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Gênero, saúde e enfermagem

Gender, health and nursing

Género, salude y enfermería

Resumos

Trata-se de um ensaio sobre Gênero, Saúde e Enfermagem, tema oficial da 65ª Semana Brasileira de Enfermagem em 2004. É feita uma revisão da construção de gênero como categoria analítica e uma análise crítica da construção sócio-histórica da enfermagem, sendo apontadas implicações dos estereótipos de gênero para o exercício profissional. O tema é articulado com as práticas concretas em que enfermeiras(os) são sujeitos da atenção, particularizando-se a saúde da mulher e a influência das relações entre homens e mulheres no processo saúde-doença. Enfatiza-se a necessidade de construir consciência de gênero como uma das condições para ampliação dos espaços profissionais apontando-se desafios e caminhos a percorrer.

Enfermagem; Gênero; Saúde da mulher


This essay is about Gender, Health and Nursing, the main theme of the 65th Brazilian Nursing Week held in 2004. Besides doing a review of the construction of Gender as an analytical category and a critical analysis of socio-historical building of the Nursing career, some implications of the stereotypes of gender to work practices are shown. The subject is articulated with concrete practices in which nurses are the focus of attention, particularly women's health and the influence of men and women relationship in the health-illness process. An awareness of Gender building as one of the conditions to the increasing of the professional field pointing out challenges and ways to follow is emphasized.

Nursing; Gender; Women's health


Tratase de un ensayo sobre Género, Salud y Enfermaje, tema oficial de la 65ª Semana Brasilera de Enfermería realizado en 2004. Se hace una revisión de la construcción del Género como una categoría analítica e un análisis crítico de la construcción socio-histórica de la carrera de enfermería, apuntando algunas implicaciones de los estereotipos de género para el ejercicio profesional. El tema está articulado con prácticas concretas en que los enfermeros(as) son el objeto de atención, y en particular la salud de la mujer y la influencia de las relaciones entre hombres y mujeres en el proceso salud-enfermedad. Se enfatiza la necesidad de construir una conciencia de género como una condición para la ampliación de los espacios profesionales apuntando los desafíos e caminos a seguir.

Enfermería; Género; Salud de la Mujer


ENSAIO

Gênero, saúde e enfermagem

Gender, health and nursing

Género, salude y enfermería

Edméia de Almeida Cardoso Coelho

Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem da USP. Professora Adjunto II da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia

RESUMO

Trata-se de um ensaio sobre Gênero, Saúde e Enfermagem, tema oficial da 65ª Semana Brasileira de Enfermagem em 2004. É feita uma revisão da construção de gênero como categoria analítica e uma análise crítica da construção sócio-histórica da enfermagem, sendo apontadas implicações dos estereótipos de gênero para o exercício profissional. O tema é articulado com as práticas concretas em que enfermeiras(os) são sujeitos da atenção, particularizando-se a saúde da mulher e a influência das relações entre homens e mulheres no processo saúde-doença. Enfatiza-se a necessidade de construir consciência de gênero como uma das condições para ampliação dos espaços profissionais apontando-se desafios e caminhos a percorrer.

Unitermos: Enfermagem; Gênero; Saúde da mulher.

ABSTRACT

This essay is about Gender, Health and Nursing, the main theme of the 65th Brazilian Nursing Week held in 2004. Besides doing a review of the construction of Gender as an analytical category and a critical analysis of socio-historical building of the Nursing career, some implications of the stereotypes of gender to work practices are shown. The subject is articulated with concrete practices in which nurses are the focus of attention, particularly women's health and the influence of men and women relationship in the health-illness process. An awareness of Gender building as one of the conditions to the increasing of the professional field pointing out challenges and ways to follow is emphasized.

Descriptors: Nursing; Gender; Women's health.

RESUMEN

Tratase de un ensayo sobre Género, Salud y Enfermaje, tema oficial de la 65ª Semana Brasilera de Enfermería realizado en 2004. Se hace una revisión de la construcción del Género como una categoría analítica e un análisis crítico de la construcción socio-histórica de la carrera de enfermería, apuntando algunas implicaciones de los estereotipos de género para el ejercicio profesional. El tema está articulado con prácticas concretas en que los enfermeros(as) son el objeto de atención, y en particular la salud de la mujer y la influencia de las relaciones entre hombres y mujeres en el proceso salud-enfermedad. Se enfatiza la necesidad de construir una conciencia de género como una condición para la ampliación de los espacios profesionales apuntando los desafíos e caminos a seguir.

Descriptores: Enfermería. Género. Salud de la Mujer.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Com o tema gênero, saúde e enfermagem, a Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) dá uma demonstração de compromisso com a redução de desigualdades sociais e com a superação de um paradigma que historicamente definiu para os homens espaços de liberdade e poder e para as mulheres o espaço da obediência e da submissão. Assumindo esse desafio, a ABEn nacional, como entidade representativa da Enfermagem, apresenta-se como reconhecedora de que o processo saúde-doença, como construção social, está também condicionado à qualidade das relações que se dão entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, portanto, entre e intragêneros. Assim, a articulação gênero, saúde e enfermagem é mais do que oportuna num momento histórico em que ultrapassamos inquietações e críticas para ampliar nossa consciência política, buscando, como sujeitos coletivos, instrumentos de mudança articulados à realidade macroestrutural.

Falar de gênero é falar de relações sociais e, conforme já nos dizia o filósofo francês Michel Foucault(1), falar de relações sociais é falar de relações de poder, poder que se exerce nos espaços privado e público. A socióloga brasileira Helena Hirata(2) e a socióloga francesa Daniele Kergoat ampliam essa compreensão entre nós, ao considerarem que as relações de gênero e de classe dinamizam todos os campos do social, ou seja, são transversais, perpassam todas as relações. A historiadora americana Joan Scott(3) formaliza, teoricamente, que as desigualdades sociais não são somente de classe, de raça/etnia ou de religião, elas trazem a forte marca das relações de gênero definidas segundo atributos culturais impostos ao masculino e ao feminino que fazem a mulher ser vista como cidadã de segunda classe, como já havia nos alertado Simone de Bevouir, em 1949.

Diante da relevância do tema, sentimo-nos na obrigação de, inicialmente, situar, no contexto do movimento feminista, a construção de gênero como categoria analítica e como abordagem que urge ser adotada e/ou ampliada na formação e nas práticas profissionais, o que hoje é defendido não só pelo movimento feminista, mas também por organizações de saúde internacionais e nacionais, inclusive o Ministério da Saúde do Brasil.

Gênero desenvolve-se como categoria analítica, sobretudo a partir da década de 1980. Na definição de Joan Scott(3), gênero tem como núcleo a conexão de duas proposições: "o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder".

Quanto à primeira proposição, a autora refere-se a múltiplas dimensões que operam na construção da identidade de gênero: a dimensão simbólica traz representações sobre a mulher, podendo ser exemplificada pelo sentido simbólico de Eva e Maria; a dimensão normativa dá sentido aos símbolos, expressos pelas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas, jurídicas, criando uma oposição binária entre masculino e feminino; a dimensão organizacional cria a aparente permanência na representação binária dos gêneros, sendo reforçada pelas instituições; a dimensão subjetiva afirma a nossa identidade de gênero com a incorporação de valores, símbolos e normas veiculados pelas instituições sociais(3). Essas dimensões são dinâmicas, inter-relacionadas e variam conforme o contexto histórico.

A segunda proposição, "gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder"(3), é considerada por Scott como a sua teorização do gênero, reforçando-a pela afirmação de que "o gênero é um campo primeiro no seio do qual ou por meio do qual o poder é articulado". Referindo-se ao significado do poder na sua proposta, Joan Scott(3) afirma: "precisamos substituir a noção de que o poder social é unificado, coerente e centralizado por alguma coisa que esteja próxima do conceito foucaultiano de poder, entendido como constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos "campos de forças".

Ao se referir ao poder, Foucault(1) considera uma das primeiras coisas a compreender é que o poder não está localizado [somente] no aparelho do Estado e que nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, quotidiano, não forem modificados.

Para esse autor: "o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis"(1).

A utilização da abordagem de gênero para a compreensão das relações de poder entre homens e mulheres registra também sua importância, na medida em que o foco desloca-se das questões das mulheres para uma análise das relações sociais como um todo; enfoca os mecanismos de subordinação das mulheres pelos homens e também pelo modo de organização das relações sociais; alcança a legislação, o Estado, as relações de trabalho, as representações sociais, campos simbólicos, etc; atua sobre os planos macro e micro-social(4).

Em síntese, o poder que se exerce nas relações de gênero é resultante de representações sobre mulheres e homens, presentes no imaginário social a partir das diferenças biológicas existentes entre os sexos. Essas representações vão integrando um sistema simbólico e de valores carregado de estereótipos que ditam o que é apropriado para mulheres e para homens, sendo naturalizados e veiculados pelas instituições sociais (família, escola, igreja, mídia) e incorporados subjetivamente, influenciando, profundamente, a formação da identidade de gênero. Nesse processo, os homens vão sendo direcionados para o mundo público e da produção, necessitando, para esse fim, de razão, objetividade, poder e liberdade, enquanto as mulheres são direcionadas para o espaço privado e da reprodução, para os quais necessitam, sobretudo, de emoção, disciplina, afetividade e obediência a códigos morais estabelecidos social e culturalmente.

2. ARTICULANDO GÊNERO, SAÚDE E ENFERMAGEM

Como articular gênero, saúde e enfermagem? Comecemos questionando: Qual a relação entre gênero e enfermagem? Qualquer resposta seria redundante frente ao que nos coloca Lopes, Meyer e Waldow(5) colegas pesquisadoras desse campo. Para elas, gênero "[...] articulado com outras categorias sociais, constitui e regula os saberes e as práticas, as identidades sócio-profissionais, bem como as instituições sociais e políticas no âmbito da saúde, onde a enfermagem se produz e se movimenta".

Assim, na enfermagem, essa abordagem tem uma importância singular, pois nos dá explicações sobre os conflitos trazidos para o campo profissional entre atividades de enfermagem e atividades médicas, estas últimas construídas num campo de domínio masculino.

As práticas de cuidado sempre estiveram associadas ao sexo feminino. Revisitando a história, constatamos no que se refere ao lugar social das mulheres, há um mito definido por concepções que remetem as mulheres a uma condição inata de inferioridade atribuída à sua aproximação com a natureza. Tais representações têm em seus princípios relação direta com a capacidade natural da reprodução biológica e com as responsabilidades nos cuidados com o doméstico e com a família(6).

Uma vez desvalorizado o trabalho que as mulheres realizam no âmbito doméstico e sendo o cuidar profissional, em muitos momentos, confundido com o que se dá nesse espaço, há uma estreita relação entre o lugar social de mulheres e de enfermeiras.

No caso específico da enfermagem moderna brasileira, esta nasce sob o discurso higienista do início do século XX, período em que a Igreja e a Medicina aliam-se, disciplinando, controlando e reduzindo a função da mulher à de mãe, esposa e educadora, sendo permitida a atuação no mundo público desde que somassem a obediência ao marido e aos médicos. Nesse duplo espaço, a história reservou para a mulher/enfermeira uma mobilidade limitada, devendo preservar o que é definido socialmente como qualidades: docilidade, submissão, abnegação e recato. Em outras palavras, no mundo público, o lugar das mulheres seria a extensão do mundo privado(7).

Para circular no espaço dos homens sem ser confundida com prostituta era necessário formar profissionais, cuja prática representasse o cumprimento de uma missão divina, cumprindo-se, assim, a recomendação de Florence Nightingale, de que as enfermeiras deveriam dedicar o melhor que pudessem a servir a Deus. A isso se soma o princípio defendido no início do século XX, quando da implantação da enfermagem moderna no Brasil, de que a base da arte da enfermeira é o instinto materno bem desenvolvido, entendido ser esse bastante aguçado na mulher brasileira. Assim considerava Ethel Parsons, enfermeira americana, que orientou os trabalhos de implantação da enfermagem profissional no Brasil(8).

Tais características particulares, adotadas como critérios para a inserção na profissão, constituiu obstáculo ao ingresso de homens na enfermagem naquele início de século, instituindo-se a divisão sexual do trabalho também na enfermagem, sendo adotada, por algumas escolas, a obrigatoriedade de ser do sexo feminino para ingressar no curso(9).

Apesar de haver uma afinidade histórica das mulheres com o cuidar, reconhecemos que preconceitos de gênero restringiram a participação dos homens na profissão. Mas, embora a enfermagem seja construída culturalmente como prática sexuada, feminina, os homens na profissão são uma realidade cada vez mais presente, representando rupturas importantes com estereótipos de gênero relacionados à prática do cuidado. Além da divisão sexual do trabalho na enfermagem, foi instituída sua divisão social representada pela hierarquização da profissão em categorias diversificadas enfermeiras, auxiliares e técnicas de enfermagem estabelecendo-se também uma relação de desigualdade.

No processo histórico de consolidação da profissão, somente a partir da década de 1960 foi intensificada a preocupação com seus aspectos epistemológicos e na década de 1980, a enfermagem, que até então tinha no servir abnegado sua razão de ser, lançou um olhar mais crítico sobre sua história, articulando-a ao processo de formação e consolidação da sociedade capitalista, o que constituiu um passo qualitativo de grande significado(6).

Na década de 1990, os estudos de gênero extrapolaram as ciências humanas e sociais e chegaram às ciências da saúde. A enfermagem saiu à frente, motivada pelos conflitos de sua prática, gerados pelas relações hierárquicas e desiguais com a medicina, campo de domínio masculino(10). Hoje, a enfermagem contabiliza o acúmulo de conhecimento na área, pela utilização da abordagem de gênero em variadas modalidades de investigação científica.

Desvendar os mecanismos ideológicos que marcaram a construção da enfermagem como profissão e que ainda atuam eficazmente na atualidade, tem provocado mudanças nas referências de saber e poder, abrindo espaços para a construção de resistências aos poderes instituídos e de enfrentamento, vislumbrando, assim, a superação. Construir consciência de gênero vem provocando mudanças na formação e nas práticas profissionais, fazendo com que enfermeiras e enfermeiros passem a ser sujeitos também de uma outra história.

3. ARTICULANDO GÊNERO E PRÁTICAS EM SAÚDE

Quando investigamos a prática da enfermagem na atenção à saúde, deparamo-nos com uma problemática que envolve questões da conjuntura social, econômica e política que influenciam a formulação e implementação das políticas de saúde. Além disso, para inserir-se no mundo das ciências, a enfermagem "adotou o paradigma legitimador da ordem social e médica vigentes, fundamentado na racionalidade científica e na visão tecnicista da ciência moderna"(11).

Por isso, consideramos que, na atualidade, os maiores desafios da enfermagem são: 1) ampliar a consciência de gênero, buscando o empoderamentoª a O empoderamento é um processo no "qual os indivíduos ampliam o controle sobre suas vidas no contexto da participação em grupos, visando às transformações da realidade social e política em que vivem. Quanto à ação junto a trabalhadores, a intervenção para o empoderamento visa a "aumentar o espaço para o exercício do poder tanto individual como coletivo, entendendo-se individual e coletivo não como pólos opostos mas, numa relação dinâmica que se estabelece entre eles. de quem cuida e de quem é cuidado, bem como o conseqüente fortalecimento da arte e da ciência do cuidar; 2) ampliar a participação dos profissionais em espaços políticos e a parceria com outros campos do saber, buscando construir, coletivamente, instrumentos para o controle social das políticas públicas de saúde; 3) investir na qualidade da relação profissional-usuárias(os) dos serviços de saúde, compreendendo os sujeitos do cuidado em sua multidimensionalidade, buscando superar o paradigma biologicista da ciência moderna que individualiza e fragmenta seres humanos.

Nessa perspectiva, na articulação gênero, saúde e enfermagem, não perderíamos a oportunidade de falar de um campo de exercício do nosso saber-fazer profissional em que as relações de gênero participam fortemente do processo saúde doença: o campo da atenção à saúde da mulher. Nos espaços de cuidado à saúde das mulheres, a problemática de gênero mostra sua complexidade na singularidade da vida de cada uma delas. As equipes multiprofissionais, frente à implementação das políticas públicas de saúde, ora constroem espaços de transformação social, ora mantêm a ordem institucional, reproduzindo desigualdades de classe e de gênero na relação profissional-cliente.

A grande alavanca para a mudança de qualidade na atenção à saúde da mulher, foi o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) elaborado em 1983, com a participação efetiva de feministas. O PAISM foi oficializado como parte de um programa global de assistência primária à saúde da população, em que a particularização da saúde da mulher representava, segundo o documento que o divulgou, apenas um passo no sentido de aumentar a capacidade resolutiva da rede básica de serviços, trabalhando dentro de uma nova ótica a da assistência integral , de modo a contribuir para o desenvolvimento institucional do setor e para a reordenação do sistema de prestação de serviços de saúde como um todo(12).

Embora algumas experiências pontuais tenham se mostrado positivas, o PAISM, ao longo dos vinte anos de oficialização, foi se descaracterizando, na prática, como política de saúde e as mulheres, que deveriam ter suas necessidades de saúde atendidas em todas as fases do ciclo vital, mantiveram-se reféns de uma história de dependência e subordinação aos parceiros sexuais e ao modelo hegemônico de atenção à saúde, que as reduz a um corpo essencialmente biológico e compromete a efetividade das políticas públicas.

Na atualidade, no Brasil, mulheres ainda adoecem e morrem na gravidez, parto e puerpério e por complicações do abortamento, mortes, na grande maioria, evitáveis. São 110/100 mil nascidos vivos, o que nos leva a presumir que a cada morte materna registrada, uma não é notificada(13); o abortamento, que complica a saúde e mata mulheres, constitui um grave problema de saúde pública, estando associado à falta de uma política de planejamento familiar e à criminalização do ato de abortar, o que não impede que cerca de 1 400 000 abortos sejam praticados por ano, no Brasil, de modo clandestino e em condições insalubres(14); 40,1% das mulheres em idade fértil estão esterilizadas(15), a grande maioria por falta de informação e acesso a métodos contraceptivos reversíveis, outras pela ânsia de resolver problemas econômicos e sociais, aumentando as estatísticas de arrependimento pós-laqueadura tubária; a cultura da cesárea caminha passo a passo à da esterilização, ampliando em 28,5% os índices de mortalidade materna(16); o câncer ginecológico é um terrível destruidor de vidas femininas, mas o acesso à prevenção do câncer de colo uterino continua limitado e 70% dos casos são diagnosticados em fase avançada(17); o câncer de mama, ainda que objetivamente difícil de prevenir, tem franca relação com as condições de vida adversas enfrentadas pelas mulheres(18); pouco informadas e comumente sob o poder do parceiro sexual, as mulheres se vêem continuamente expostas às doenças sexualmente transmissíveis, tendo a infecção pelo HIV/AIDS um crescimento de 413% entre as mulheres brasileiras nos últimos 10 anos, com forte incidência entre aquelas que têm parceiro fixo(19); a violência doméstica maltrata e destrói subjetividades, numa clara demonstração de impotência das mulheres diante de parceiros a quem a sociedade de gênero outorgou o direito de lhes calar a vida; e, finalmente, meninas sofrem em silêncio a dor da violência sexual praticada, muitas vezes, em seus próprios lares.

A superação dessa realidade exige a intenção e a ação do Estado e o controle social efetivo das políticas públicas com a participação das mulheres. Nesse sentido, em 2002, a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras aprovou a Plataforma Política Feminista, que reúne, em seus princípios, entre outros: a crítica ao modelo neoliberal; o compromisso da defesa de direitos, tais como educação, saúde, moradia, previdência, igualdade e justiça social; o compromisso com as lutas pelo direito à terra, à moradia, contra todas as formas de discriminação e violência, pelos direitos das mulheres indígenas, pela assistência integral à saúde da mulher, pelos direitos sexuais e reprodutivos. Estes últimos, incluindo: o controle das mulheres sobre seu corpo, o exercício prazeroso da sexualidade sem o risco de gravidez indesejada e de contrair doenças, o livre arbítrio nas decisões de ter ou não ter filhos e sobre quantos e quando tê-los, o direito a exercer com dignidade e respeito sua orientação sexual, a discriminalização do aborto e seu reconhecimento como problema de saúde pública(20).

Toda e qualquer ação referente à superação dessa problemática deve considerar que as especificidades do ciclo vital da mulher somadas aos papéis a ela atribuídos socialmente, determinam formas diferenciadas de adoecer e morrer; e que, a saúde extrapola o biológico e a função reprodutiva havendo grande influência das relações entre os gêneros e da qualidade da atenção recebida no sistema oficial de saúde, onde são implementadas as políticas públicas(18).

A enfermagem faz parte desse processo, sendo do nosso conhecimento que a tecnização da prática da enfermagem, que se deu a partir da segunda metade do século XX, atendendo à demanda de especializações da medicina curativa, hospitalar, afastou suas categorias profissionais da saúde pública, área que caracterizou a origem da profissão. A retomada progressiva desse campo de ação vem se dando com a ampla e efetiva atuação da enfermagem no Programa de Saúde da Família, espaço em que profissionais vêm exercitando a construção do trabalho em equipe ainda com algumas tensões que retardam a adoção da perspectiva interdisciplinar, aspecto importante no processo de superação de desigualdades.

4. CAMINHOS A PERCORRER

É do nosso conhecimento e da nossa vivência que os poderes instituídos, nesses incluídos o poder médico, têm limitado a autonomia e a resolubilidade da prática de enfermeiras e enfermeiros, o que se explica à luz de gênero. Se esse é um dado de realidade, é necessário que seja possibilitado à categoria profissional a inserção em atividades de reflexão e de discussão sobre a prática, em que experiências pessoais possam ser coletivizadas e, no confronto com as realidades micro e macroestruturais, criem-se instrumentos para se pensar mudanças(6).

Nessa perspectiva, não basta reconhecer os sistemas de opressão e seus mecanismos de manutenção e de reprodução, mas construir instrumentos que vislumbrem a superação, o que se faz em parceria com quem vive e sente os mesmos problemas. Não basta reconhecer as desigualdades sociais, criticar e ter boas intenções; é preciso estreitar os laços e criar espaços nos serviços de saúde para a participação ativa das mulheres, para a troca de experiências e emoções, numa relação entre sujeitos que potencialize subjetividades e a capacidade reivindicatória por direitos, humanizando as relações e exercitando o acolhimento e a ética do cuidar.

Data do recebimento: 13/09/2004

Data da aprovação: 11/10/2005

Conferência de abertura da 65ª Semana Brasileira de Enfermagem e 6ª Semana Tocantinense de Enfermagem, 12/05/04, Palmas-TO

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  • 20
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  • a
    O empoderamento é um processo no "qual os indivíduos ampliam o controle sobre suas vidas no contexto da participação em grupos, visando às transformações da realidade social e política em que vivem. Quanto à ação junto a trabalhadores, a intervenção para o empoderamento visa a "aumentar o espaço para o exercício do poder tanto individual como coletivo, entendendo-se individual e coletivo não como pólos opostos mas, numa relação dinâmica que se estabelece entre eles.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Recebido
      13 Set 2004
    • Aceito
      11 Out 2005
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