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Resgate histórico das primeiras Semanas de Enfermagem no Brasil e a conjuntura nacional

Historical rescue of the first Nursing Weeks in Brazil and the national conjuncture

Rescate histórico de la primeras Semanas de Enfermería en Brasil y la situación nacional

Resumos

Neste texto aborda-se um dos eixos temáticos da 65ª Semana Brasileira de Enfermagem, "o resgate da história da Enfermagem, da ABEn, e conseqüentemente da Semana Brasileira de Enfermagem", em que se buscou relacionar alguns dos principais acontecimentos políticos que ocorreram a partir da terceira década do século XX, quando se inicia a realização das Semanas de Enfermagem, revelando determinadas relações existentes entre os momentos políticos e as propostas desses eventos. A perspectiva de análise busca interpretar a realidade a partir de uma concepção de história, que entende os acontecimentos como resultados da ação de homens e mulheres, determinados por diferentes contextos econômicos, políticos e socioculturais, os quais ajudam a definir as condições objetivas e subjetivas em que se movem os vários atores.

História da Enfermagem; Congressos; Brasil


In this text we reflect about the thematic axles of 65ª Brazilian Week of Nursing, "rescue of Nursing history, of ABEn, and thus of Brazilian Week of Nursing", where it searched to relate some politicians events who had occurred from the third decade of century XX, when initiates the Weeks of Nursing, disclosing determined existing relations the politicians moments and the proposals of these scientifics/culturals. The analysis perspective to interpret the reality from history, understanding the events, as resulted of the men and women action determined by different economic contexts, politician and social-cultural, which helps to compose the picture and to define the objective and subjective conditions where some involved actors.

History of nursing; Congresses; Brazil


En este texto reflejamos uno de los árboles temáticos de la 65ª Semana Brasileña de Enfermería, "el rescate de la historia del oficio de enfermera, del ABEn, e consecuentemente de la semana brasileña del oficio de enfermera", donde se buscó relacionar algunos de los principales acontecimientos que habían ocurrido a partir de la tercera década del siglo XX, cuando es iniciada la realización de las semanas de enfermería, revelando determinadas relaciones entre los momentos políticos y las ofertas de estos eventos. La perspectiva de analice busca interpretar la realidad de la historia, entendiendo los acontecimientos como resultado de la acción de hombres y de mujeres determinados por diversos contextos económicos, políticos y socio-culturales, qué ayudan a definir las condiciones objetivas y subjetivas de los agentes.

Historia de la Enfermería; Congresos; Brasil


HISTÓRIA DA ENFERMAGEM

Resgate histórico das primeiras Semanas de Enfermagem no Brasil e a conjuntura nacional

Historical rescue of the first Nursing Weeks in Brazil and the national conjuncture

Rescate histórico de la primeras Semanas de Enfermería en Brasil y la situación nacional

Maria Lúcia Frizon Rizzotto

Enfermeira. Doutora em Saúde Coletiva (Unicamp). Professora Adjunta do Curso de Enfermagem da Unioeste Campus de Cascavel, PR. frizon@terra.com.br

RESUMO

Neste texto aborda-se um dos eixos temáticos da 65ª Semana Brasileira de Enfermagem, "o resgate da história da Enfermagem, da ABEn, e conseqüentemente da Semana Brasileira de Enfermagem", em que se buscou relacionar alguns dos principais acontecimentos políticos que ocorreram a partir da terceira década do século XX, quando se inicia a realização das Semanas de Enfermagem, revelando determinadas relações existentes entre os momentos políticos e as propostas desses eventos. A perspectiva de análise busca interpretar a realidade a partir de uma concepção de história, que entende os acontecimentos como resultados da ação de homens e mulheres, determinados por diferentes contextos econômicos, políticos e socioculturais, os quais ajudam a definir as condições objetivas e subjetivas em que se movem os vários atores.

Descritores: História da Enfermagem; Congressos; Brasil.

ABSTRACT

In this text we reflect about the thematic axles of 65ª Brazilian Week of Nursing, "rescue of Nursing history, of ABEn, and thus of Brazilian Week of Nursing", where it searched to relate some politicians events who had occurred from the third decade of century XX, when initiates the Weeks of Nursing, disclosing determined existing relations the politicians moments and the proposals of these scientifics/culturals. The analysis perspective to interpret the reality from history, understanding the events, as resulted of the men and women action determined by different economic contexts, politician and social-cultural, which helps to compose the picture and to define the objective and subjective conditions where some involved actors.

Descriptors: History of nursing; Congresses; Brazil.

RESUMEN

En este texto reflejamos uno de los árboles temáticos de la 65ª Semana Brasileña de Enfermería, "el rescate de la historia del oficio de enfermera, del ABEn, e consecuentemente de la semana brasileña del oficio de enfermera", donde se buscó relacionar algunos de los principales acontecimientos que habían ocurrido a partir de la tercera década del siglo XX, cuando es iniciada la realización de las semanas de enfermería, revelando determinadas relaciones entre los momentos políticos y las ofertas de estos eventos. La perspectiva de analice busca interpretar la realidad de la historia, entendiendo los acontecimientos como resultado de la acción de hombres y de mujeres determinados por diversos contextos económicos, políticos y socio-culturales, qué ayudan a definir las condiciones objetivas y subjetivas de los agentes.

Descriptores: Historia de la Enfermería; Congresos; Brasil.

INTRODUÇÃO

Antes de iniciar a exposição do tema é necessário fazer dois alertas. O primeiro está relacionado à compreensão de que o conhecimento que produzimos é sempre parcial, provisório e historicamente datado. Um mesmo assunto pode ser tratado com olhares distintos, resultando em interpretações igualmente diferenciadas. As diferentes interpretações/representações do real dependem do referencial utilizado, da trajetória do autor, das experiências vividas e das vinculações teóricas e políticas de quem pretende reproduzir/sistematizar um dado aspecto do real. Nesse sentido, este texto estará condicionado por essas limitações, não advindas do referencial ao qual a autora se filia, mas das suas próprias limitações.

Um segundo alerta refere-se à necessidade de se realizar um recorte na temática proposta, em face da extensão e amplitude do tema, o que poderia deixar lacunas importantes na abordagem realizada. Por isso a escolha em analisar com mais profundidade apenas o período em que se deram as comemorações das primeiras versões deste evento técnico/científico no Brasil.

Como uma das finalidades das Semanas de Enfermagem é discutir aspectos do conhecimento que dão suporte teórico, técnico e político a essa prática social e, visto que a 65ª Semana Brasileira de Enfermagem colocou como um dos eixos temáticos "o resgate da história da Enfermagem, da ABEn, e conseqüentemente da Semana Brasileira de Enfermagem", neste texto abordam-se alguns elementos da realidade pregressa, que podem contribuir para a compreensão da trajetória dessa profissão, a partir dos anos 20 do século passado, fazendo inflexões em determinados momentos históricos os quais julgou-se importante destacar.

A proposta do eixo temático da 65ª Semana de Enfermagem nos remete à história, tanto no título como no seu subtítulo. Isso revela uma preocupação com a história, levando-nos a refletir sobre a sua importância. Penso que a proposta ou a necessidade de estudar a história, e neste caso a história da enfermagem e da Semana Brasileira de Enfermagem, não está em conhecer os fatos que marcaram a trajetória dessa profissão ou desse evento comemorativo na perspectiva de uma seqüência linear de datas e/ou acontecimentos, mas tentar entender de forma substantiva o contexto em que ocorreu cada um desses fatos e/ou fenômenos.

A necessidade de conhecer a história pregressa é fundamental tanto para se entender o presente, como para evitar erros cometidos no passado, ao mesmo tempo em que permite pensar estratégias de intervenções futuras, visando à transformação da realidade. Ou seja, o estudo da história da enfermagem e de suas "semanas" deve servir de instrumento para o entendimento das razões e dos porquês de a profissão enfermagem ter chegado ao estágio atual dessa forma e não de outra, com as características que tem e não outras, com os problemas que tem e não outros.

Deve servir para se conhecer os determinantes econômicos, políticos, sociais e culturais que permitiram que se chegasse a este desenvolvimento científico, a este processo organizativo, a este nível de formação e de representação e não a outro. Deve ainda ajudar a explicar o significado social que a profissão enfermagem tem numa sociedade como a brasileira, marcada pela violência, por resquícios machistas, extremamente desigual, excludente, elitista, fragmentada e individualista. Enfim, o estudo e, conseqüentemente, o entendimento da história deve contribuir para o fortalecimento da categoria e da profissão como prática social. É com essa perspectiva e com esses pressupostos que pretendo abordar a essa temática.

ASPECTOS HISTÓRICOS DS ENFERMAGEM E A SUA PROFISSIONALIZAÇÃO

Pode-se afirmar que a enfermagem é quase tão antiga quanto a história da humanidade. A partir do momento em que o homem se diferenciou dos outros animais e passou a dominar a natureza em benefício próprio, na medida em que foi se hominizando e explicando os fenômenos da natureza e os fenômenos sociais, inclusive o processo de adoecer e morrer, é que emergiram as práticas cuidativas que hoje caracterizam essa atividade humana denominada enfermagem.

Entretanto, o caráter científico desta prática humana só se inicia quando os seus exercentes começam a refletir, a questionar e a tentar explicar, do ponto de vista do conhecimento científico, as atividades que realizam. Pode-se dizer que em nível internacional, isso se inicia no século XIX, com Florence Nightingale, e entre nós com a criação da Escola de Enfermagem do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), em 1922, hoje conhecida como Escola Anna Nery.

De fato é quando a enfermagem, por razões históricas, precisa superar a era empírica de transmissão/assimilação do conhecimento, quando lhe é colocada a necessidade de transmissão do conhecimento acumulado em espaços formais ou não, como a escola, o hospital, a unidade de saúde, etc., que os enfermeiros, nesse processo, iniciam a reflexão sobre o conhecimento que devem transmitir e, conseqüentemente, sobre a prática que vêm desenvolvendo. Para isso, criam estratégias e espaços de discussão e debate, incluindo nessas discussões a própria organização profissional. É possível ter sido esta uma das razões que levaram as enfermeiras brasileiras da Escola de Enfermagem Anna Nery, em 1940, a promover a 1ª Semana de Enfermagem.

A Semana Brasileira de Enfermagem, denominada Semana da Enfermeira até 1958, foi o primeiro evento dessa natureza de que se tem registro, realizado com a finalidade de congregar a categoria, divulgar as suas atividades e estudar os problemas de sua prática. As proposições explicitadas eram no sentido de melhorar a assistência à saúde da população, embora nem sempre conscientes dos limites de suas ações.

Inicialmente a Semana de Enfermagem não era realizada no período de 12 a 20 de maio. Esse período se consolidou como tal a partir de sua oficialização pelo Decreto Federal nº 48.202, de 1960, do Presidente Juscelino Kubitschek, que estabeleceu o período de 12 a 20 de maio como a Semana da Enfermagem. Nesse ano comemorou-se o centenário da Escola do Hospital São Tomás, fundada por Florence Nightingale, sendo denominado "ano Florence Nightingale", as comemorações no Brasil tiveram a presença da enfermeira Evelyn Arnold Opie, chefe do serviço de enfermagem do King's College Hospital de Londres, convidada pelo Ministério de Educação e Cultura(1).

Vale lembrar que o dia 12 de maio já havia sido reconhecido como Dia do Enfermeiro (dia do nascimento de Florence Nightingale), por meio do Decreto Federal n.º 2.956, de 10 de agosto de 1938, assinado pelo então Presidente Getúlio Vargas. Este Decreto determinava que no dia 12 de maio, deveriam ser prestadas homenagens especiais à memória de Anna Nery em todos os hospitais e escolas do país(1).

O caráter que deveria assumir a Semana de Enfermagem está, em grande medida, expresso na ementa do referido decreto, estabelecendo que "no transcurso da Semana deverá ser dada ampla divulgação às atividades da enfermagem e posta em relevo a necessidade de congraçamento da classe em suas diferentes categorias profissionais, bem como estudados os problemas de cuja solução possa resultar melhor prestação de serviço ao público"(1).

Não se tem a pretensão, nesta exposição, de recuperar os temas de todas as Semanas de Enfermagem, já realizadas desde então, mas tentar mapear algumas questões que preocuparam a enfermagem profissional brasileira em determinados períodos da história nacional e da própria profissão.

Acreditamos que, da mesma forma que razões econômicas, políticas, sociais e de saúde criaram as condições objetivas para a emergência da enfermagem profissional no Brasil, no início do século XX, o processo de discussão que se deu ao longo do tempo, no âmbito das 65 Semanas de Enfermagem, promovidas pela Associação Brasileira de Enfermagem, no período de 1940 a 2004, está intimamente articulado ao contexto econômico, político, de saúde, de acúmulo teórico, de aperfeiçoamento técnico, científico, cultural, que caracterizaram cada período de desenvolvimento dessa profissão.

Neste sentido, pode-se afirmar que, nestes cerca de 80 anos de existência da enfermagem moderna no Brasil, houve importantes momentos de inflexão no que se refere ao que era considerado central para o desenvolvimento e consolidação da profissão e, conseqüentemente, para o debate que se fez, nos diversos espaços e meios de divulgação do pensamento de cada período, incluindo nestes espaços as Semanas de Enfermagem.

Anteriores à realização das Semanas de Enfermagem (1940) e Congressos de Enfermagem (1947), os registros do que era considerado central na profissão se encontram, dentre outros documentos, nos denominados Annaes de Enfermagem, que começaram a ser publicados no início dos anos de 1930. Nesses Annaes e em outros documentos e bibliografias disponíveis é possível identificar algumas características do saber/fazer da enfermagem brasileira, daquele primeiro período, resultado de um processo de formação específico que caracterizou o início da denominada enfermagem moderna no Brasil.

Nesse primeiro momento, iniciado com a vinda do grupo de 10 enfermeiras norte-americanas ao Brasil, em 1922, destaca-se a introdução do modelo proposto por Ethel Parsons, construído a partir da adequação à realidade brasileira do Sistema Nightingale, com base na experiência norte-americana. Do ponto de vista da educação formal e do corpo de conhecimento que dava suporte à ação prática, esse período se firmou com base em princípios científicos e na execução de técnicas de enfermagem. Isso se explica em grande medida pelo modelo hegemônico de organização e atenção à saúde então vigente, baseado na execução de técnicas e em princípios científicos, em que predominavam os estudos de economia de tempo e movimento das escolas de Taylor e Fayol.

Além disso, buscava-se a afirmação da prática profissional por meio de regulamentações institucionais que garantissem certo status para a enfermagem brasileira e o reconhecimento da profissão, no âmbito do Estado e da sociedade. Elegeu-se como estratégia as formas associativas e de organização da profissão, como a criação da Associação Brasileira de Enfermagem ABEn em 1926 ao mesmo tempo em que se fazia uma intervenção política, como a luta pela criação da Superintendência de Enfermagem, em 1928, no DNSP, no mesmo nível hierárquico das outras inspetorias.

Buscou-se incansavelmente, nesse período, o reconhecimento e a delimitação dos espaços para a enfermagem brasileira no âmbito do Estado e da sociedade. Associado a este aspecto de intervenção política, ministrava-se uma formação fundamentada numa filosofia idealista e no feminismo da época, com um forte apelo moral e religioso. Isso em face da vinculação que existia entre a Igreja e o Estado, além da carga cultural e do peso da história desta prática profissional(2).

Em 1932 Edith Fraenkel, escrevendo sobre a enfermagem brasileira para os Annaes de Enfermagem, afirmava: "É a enfermagem um amplo desdobramento do amor materno, o desejo sempre existente nos seres humanos, mais desenvolvido na mulher do que no homem, de auxiliar os que sofrem, proteger os infelizes e como tal deve ter existido desde que o mundo é mundo".

Desde então, muitas mudanças ocorreram na prática e na compreensão do que essa profissão realmente é e do seu significado social. Contudo, a carga dessa história ainda faz parte do imaginário e da representação que uma grande parte da sociedade tem do que seja enfermagem.

AS PRIMEIRAS SEMANAS DE ENFERMAGEM E OS CONTEXTOS POLÍTICO E ECONÔMICO EM QUE OCORRERAM

Em 1940, quando da realização da Primeira Semana de Enfermagem, o Brasil vivia os últimos anos da era Vargas (19301945), estávamos em plena Segunda Guerra Mundial (19391945) e era um ano antes da realização da Primeira Conferência Nacional de Saúde, que se deu de 10 a 15 de novembro de 1941, em comemoração ao aniversário do regime varguista. Os ideais que orientaram a política de Vargas se centravam na formação de uma nova nação e de um novo homem e na necessidade de consolidar a unidade nacional(3). Isso se refletia em todos os espaços de ação do Estado e, consequentemente, na prática da enfermagem.

É importante lembrar que é durante o período de Vargas que o Estado Desenvolvimentista Brasileiro consolidou o seu formato institucional e as suas bases sociais de apoio. Durante este período, sustentado por uma coalizão socioeconômica de caráter desenvolvimentista, o Estado assumiu papel decisivo nos processos de industrialização e modernização da sociedade brasileira, transformando-se, por meio de sua intervenção e de sua política econômica, em força centrípeta em torno da qual se moviam os infinitos atores e os mais diversos e heterogêneos grupos de interesses. Neste processo, o Estado expandiu-se progressivamente, centralizando poderes, recursos e funções, tornando-se, em grande medida, o definidor de metas e objetivos para toda a sociedade(4).

A partir dos anos 30, quando se acentuou o processo de industrialização, coube à ação estatal, além das funções clássicas, a múltipla tarefa de promover o crescimento, administrar o ciclo econômico, disciplinar a distribuição social da riqueza e comandar a inserção nacional na dinâmica dos interesses multinacionais, o que outorgaria ao Estado uma posição decisiva na reprodução econômica, social e política da sociedade(4).

Sobrecarregado por estas múltiplas tarefas, "o Estado agigantou sua estrutura, debruçando-se sobre a tessitura social, encapsulando alguns interesses embrionários existentes, e gerando outros novos" (5). Contudo, em face da forma dependente com que o capitalismo se manifesta em formações sociais periféricas como a nossa, permitindo que o Estado secundarize as políticas sociais e negligencie seu papel de provedor de serviços públicos, permitiu que o Estado brasileiro nunca "fosse keynesiano nem social-democrata e sim cartorial ainda quando desenvolvimentista"(5).

Ao contrário dos países centrais, o Estado brasileiro não propiciou as condições de reprodução social da totalidade da força de trabalho, nem assumiu a responsabilidade pelos 'marginalizados'. Neste sentido, ao invés do Estado de Bem-Estar Social, o que tivemos foi uma combinação permanente e alterada de paternalismo e repressão. O que, se não impediu que toda a população tivesse sido excluída do 'mercado capitalista', transformou-a em consumidora marginal dos seus produtos materiais e culturais, incluindo aí a aspiração ao bem-estar, ao conforto, ao acesso aos serviços de saúde, próprios de um capitalismo desenvolvido(5).

Se, do ponto de vista da indução do processo de industrialização, a ação estatal teve êxito, por meio do processo de substituição de importações e de generosas políticas de crédito para os setores produtivos, no que tange à gestão da reprodução social das relações de produção e dominação, o desempenho foi bem menos animador. Nos aspectos referentes às questões sociais, o Estado Desenvolvimentista notabilizou-se por uma ação seletiva e excludente, verificável, dentre outros aspectos, pela criação de um sistema previdenciário restrito e pela inexistência de políticas sociais progressivas e abrangentes.

As bases que sustentaram o Estado brasileiro, a partir dos anos 30, sempre se pautaram em alianças heterogêneas, que o obrigou a uma gestão conservadora e centralista quase sempre autoritária dos conflitos políticos e a um "intervencionismo" econômico e uma regulação social extensa e casuística responsável pelo que se chama de "acumulação politizada"(5).

No campo da saúde, desde o início do governo Vargas, e particularmente a partir de 1934, quando Gustavo Capanema assumiu o Ministério de Educação e Saúde Pública (MESP), "inicia um processo de consolidação de uma nova estrutura administrativa para a Saúde Pública que perdurará, com poucas alterações, até a criação do Ministério da Saúde, em 1953, no segundo governo Vargas. Na realidade, foi essa reforma que estruturou a política de saúde pública no período em questão, adequando-a aos princípios básicos que haviam definido a política social do Estado Novo"(3).

A reforma administrativa dos anos de 1930 tinha como perspectiva a centralização e o aumento da capacidade reguladora do governo central sobre os Estados. A partir da Reforma Capanema, em 1937, com a intenção de ter uma maior presença do governo federal nas diversas regiões do país, nacionalizando a política de saúde, fez-se um esforço para criar um aparato estatal centralizado, capaz de coordenar, supervisionar e fiscalizar as ações de saúde nos Estados, padronizando normas e serviços.

Isso terá implicações para a enfermagem de saúde pública da época, na medida em que as enfermeiras formadas, por determinação presidencial, deveriam deixar de atuar diretamente nos domicílios e nos centros de saúde e passar a preparar visitadoras para os quadros de pessoal dos serviços de saúde pública estadual, para todo o território nacional.

Tal estratégia correspondeu a uma mudança em direção oposta ao do projeto defendido na década de 20 por Ethel Parsons, que usara todo seu prestígio para extinguir a categoria de visitadora sanitária no Rio de Janeiro, defendendo a permanência unicamente de enfermeiras formadas para essa atividade. A partir disso, emergiu um novo perfil de enfermeiras, que deveriam atuar junto aos departamentos estaduais de saúde, com o papel de supervisoras e assessoras técnicas e não mais de atendimento domiciliar, uma vez que essa atividade havia sido delegada para outra categoria profissional(2).

Sendo assim, a partir de 1938 percebe-se que a enfermagem de saúde pública perde relevância, na mesma medida em que as enfermeiras assumem outras funções no âmbito do Estado e aumenta o número dos hospitais, onde, até então, o atendimento de enfermagem era feito por pessoas sem formação específica, denominados de práticos.

Antes disso, com o retorno aos EUA, em 1931, da missão americana que introduziu a enfermagem moderna no Brasil, inicia-se entre nós um processo de influência da Igreja Católica no ensino de enfermagem, particularmente na figura de Laís Netto dos Reis, diretora da Escola Carlos Chagas, em Belo Horizonte, e que tinha uma forte ligação com a alta hierarquia da Igreja. Em 1938, quando Laís assumiu a direção da escola Anna Nery, recebeu inúmeras manifestações de apoio do clero. A partir desse momento, "a mística da enfermagem ganha forte tom vocacional e nacionalista, reforçando a colaboração com a Igreja e com o governo, aliados entre si"(2).

É nesse contexto econômico, político, social e de transformações na formação e na prática profissional da enfermagem brasileira que se realiza a Primeira Semana da Enfermeira, em 1940, organizada por Laís Netto dos Reys, com os objetivos de (1) honrar Florence Nightingale e Anna Nery, (2) estimular as enfermeiras na procura de aperfeiçoamento dos serviços de Enfermagem, recordando os ideais e os ensinamentos daqueles que as precederam na profissão e (3) facilitar o encontro de diretoras de escolas e tornar possível o contato dessas com as autoridades da administração pública, com profissionais do ramo da saúde e com pessoas interessadas nos problemas da Enfermagem(1).

A partir dessa data, anualmente é promovido este evento comemorativo, que prevê atividades científicas e culturais aos profissionais da área, sendo reproduzido em todo o território nacional. A definição do tema central e dos eixos temáticos, bem como os assuntos tratados e a programação das diferentes Semanas de Enfermagem, deixam transparecer as grandes preocupações que a categoria teve em cada momento histórico e sua relação com a realidade nacional.

Essas preocupações sempre estiveram relacionadas direta ou indiretamente com a conjuntura econômica e política do momento, com as necessidades e os problemas de saúde da sociedade e com o grau de desenvolvimento técnico, político e de organização da profissão. Exemplo disso pode ser visto na Segunda Semana de Enfermagem, realizada em 1941, em cuja programação se observa traços característicos da enfermagem daquele período, descritos anteriormente, quais sejam: o caráter religioso (nos sete dias do evento foi prevista a realização de três missas solenes); o tom nacionalista (homenagens ao Departamento Nacional de Criança e às voluntárias de enfermagem); articulação com as políticas de saúde, definidas pelo Estado (por meio de palestras intituladas: O Departamento Nacional da Criança e o papel da Enfermeira nesse Departamento, Contribuição da Enfermagem à Obra Nacional da Criança, Escolas de Enfermagem e seu valor, O Serviço de Enfermagem de Saúde Pública no Estado do Rio, a Enfermagem de Saúde Pública), além de várias atividades culturais e uma longa homenagem à Fundação Rockfelller, pelos 25 anos de trabalhos prestados por essa instituição ao Brasil(6).

Nesse mesmo ano, 1941, foi convocada, por Gustavo Capanema, então ministro do Ministério de Educação e Saúde Pública (MESP), a Primeira Conferência Nacional de Saúde (CNS), com o objetivo de "discutir especificamente os temas da organização sanitária estadual e municipal; a ampliação e sistematização das campanhas nacionais contra a lepra e a tuberculose; a determinação das medidas para o desenvolvimento dos serviços básicos de saneamento; e um plano de desenvolvimento da 'obra nacional' de proteção à maternidade, à infância e à adolescência"(2). Como resultados desta conferência, criaram-se planos para cada um desses temas, planos que deveriam orientar as ações do MESP e dos recém-criados serviços nacionais.

Em 1941, os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, momento em que o Brasil passou a assumir uma importância estratégica, seja no fornecimento de matéria-prima para a guerra (borracha e minérios), e também pela sua posição geográfica (instalação de bases militares no Nordeste), o que acabou levando o país a entrar na guerra, em 1942, apoiando os EUA e as forças aliadas(2).

Neste contexto de guerra e como elemento do processo de integração BrasilEUA, criou-se no Brasil o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), em cooperação do governo brasileiro com o governo americano e financiado pela Fundação Rockfeller. Esta conjuntura fez com que viesse uma nova Missão Técnica de seis enfermeiras americanas para o Brasil, uma delas, Louise Kieninger, que havia feito parte da missão de 1922, mas agora com a função de "atuar como assessora no nível ministerial, de organizar e implantar o serviço de enfermagem do SESP e de assessorar as líderes da enfermagem nacional"(2).

O caráter político dessa missão ficou explícito na abertura da Terceira Semana de Enfermagem, realizada em maio de 1943, quando Kieninger, "após ressaltar os feitos de Florence Nightingale na Guerra da Criméia, de Clara Barton na guerra civil nos EUA e de Anna Nery na Guerra do Paraguai, passou a tratar da situação da enfermagem na Segunda Guerra Mundial", questionando se as enfermeiras e mulheres do Brasil estariam "prontas para ombrear com as nossas responsabilidades?" (2:210). Nessa mesma fala fez a seguinte exortação: "Deixemos de lado nossas ambições pessoais e nos dediquemos a esse esforço que nos auxiliará sobremodo a ganhar a guerra, de forma que não só nosso país, mas a alma conosco alcance sua Vitória"(2).

AS TEMÁTICAS DAS SEMANAS DE ENFERMAGEM E A CONJUNTURA NACIONAL

Em 1945, terminou a Segunda Guerra Mundial e o regime ditatorial de Vargas. Desde lá, muitos acontecimentos marcaram o Brasil, o campo da saúde e a própria profissão da enfermagem. Como exemplos podemos citar o processo de redemocratização que se seguiu à ditadura de Vargas; a "iminência" de implantar o socialismo no período pré-golpe de 1964; os vinte anos de ditadura militar; a consolidação de um modelo assistencial curativo, biologicista e médico-cêntrico no campo da saúde; o Movimento da Reforma Sanitária nos anos 70 e 80 e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988.

A partir da década de 1990, colocou-se o desafio de implementar este sistema em meio a sucessivas crises econômicas e programas de ajustes estrutural e fiscal, os quais limitaram ou mesmo impediram o avanço das políticas sociais e dos direitos consagrados na Constituição Federal de 1988.

Em cada um desses momentos, a enfermagem discutiu em seus eventos científico-culturais os assuntos candentes da sociedade brasileira, com destaque para as Semanas de Enfermagem. A ABEn, ao definir uma temática para comemorar anualmente o período de 12 a 20 de maio, induz à discussão, em todo o território nacional, de temas que merecem a atenção dos profissionais de enfermagem e da própria sociedade, como exemplo, citamos o tema central do ano de 1985 "Juventude: hora de buscar, hora de entender", que nos parece em consonância com o momento político que se vivia no país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No que se refere à situação do setor saúde, objetivo e objeto de nossa ação, apesar dos avanços que têm resultado do processo de implantação do SUS, a realidade vivida por uma grande parcela da população brasileira, nos aponta para a necessidade de uma reflexão mais profunda, tanto por parte das instituições formadoras, dos órgãos representativos, como dos profissionais de enfermagem, no sentido de repensar a sua prática e o próprio modelo de formação, que acaba por privilegiar uma parcela restrita da população, os que têm acesso aos melhores serviços de saúde, às especialidades médicas e aos sofisticados centros de diagnóstico e de tratamento, ao passo que a grande maioria das pessoas continua sendo atendida em precários serviços básicos de saúde, ou mesmo sem acesso a eles.

Como ficou evidenciado ao longo do texto, da mesma forma que razões econômicas, políticas, sociais e de saúde criaram as condições objetivas para a emergência da enfermagem profissional no Brasil, no início do século XX, o processo de discussão que se deu ao longo do tempo, no âmbito das 65 Semanas de Enfermagem, promovidas pela Associação Brasileira de Enfermagem, esteve intimamente articulado ao contexto econômico, político, de saúde, de acúmulo teórico, de aperfeiçoamento técnico, científico, cultural, que caracterizaram cada período de desenvolvimento dessa profissão.

Nesse sentido, penso que a enfermagem brasileira não pode ficar alheia à realidade de saúde e aos seus determinantes macroestruturais. Por isso é fundamental, neste momento, voltarmos a discutir algumas questões que são centrais para a mudança que se quer implementar no campo da saúde, entendendo que, enquanto as políticas sociais estiverem subordinadas às políticas econômicas de caráter restritivo, que beneficiam o capital financeiro e privilegiam os acordos com os organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, não será possível resolver os graves problemas de saúde. É primordial entendermos que, enquanto for prioridade para o governo, pagar a dívida externa à custa do suor e do sangue de cada trabalhador brasileiro, não haverá condições para melhorar significativamente a saúde do povo.

Por isso, nestes momentos em que a enfermagem em todo o Brasil pára para pensar a sua prática, nas centenas de comemorações locais das Semanas Brasileiras de Enfermagem, não podemos deixar de discutir e nos posicionar sobre estes problemas, sob o risco de estarmos centrando as nossas energias na solução de problemas que são importantes, mas secundários na luta pela transformação das condições de saúde da população.

A luta da enfermagem deve estar articulada à luta pela transformação da sociedade. Com certeza, quando superarmos a contradição fundamental das sociedades divididas em classes sociais, estaremos superando também os problemas de gênero, de relações de poder, de grupos minoritários e da própria profissão.

Submissão: 30/05/2005

Aprovação: 30/08/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    2006

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2005
  • Aceito
    30 Ago 2006
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