sorte, desde que você faça com moderação, você ter um anjinho da guarda, você ter uma bruxinha que tá na moda, a pedrinha que está na moda também, eu tenho aqui na minha sala. (Entrevistado 22)

Por meio da negociação entre os saberes, construímos um saber aliado melhor, formado da aliança dos saberes popular e científico(5). Olha, é uma coisa engraçada, você usa princípios que muitas vezes são alternativos. Bolsa de gelo contra a dor, eu recorri a um saber que era familiar, entretanto, tem um amparo científico (Entrevistado 32).

Como as crenças não são concebidas de uma forma sistemática e controlada, não é possível verificar sua validade, e nem mesmo aplicá-las de maneira uniforme a todas as pessoas e isto pode levar a um processo de rejeição às crenças.

Existem também pessoas que acreditam em crenças, mas tentam superá-las. Esta conduta é tomada por receio aos prejuízos que as crenças podem causar, se houver um apego excessivo, pois isto reduz a liberdade subjetiva do indivíduo(8). Não, eu as venço (Entrevistado 03). Costumo tomar banho depois do almoço e deixo o sapato virado sem problemas (Entrevistado 01).

A não aceitação das crenças, em parte pode ser explicada pela soberania do saber científico, o saber dos doutores, tornando ilegítimos e muitas vezes vergonhosos os outros saberes(10).

4.2 Influências e superação das crenças

Como já foi dito, a transmissão de crenças dá-se principalmente no seio familiar, entretanto quando há uma negação por parte desta, todo processo de difusão compromete-se chegando até mesmo a sua interrupção. Alguns dados evidenciam que há um rompimento do elo de ligação entre pais e filhos na transmissão das crenças no decorrer das gerações. Quando isto acontece, mesmo havendo o compartilhamento pelos pais, os filhos tomam conhecimento das crenças, mas não as adotam.

Meu avô era cheio de crenças, mas isto não foi incorporado pelas outras gerações (Entrevistado 24). A maioria dos meus familiares, como são mais velhos, tem aquelas crenças, mas eu não sigo não (Entrevistado 02).

O sistema de crenças é socialmente construído e compartilhado, integra a realidade comum de uma sociedade. Como o grupo pesquisado foi constituído de alunos e professores dos cursos de graduação da área de saúde, suas respostas sobre a relação social das crenças voltaram-se para o processo saúde e doença. Para as pessoas que acreditam acho que ajuda, porque existe o efeito placebo (Entrevistado 41).

O saber popular é derivado da experiência empírica, através da vivência, dos aconselhamentos de amigos e familiares, buscando a adaptação do conhecimento científico. Os enigmas da vida humana vão além do conhecimento científico, por isso, este não deve ser considerado como a única verdade, devemos respeitar as crenças e práticas populares das pessoas.

Tenho que conhecer o nível social do paciente para que eu saiba conduzir, como vou interferir nesta realidade, para modificar o comportamento dele frente a qualquer doença que seja considerada entre aspas uma superstição, isto não pode ser de maneira agressiva, porque nenhum indivíduo aceita. (Entrevistado 32)

A adoção de práticas populares pelos clientes reforça o compromisso que o profissional de saúde deve ter ao lidar com os conhecimentos dos pacientes, pois se este propósito não for alcançado muitos ficarão insatisfeitos, chegando a abandonar o tratamento ou a não referir adaptações realizadas, uma vez que, a terapêutica é uma prática humana permanentemente submersa em mitos, expectativas e mistério, pois lida com as ansiedades do homem, tais como morte e sofrimento(17). Mesmo com todo avanço científico e tecnológico das ciências da saúde, ainda persiste em determinados indivíduos o receio quanto a certas condutas de tratamento e prevenção de doenças.

Dentro da minha própria família, do pessoal mais antigo que não acredita em vacina, que é tudo lenda, que ao achar que tomar a vacina poderia provocar uma doença, o que não é verdade, que nós sabemos (Entrevistado 31).

Abandonar tratamentos instituídos pela medicina ocidental e procurar formas não convencionais de cura não é tão simples, pois isto pode gerar conseqüências trágicas ao paciente, e é este limiar de insegurança que leva muitos a desprezarem ou desconfiarem das práticas populares.

Eu acho que atrapalha, se alguém usa aquilo dentro da medicina ou em outra área qualquer, isso pode ser prejudicial. Por exemplo, pode deixar, abandonar um tratamento sério, para procurar uma garrafada, alguma coisa neste sentido, ou uma benzição, ou uma cirurgia no centro espírita, etc. isto pode atrasar o seu tratamento e pode ser fatal para o paciente. (Entrevistado 23)

Também não podemos negar que as práticas populares e crenças, de maneira menos penosa, auxiliam na resolução de problemas cotidianos, tornando os indivíduos menos suscetíveis a situações de risco. No que eu acredito em práticas populares, são os chás, que eu comecei a fazer uso disso porque eu tenho um problema de alergia medicamentosa, e passei a utilizar, sempre me dou bem com os chás (Entrevistado 08).

A maneira de agir, de pensar, de falar, geralmente é ditada pelas crenças, que estão presentes em nossa subjetividade, em nossa cultura, podendo tanto estimular como inibir as atitudes humanas, por isso a importância de estudá-las.

A antropologia permite analisar o outro, a partir de valores sócio-culturais e não pela distância geográfico-social. Assim podemos perceber que dentro da nossa própria sociedade há grupos com valores e visões de mundo bem específicos e diferenciados(18). Isto foi observado quando analisamos a existência de crenças entre o grupo pesquisado:

Eu nunca durmo com a porta do guarda-roupa aberta, pois acho que traz má sorte (Entrevistado 29). Sou meio cético quanto aos resultados, assim eu acredito porque o povo fala, eu não discordo, não duvido (Entrevistado 31).

A cultura, ferramenta essencial utilizada pela antropologia para estudar o outro, pode ser definida como a maneira que um grupo social tem de ver e estar no mundo. Cotidianamente as pessoas reúnem conhecimentos através da cultura popular por meio de experiências, tradição e costumes na tentativa de solucionar e compreender situações enigmáticas vivenciadas.

A diversidade cultural pode ser constatada por vários aspectos, tais como, arte, moral, leis, costumes e pelas crenças, as quais funcionam como uma bússola direcionando as práticas sociais. Ainda convivemos com mitos, crenças e crendices, apesar de todo avanço científico e tecnológico do mundo moderno(19). Entretanto, observamos que a maioria dos entrevistados afirmou não acreditar em crenças, mas as respeitam e lhes dão importância. Eu as considero muito importantes na cultura popular. Agora não tenho... nenhuma (Entrevistado 22). Eu acredito que algumas crenças muitas vezes podem contribuir para o desenvolvimento das pessoas (Entrevistado 28).

Mesmo não acreditando em crenças os entrevistados afirmaram que buscam conhecimento referente às mesmas, para compreender o comportamento humano e a cultura englobada neste processo. Às vezes eu leio a respeito do assunto, porque tem coisas interessantes, por exemplo, na minha área, tem muita crendice em relação à alimentação (Entrevistado 20).

Como as práticas sociais das crianças são os resultados do conjunto de saberes dos familiares, geralmente dos pais e dos avós, percebe-se uma grande adesão às crenças na infância, mas há também o abandono total das crenças ou uma redução significativa de sua utilização na fase adulta. Superstição tenho mais como estórias de crianças, ficou no meu passado (Entrevistado 31).

Em grande medida, as crenças são construídas social e culturalmente e por isso o seu sucesso depende da existência de redes de relações sociais que a sustentem. Quando isso não ocorre podemos observar que as crenças caem no abandono. A seguir estão enumerados os principais motivos que levaram as pessoas entrevistadas a abandonarem as crenças na fase adulta:

a) Aquisição de conhecimentos:

Isso quando criança é passado pelos pais, pelos avós, vizinhos, pessoal que tem assim um nível de estudo formal abaixo. Mas na medida que você vai crescendo, você vai estudando, todas essas coisas vão caindo por terra (Entrevistado 26). [...] eu prefiro utilizar os aspectos mais científicos (Entrevistado 31).

b) Ganho de autonomia frente aos familiares:

Minha mãe não deixava tomar manga com leite, então eu como era criança fazia o que ela mandava... mas depois que eu fui virar adolescente daí para frente eu fui fazendo o meu nariz, larguei ela pra lá (Entrevistado 21).

O conjunto de informações resgatadas sobre crenças dimensiona as características do grupo analisado, uma vez que nos permite compreender o sentido que eles dão aos fatos. Pode-se dizer que muitos estão na iminência de colisão entre o saber popular, que é transmitido pela herança familiar, e o saber científico que em parte é adquirido na academia.

5 Conclusão

As crendices encerram em si um aspecto mágico, existindo afinidade entre crenças e medicina popular. Ao mesmo tempo em que a tecnologia avança, nossa civilização, paradoxalmente, procura recursos não convencionais para solucionar seus problemas, recorrendo a práticas mágico-religiosas, ao pensamento imaginário, que proporcionem alívio de suas ansiedades.

A procura de soluções para esses problemas faz com que grande parte das pessoas se apegue ao saber popular e às superstições. Entretanto, como a amostra analisada foi constituída por pessoas com alto nível de escolaridade, revelou uma colisão entre o saber popular e o científico, surgindo assim, a exclusão do saber popular, sua manutenção "velada", ou mesmo, a aliança dos saberes, na medida em que o próprio saber pode ser transformado.

Com o incentivo da mídia ao consumismo, cada vez mais a população está abrindo mão da cultura popular, em troca da apropriação de bens de última geração como celular, computador, televisão, medicamentos, ocasionando uma interferência negativa na transmissão das crenças, práticas e cultura popular.

Há a necessidade de uma reflexão em torno do ser humano e dos seus aspectos biopsicossociais, e neste processo o sistema de crenças merece destaque, uma vez que afeta a vida do homem no seu sentido mais amplo, libertando-o de suas incertezas e tornando-o menos vulneráveis a situações adversas e ao mesmo tempo influenciando nas explicações dadas aos acontecimentos e na tomada de decisões, promovendo muitas vezes repercussões sociais.

Data de Recebimento: 12/04/2004

Data de Aprovação: 28/12/2004

  • 1. Mahfoud M. Folia de Reis: festa raiz ou experiência religiosa em comunidades da Estação Ecológica Juréia-Itatins na perspectiva da psicologia social fenomenológica [tese de Doutorado em Psicologia].São Paulo: Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo; 1996. 242 f.
  • 2. Cristino M. Psicologia da fé - cultura, fé e religiosidade. Rio de Janeiro (RJ) [on line] 2001. 4f. Disponível em: <http://www.holos.com.br/palavra/fé.html>. Acessado em: 24 jan 2002.
  • 3. Cartana MHF, Heck, RM. Contribuições da antropologia na enfermagem: refletindo sobre a doença. Revista Texto Contexto Enfermagem, Florianópolis (SC) 1997 set/dez; 6 (3):233-240.
  • 4. Cavalcante AM. A cura que vem do povo. Psychiatry On Line Brazil, São Paulo (SP), 2001 fev; 6: 3f. [on line].Disponível em: <http://www.polbr.med.br/arquivo/mour0101.htm>. Acessado em: 28 nov 2002.
  • 5. Medeiros LCM. As plantas medicinais e a enfermagem - a arte de assistir, de curar, de cuidar e de transformar os saberes [tese de Doutorado em Enfermagem]. Rio de Janeiro: Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2001.164 f.
  • 6. Avila-Pires FD. Teoria e prática das práticas alternativas. Revista Saúde Pública 1995;29(2):174-51.
  • 7. Krüger H. Crenças e sistemas de crenças. Revista do Instituto de Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 1993 jul/ago;45(1/2):3-15.
  • 8. Krüger H. Ação e crenças. Revista do Instituto de Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 1993 jan/jun; 45 (3/4): 3-11.
  • 9. Souza ZS, Moraes MIDM. A ética médica e o respeito às crenças religiosas. Bioética 1998;6(1):89-93.
  • 10. Vasconcelos EM. A terapêutica médica e as práticas populares de saúde. Revista Saúde em Debate 1996 mar; (49/50): 101-6.
  • 11. Nascimento MAA. As práticas populares de cura no povoado de Matinha dos Pretos-BA: eliminar, reduzir ou convalidar? [tese de Doutorado em Enfermagem]. Resumo de Tese, São Paulo, Enfermagem em Saúde Coletiva, Universidade de São Paulo;1997. 20f.[on line]. Disponível em: <http://www.uol.com.br/cultvox/revistas/sitientibus/8.htm>. Acessado em: 28 nov 2002.
  • 12. Bardin L. Análise de Conteúdo. 7Ş ed Lisboa: Edições 70;1977. 225p.
  • 13. Vasconcelos EM. Educação Popular e a Terapêutica Médica. In: Scocuglia A, Melo Neto JF. Educação Popular; outros caminhos. João Pessoa (PB): 1999. 9f. [on line]. Disponível em: <http://www.geocities. yahoo.com.br/culturadenem/texto7.htm>. Acessado em: 28 nov 2002.
  • 14. Rabelo MCM. Religião, ritual e cura. In: Alves PC, Minayo MCS, organizadores. Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz;1998. 174p.
  • 15. Bock AM. Psicologias: Uma introdução do estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva;1998. 368 p.
  • 16. Minayo MCS. Representações da cultura no catolicismo popular. In: Alves PC, Minayo MCS, organizadores. Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. 174 p.
  • 17. Sayd JD. Terapêutica e mito. Estudos em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro 1995;129:23.
  • 18. Victora CG, Knauth DR, Hassen MNA. Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução ao tema. Porto Alegre (RS): Tomo Editorial, 2000. 136p.
  • 19. Pechansky I. Psicanálise, mitos e crenças. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (RS) 1995 jan/abr; 17 (1): 71-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2004

Histórico

  • Aceito
    28 Dez 2004
  • Recebido
    12 Abr 2004
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br