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Mulheres com HIV/AIDS: fragmentos de sua face oculta

Mujeres con HIV/AIDS: fragmentos de su faceta oculta

Women with HIV/AIDS: fragments of their hidden face

Resumos

O estudo buscou conhecer fatores geradores do medo que assola as mulheres soropositivas e conseqüências nas relações do cotidiano familiar, do trabalho e do convívio social. O método empregado é de natureza qualitativa. Focalizou mulheres com HIV/AIDS que estão em acompanhamento na Unidade de Saúde do Município de São Leopoldo-RS. A coleta de dados foi por meio de entrevista semi-estruturada, atingindo 18 mulheres, de 23 a 55 anos. A discriminação no seio da família e no trabalho e a perda de amigos constituem fator de medo constante e exercem influência no comportamento social das mulheres. O medo está relacionado também com a imagem da mulher e o isolamento social.

Saúde da mulher; Doenças Sexualmente trasmissíveis; HIV/AIDS


En el presente trabajo se buscó conocer a los factores generadores del miedo que asola las mujeres seropositivas y a las consecuencias en las relaciones del cotidiano de la familia, del trabajo y del convivio social. El método usado fue de naturaleza cualitativa. Se focalizó en mujeres con HIV/SIDA que están siendo acompañadas en la Unidad de Salud del Municipio de São Leopoldo-RS. La recogida de datos fue a través de entrevista semiestructurada, abarcando 18 mujeres, de 23 a 55 anos. La discriminación en el seno de la familia y en el trabajo y la pérdida de amigos constituyen factor de miedo permanente y ejercen influencia en el comportamiento social de las mujeres. El miedo también está relacionado con la imagen de la mujer y el aislamiento social.

Salude de la mujer; Enfermedades sexualmente transmisibles; HIV/AIDS


The study aimed at determining factors that generate the fear visiting upon HIV-positive women and consequences in routine family, work and social life relations. The method employed is of qualitative nature. Women with HIV/AIDS that were followed at the Health Clinic of São Leopoldo-RS were focused. Data collection was performed by a semi-structured interview, seeking 18 women, from 23 to 55 years old. Discrimination in the family and at the workplace and loss of friends constitute a factor of constant fear and exert an influence on the women's social behavior. The fear is also related to the women's image and social isolation.

Women's health; Sexually transmitted diseases; HIV/AIDS


PESQUISA

Mulheres com HIV/AIDS: fragmentos de sua face oculta

Women with HIV/AIDS: fragments of their hidden face

Mujeres con HIV/AIDS: fragmentos de su faceta oculta

Petronila Libana CechimI; Lucilda SelliII

IMestre em Enfermagem. Coordenadora do Curso de Graduação em Enfermagem. Professora e pesquisadora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS, São Leopoldo, RS

IIDoutora em Ciências da Saúde. Mestre em Enfermagem. Professora e pesquisadora no PPG em Saúde Coletiva e professora nos Cursos de Graduação da Unidade das Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS, São Leopoldo, RS

Endereço para Contato Endereço para Contato: Petronila Liban Cechim. Curso de Graduação em Enfermagem. Universidade do Vale do Rio dos Sinos Av. Unisinos, 950. CEP 93022-000 São Leopoldo - RS.

RESUMO

O estudo buscou conhecer fatores geradores do medo que assola as mulheres soropositivas e conseqüências nas relações do cotidiano familiar, do trabalho e do convívio social. O método empregado é de natureza qualitativa. Focalizou mulheres com HIV/AIDS que estão em acompanhamento na Unidade de Saúde do Município de São Leopoldo-RS. A coleta de dados foi por meio de entrevista semi-estruturada, atingindo 18 mulheres, de 23 a 55 anos. A discriminação no seio da família e no trabalho e a perda de amigos constituem fator de medo constante e exercem influência no comportamento social das mulheres. O medo está relacionado também com a imagem da mulher e o isolamento social.

Descritores: Saúde da mulher; Doenças Sexualmente trasmissíveis; HIV/AIDS.

ABSTRACT

The study aimed at determining factors that generate the fear visiting upon HIV-positive women and consequences in routine family, work and social life relations. The method employed is of qualitative nature. Women with HIV/AIDS that were followed at the Health Clinic of São Leopoldo-RS were focused. Data collection was performed by a semi-structured interview, seeking 18 women, from 23 to 55 years old. Discrimination in the family and at the workplace and loss of friends constitute a factor of constant fear and exert an influence on the women's social behavior. The fear is also related to the women's image and social isolation.

Descriptors: Women's health; Sexually transmitted diseases; HIV/AIDS.

RESUMEN

En el presente trabajo se buscó conocer a los factores generadores del miedo que asola las mujeres seropositivas y a las consecuencias en las relaciones del cotidiano de la familia, del trabajo y del convivio social. El método usado fue de naturaleza cualitativa. Se focalizó en mujeres con HIV/SIDA que están siendo acompañadas en la Unidad de Salud del Municipio de São Leopoldo-RS. La recogida de datos fue a través de entrevista semiestructurada, abarcando 18 mujeres, de 23 a 55 anos. La discriminación en el seno de la familia y en el trabajo y la pérdida de amigos constituyen factor de miedo permanente y ejercen influencia en el comportamiento social de las mujeres. El miedo también está relacionado con la imagen de la mujer y el aislamiento social.

Descriptores: Salude de la mujer; Enfermedades sexualmente transmisibles; HIV/AIDS.

1. INTRODUÇÃO

A Síndrome de Imunodeficiência Adquirida AIDS está, cada vez mais, se constituindo em um sério problema no contexto da Saúde Pública, de caráter pandêmico. Teve seu início na década de 1980, nos Estados Unidos, e ingressa no século XXI desafiando a comunidade científica.

O HIV/AIDS necessita ser tratado como um fenômeno social sem fronteiras que atinge adultos, jovens e crianças. A AIDS não pode ser pensada num contexto individualizado e excluída da vida das pessoas, precisa ser assumida pelo Estado, pela sociedade civil e pelos profissionais da saúde para romper o medo que cria nas pessoas, sobretudo nas mais vulneráveis, mulheres e crianças, pertencentes às classes sociais menos favorecidas e dependentes, economicamente, de seu companheiro(1).

A epidemiologia do HIV/AIDS confirma a feminização e pauperização, mantendo o perfil social dos pacientes soropositivos no Brasil. Em nosso país, verificamos uma maior expansão do número de casos entre mulheres, principalmente, na faixa etária entre 20 e 49 anos que, além da pobreza, são residentes nas periferias urbanas e cidades do interior. A principal via de contaminação delas é a relação heterossexual desprotegida, respondendo por 86,8% dos casos notificados em mulheres(2).

O constante conflito que atinge a vida das mulheres contaminadas deve ser foco das ações planejadas por equipes de saúde multiprofissional, para atender as necessidades do tratamento medicamentoso e oferecer o apoio moral e psicológico necessários, possibilitando o enfrentamento do medo paralisante, abrindo novas oportunidades para ressignificar suas vidas(3,4).

A síndrome do medo é desencadeada no momento em que a mulher se depara com o diagnóstico da soropositividade. Muitas, a partir deste momento, iniciam uma retrospectiva de vida.

Algumas pessoas, ao se defrontarem com o diagnóstico de uma síndrome que ainda não oferece possibilidade de cura, se desestruturam emocionalmente, ficam aniquiladas e perdem qualquer esperança diante da expectativa de estagnação e finitude da sua existência. Este medo começa a ter múltiplas faces que vão se somando ao longo do processo que cada pessoa imprime à sua realidade cotidiana(5).

A situação de HIV/AIDS desorganiza as inserções mais imediatas da mulher como na sua família, no seu trabalho, nos seus grupos de amigos, estendendo-se a toda a sociedade. É preciso continuar a concentrar atenção não apenas no HIV/AIDS, mas também no contexto social mais amplo no qual a AIDS está inserida e nas respostas sociais mais abrangentes que criam uma atmosfera de mudança de comportamento em relação ao preconceito(6). Cabe-nos apontar caminhos e construir estratégias para o enfrentamento do medo, que incluam a mulher, promovendo-a no seu contexto, como mãe, profissional e cidadã.

A produção do artigo sobre a face oculta do medo se originou da constatação de que os profissionais da saúde têm um papel decisivo no sentido de escutar, orientar e estimular a mulher a fim de que ela consiga se sobrepor à situação de medo e conflitos provenientes da doença.

2. OBJETIVOS

O estudo teve como objetivo identificar o conhecimento que as mulheres possuem em relação à disseminação do vírus para outros sujeitos e os fatores geradores do medo vivenciado no seu cotidiano, que remete à clandestinidade.

3. MÉTODO

A pesquisa foi realizada no serviço de atendimento Especializado (SAE) do município de São Leopoldo-RS. Foi empregado o método descritivo com abordagem qualitativa. Esse método abrange um delineamento da realidade, uma vez que descreve, registra, analisa e interpreta a complexidade da natureza do fenômeno, dos fatos e dos processos em sua extensão com capacidade de abranger a sua essência(7).

3.1 Seleção dos sujeitos

A seleção dos sujeitos se deu por indicação dos profissionais da saúde que atuam na Unidade Sanitária e das pesquisadoras que, no contato com a população, por meio do diálogo, identificaram os sujeitos que se enquadravam nos critérios estabelecidos para a pesquisa: mulheres que buscaram o atendimento no Serviço de Atendimento Especializado - SAE e as que já estão em processo de atendimento na Unidade Sanitária, que tinham idade entre 23 e 55 anos com HIV ou AIDS. O número de sujeitos foi de 18 mulheres determinado ao longo da pesquisa pelo ponto de saturação, isto é, no momento em que as informações tornaram-se saturadas(7).

3.2 Coleta de dados

A coleta de dados foi realizada a partir de uma entrevista semi-estruturada, registrando os dados em fita cassete, que, posteriormente, foram transcritos. O período da coleta de dados foi de novembro de 2003 à março de 2004. Para o roteiro da entrevista, foram utilizadas perguntas norteadoras: fatores geradores do medo, saúde individual e saúde coletiva com base nos fatores de risco comportamentais, socioculturais, clínicos, econômicos, apontados pela literatura e pesquisas publicadas e pela interação/intervenção pesquisador e pesquisada(7).

3.3 Interpretação e análise dos dados

Para a interpretação dos dados, foi utilizado a análise de conteúdo, observando-se as seguintes etapas: ordenamento do material; unitarização dos dados e análise final(7).

3.4 Aspectos éticos

O local da Unidade Sanitária, onde foram coletados os dados, privilegiou a privacidade das mulheres pesquisadas, permitindo que fosse usado um ambiente que favorecesse a interlocução, uma vez que o assunto é sigiloso e envolve a sua intimidade.

As mulheres convidadas a participar da pesquisa foram informadas e esclarecidas sobre a temática do estudo, seus objetivos e sua justificativa. Ao aceitarem, foram apresentados os seus direitos, como sigilo nominal e a confidencialidade das informações, garantindo-lhes a continuidade do atendimento caso desejassem desistir ao longo da pesquisa. Estas mulheres serão nominadas em seus depoimentos pelas letras alfabéticas: A, B, C, D, E, F, G, H, I, permitindo, desta forma, manter seus nomes protegidos. Elas procederam a assinatura do Termo de Consentimento livre e Esclarecido, conforme a Resolução 196/96 do Ministério da Saúde, documentando sua livre participação na pesquisa(8).

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise descritiva, a partir da idade, escolaridade, ocupação, renda estado civil, mostrou que as características mais destacadas nas mulheres pesquisadas são: mulheres na sua maioria em idade fértil, com união estável, com escolaridade de ensino fundamental incompleto, ocupação do lar e de classe social baixa.

Da análise das falas das participantes do estudo emergiram quatro categorias de análise nominadas conforme as falas das pesquisadas.

4.1 Primeira categoria: o mundo desmoronou. Senti-me em um túnel, sem saída

A descoberta da soropositividade é traumática, representando para o indivíduo um abalo equivalente a um terremoto(9). Se a AIDS orgânica se caracteriza pela falência do sistema imunológico do organismo, a descoberta do HIV provoca, na mente da pessoa, um desmoronamento repentino do conjunto de defesas construídas ao longo da sua existência.

A partir do diagnóstico, instala-se, no cotidiano de vida da pessoa, o medo que se apresenta com diferentes faces: o medo de si mesma, o medo da discriminação, o medo do preconceito, o medo do sofrimento físico e o medo de seu fim último.

"(...) na hora bate o medo e o desespero, a gente fica sem chão, toma um susto pela gente e pelos familiares (...)" (A).

O principal medo é o de ser julgada. Alia-se a este medo do julgamento do outro o estereótipo do HIV/AIDS que vem carregado de preconceitos e discriminações, subjugando seus portadores ao silêncio como meta para evitar qualquer chance de passar por estas situações(10).

O medo nasce do desconhecimento, das informações incorretas sobre a transmissão, da evolução da doença e dos meios de comunicação. Soma-se a estes fatores a face mítica do HIV/AIDS que traz, em seu bojo, a recusa social, a discriminação, o preconceito no trabalho e a própria culpabilização por parte dos familiares.

O maior medo que ronda as mulheres contaminadas é aquele silenciado por elas, trazendo à tona o seu passado, mesmo que este não possa se dissociar de sua vida presente. Tornar público esta condição poderá trazer constrangimentos e perdas importantes à mulher.

"(...) fiquei doida, apavorada e tive medo daquilo que não conheço, procuro ficar quieta e não falo (...)" (C).

A estigmatização da doença que remete a condutas de contravenção e do próprio descuido em não proteger-se em suas relações sexuais, reacende o medo, a culpa de ser julgada pelo seu companheiro/marido e pelos próprios filhos, pois é da "culpa e, conseqüentemente do castigo que se formula a natureza do HIV/AIDS no imaginário do ser humano"(9).

O medo de enfrentar uma situação limite, uma síndrome, que talvez a impossibilite de retornar às suas atividades, e que consome suas energias. Este é reforçado pela certeza da contagiosidade, que aumenta a preocupação do afastamento dos amigos e dos seus próprios filhos. Em relação a estes, inclusive, existe o receio de que eles passem a não demonstrar mais o seu afeto.

Esta realidade carregada de desesperança faz com que a mulher mergulhe na sua solidão e amargura, perdendo o interesse pela vida, entregando se à dor do medo e da discriminação que remetem à perda do apreço, da amizade verdadeira e do convívio social. Isso significa condenar um ser humano, eminentemente social, a um "cárcere", impondo a segregação, junto a outros grupos já marginalizados.

"(...) naquele dia já me senti uma morta, a vida perdeu a graça, achei que era o meu fim (...)" (B).

Alia-se a este medo o julgamento preconceituoso, subjugando o portador da soropositividade ao silêncio como uma meta a fim de evitar situações de constrangimento(10).

A revelação do diagnóstico das mulheres pesquisadas foi, de modo geral, confidenciado para um membro da família ou para alguém muito próximo. É no espaço da família, tradicionalmente definido como lugar legítimo para a vivência do sexo, das relações afetivas, da segurança, onde os relacionamentos pessoais são a essência da qual os seres humanos extraem seu sentido mais elevado e, nestes encontros, a maioria dos homens e mulheres desejam o amor e o afeto(11). Este comportamento afetivo caracteriza os humanos do berço à sepultura. Não podemos ignorar a contradição do espaço familiar, que, supostamente, deveria ser o espaço da afeição, da intimidade, o lugar de crescimento conjugal e onde um considerável número de mulheres se tem contaminado com o vírus HIV/AIDS.

"(...) foi uma surpresa horrível, fui à loucura, eu apostei num casamento, eu estava em casa e ele me trouxe a doença, abala toda a estrutura (...)" (E).

A combinação da violência material e simbólica, da "dupla moral" no que diz respeito ao comportamento sexual de homens e mulheres no âmbito da família e da sociedade, da assimetria na capacidade de tomar decisões e efetivá-las faz com que seja mais difícil para as mulheres mudar seu comportamento e manter estas mudanças nas interações cotidianas(12). A soropositividade/AIDS autoriza uma política de exclusão social dos sujeitos, pois eles seriam potencialmente enfermos, vistos como pessoas com comportamentos de risco(10).

4.2 Segunda categoria: o que me preocupa é aparecer uma doença e ser discriminada

O medo da discriminação, às vezes, inicia no seio da própria família, pelo julgamento, pela incompreensão e pela não-aceitação do fato de um membro da família estar contaminado pelo Vírus HIV. O relacionamento afetivo é fundamental para a satisfação de uma das necessidades básicas do ser humano, de se sentir acolhido e amado entre os mais próximos.

"(...) isto estragou nossa relação, tive vontade de matar ele (...)" (D).

Tornar público, entre os familiares, o diagnóstico da soropositividade, desestrutura a relação com o companheiro e com os filhos, até então harmoniosa, e cria um novo contexto imprevisível.

"(...) minha cabeça se desestruturou, mudou o jeito de viver com meus filhos, me isolei de todo o mundo, prefiro não falar com ninguém (...)" (F).

Por essa razão a mulher prefere esconder-se no silêncio, suprindo sua verdadeira condição, arcando com o desequilíbrio que esta decisão traz(5).

O medo do preconceito e da discriminação ultrapassa a fronteira da família, tornando-se presente no ambiente de trabalho, associado ao sentimento de viva inquietação ante a noção do perigo real ou imaginário da ameaça, do temor de perder o emprego. Para uma mulher que conquistou um espaço no mundo do trabalho significa sentir-se cidadã, digna de viver em sociedade, seja este trabalho formal ou informal, pois sua importância reside na possibilidade da independência econômica, de sua contribuição na renda familiar e satisfação das necessidades básicas da família. A ameaça do desemprego por causa do preconceito esvazia sua conquista.

"(...) sou uma inútil, no trabalho me sinto cansada e fraca, mas não posso falar, tenho medo de perder o emprego (...)" (H).

O preconceito é uma forma pré-consciente de medo, alimenta-se do medo, ou seja, objetiva o temor e afasta do horizonte o perigo de um confronto direto com o diferente. As pessoas são caricaturadas como sujeitos promíscuos em suas relações sexuais ou envolvidos em drogas e que, portanto, buscaram o vírus(10). No mundo destas pessoas infectadas, o medo do preconceito habita suas relações sociais, pois, em cada encontro, o medo do novo, da mudança e do enfrentamento leva a negação para uma abertura ao outro.

4.3 Terceira categoria - quando as pessoas sabem, vão se afastando. Tenho que ir em frente, me cuidar

Outra face do medo, da discriminação social é o silêncio e o distanciamento de seu semelhante, deixando-se submergir a dor moral. Entretanto, a melhor forma de enfrentar e tentar vencer este tipo de medo é não permitir que ele paralise sua vontade. É preciso dar um novo significado à vida. Isso significa levantar-se e agir, acreditando que pode dar sentido a tudo que a vida puser diante de si(4). Enfrentar o medo significa canalizar recursos para achar maneiras construtivas e sadias de lidar com situações adversas, significa agir, com base na força, não da fraqueza, significa mobilizar a capacidade de examinar as diferentes possibilidades de opções e decidir por aquelas que favorecem o enfrentamento da situação. Não significa ser destruído, mas ficar alerta à possibilidade de sê-lo(13).

A preocupação do cuidado consigo mesmas foi referida pelas mulheres durante a pesquisa.

"(...) tenho mais cuidado com a higiene, uso camisinha e tomo a medicação, a vida precisa continuar (...)" (G).

Há preceito de ocupar-se de si entre diferentes doutrinas, assumindo uma forma de atitude, de um modo de viver, de comportar-se, construindo um conhecimento e um saber sobre si mesmo como forma de cuidado(14). A vida mostra que a pessoa tem a oportunidade de escolher como agir.

"(...) a gente aprende a dar mais valor às pessoas e à vida. Hoje vivo a vida mais intensamente (...)" (C).

Em meio às adversidades do cotidiano, ela pode manter sua liberdade espiritual. "É possível tirar tudo de um homem, menos uma coisa a última das liberdades humanas, o direito de escolher a sua própria atitude em um determinado conjunto de circunstâncias, eleger seu próprio caminho"(15).

O modo como cada ser humano aceita seu destino e os sofrimentos que ele acarreta, proporcionam-lhe uma nova e ampla oportunidade, mesmo em circunstâncias adversas, pois isso pode possibilitar o desvelamento de um significado mais profundo à sua vida.

"(...) no começo foi uma depressão braba, depois comecei a ter mais fé, acreditar em Deus e pensar Nele nas horas difíceis [...]" (I).

Na condição de soropositivo/Aids, não é possível controlar o preconceito e a discriminação, mas é possível contê-lo no tocante às nossas reações e atitudes ao ressignificar a vida, não permitindo que o vazio interior as domine.

"(...) olho para meus filhos, e eles me dão coragem e força para continuar e superar esta doença (...)" (H).

Acabar com o mito da imoralidade e da fatalidade da AIDS é absolutamente necessário a fim de mudar o comportamento e a atitude da pessoa, que deve, com esta postura, elaborar um novo projeto de vida(16). O medo pode arrastar ao vazio interior o qual deverá ser enfrentado com um novo projeto de existência, que propõe novas ferramentas para superar o próprio medo, pois este desorienta, remete ao fracasso e à derrota; paralisa e torna o ser impotente frente às situações complexas.

"(...) vou às palestras, converso com os soropositivos. Agora estou mais esclarecida sobre a doença e até entrei no clube de mães (...)" (B).

O sentimento que entorpece, que produz a sensação de estar perdido implica sobrepor-se e avançar para encontrar caminhos que transcendem o mundo das trivialidades, buscando, no âmago de si mesma, a razão de sua existência.

4.4 Quarta categoria - Medo da morte. Às vezes, tento esquecer, mas não dá

A síndrome do medo de si mesma e da própria imagem atormenta a pessoa contaminada com o vírus, pois o sofrimento físico, as doenças oportunistas tão temidas lhe roubam suas forças e aniquilam seu corpo, levando-a à morte.

"(...) horrível, achei que iría morrer rapidamente, entrei numa depressão que custou para passar (...)" (A).

Este medo provoca a fuga, o não-reconhecimento de sua situação, objeto de negação. O medo associa-se à angústia e à culpabilidade, uma vez que esta síndrome reporta a atitudes promíscuas, não aprovadas pelo convívio social. O impacto do vírus HIV/AIDS é maior nas mulheres, pois os esteriótipos relacionados a ele têm reforçado a idéia de que as mulheres são as culpadas pelo avanço da epidemia, assim como as cargas sociais são mais pesadas para as mulheres do que para os homens(18).

"(...) chorei, fiquei com raiva, mas também me senti culpada, porque fui eu que corri atrás do vírus, agora não tem mais volta (...)" (C).

Dessa forma, a pessoa percebe-se fragilizada, impotente diante da doença para a qual a ciência ainda não oferece perspectivas de cura.

O significado construído em relação aos pacientes HIV/AIDS vem carregado de um olhar de finitude de vida, de medo, de desesperança e de sentimentos que aniquilam qualquer projeto de vida.

"(...) depois que eu soube, nasceu a angústia e morreu a paz. Não penso mais em construir uma família, comprar casa, trabalhar, só penso no dia de hoje (...)" (E).

Receber o diagnóstico da soropositividade significa, muitas vezes, para a mulher, um indicativo de morte. A perspectiva de morte eminente é o maior dos medos sentido pelo homem(15). Este sentimento foi expresso pelos sujeitos da pesquisa, manifestando medo diante da perspectiva da morte, pois esta é uma experiência única, solitária e alienante.

"(...) primeiro morre a esperança, depois vem a morte; imagino como vai ser meu fim, em que estado ficam as pessoas (...)" (G).

A morte é o momento limite de existência humana. Com ela cessam as expectativas de concretizar um futuro, bem como de acompanhar a história de vida dos filhos ou de outras pessoas queridas.

Os dados indicam que a taxa da mortalidade por AIDS vem mostrando uma tendência de estabilização desde 1999 com média de 6,3 óbitos por 100 mil habitantes nos últimos três anos(17). Entretanto, entre as mulheres, as taxas continuam aumentando em quase todas as regiões.

"(...) quando tive meu filho, fiquei sabendo da doença, ela já estava avançada, eu andava sempre muito doente (...)" (I).

Isso pode ser explicado pela demora da mulher em fazer o teste e buscar o tratamento disponibilizado nas Unidades de Saúde.

A divulgação tardia dos primeiros casos de AIDS em mulheres, a crença inicial de que elas estavam imunes ao risco de contaminação são alguns fatores que contribuíram para aumentar a sua vulnerabilidade para a infecção do HIV(18). O predomínio da ignorância sobre as formas de transmissão, além dos mitos e juízos errôneos sobre a epidemia, acaba por levar a preconceitos, discriminações e estigmatização dos indivíduos.

"(...) a sociedade ainda tem muito preconceito; quando surge uma doença, aí as pessoas começam a discriminar (...)" (E).

O estigma da HIV/AIDS, alicerçado sobre o sentimento do preconceito e do medo, levam a pessoa a buscar estratégias de sobrevivência social, mergulhando, muitas vezes, no silêncio e na dor do medo.

Falar do dia-a-dia é falar não só do mais banal dos gestos, mas também do mais complexo dos fatos. A vida cotidiana é revestida de extraordinário valor, porque representa o momento social, político e filosófico no qual está inserida. A vida cotidiana é "a vida do homem inteiro", é nela que se desenvolvem todas as suas características físicas, sociais e psicológicas(19). É na vida cotidiana que o homem exercita todas as suas habilidades, capacidades, vive suas paixões e seus medos.

O medo encarcera o indivíduo, impedindo-o de abrir-se para o outro, fazendo com que se entregue a todo tipo de preconceito.

"(...) ninguém sabe e, se souberem, vão correr léguas de mim (...)" (D).

O preconceito é a lógica do medo abandonado a si mesmo, em seu auto-sofrer, a insegurança absoluta de um momento paralisia do tempo(10). Para as mulheres, o grande desafio é conviver com a dor do medo e do silêncio que elas mesmas se impõem, supondo ser este o caminho para manter um convívio social.

"(...) vou ficar dentro de casa, a vida não tem mais graça, procuro não comentar isso com outras pessoas (...)" (A).

Nestas condições, a mulher percebe sua vulnerabilidade individual e social. A vulnerabilidade individual está relacionada ao seu comportamento e ao grau de consciência que ela tem quanto ao problema, enquanto a vulnerabilidade social se expressa no plano coletivo, quando cerceia sua liberdade de se expressar no contexto político social(20).

Existe o reconhecimento de que as mulheres estão em situação de maior vulnerabilidade diante da epidemia da AIDS e, portanto, de desvantagem em relação à adoção de medidas preventivas, pois o condom, é um método tradicionalmente masculino e são os homens que possuem mais parceiras(21). Na pesquisa, foi identificada, com freqüência, a chamada "vitima passiva", que se diz traída e contaminada dentro de seu lar pelo próprio marido/companheiro.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mulheres que participaram da pesquisa, em grande parte são do lar, portanto seu papel social é o de cuidar dos membros da família. Este papel agora está ameaçado pelas saídas de casa em busca de tratamento e apoio junto aos serviços de saúde.

A disseminação da infecção entre as mulheres pesquisadas ocorre, de maneira geral, por seu parceiro e por via sexual, usuários ou não de drogas injetáveis.

Em relação à problemática do HIV/AIDS entre as mulheres, foi possível constatar que a confiança no parceiro constitui uma situação que ofusca o risco da contaminação.

A abordagem da família, feita pelas mulheres pesquisadas, como uma referência importante quanto ao seu papel como esposa e mãe, revela que a mulher não se sente em situação de risco, porque não se considera promíscua, o lar lhe brinda a segurança, e o casamento é a prova de amor e respeito que o marido tem por ela.

Ao tomar conhecimento do diagnóstico de soropositiva, a mulher se defronta com a traição e o desrespeito de seu parceiro, tido, até então, como companheiro fiel na vida a dois.

Submissão: 06/03/2006

Aprovação: 12/09/2006

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  • Endereço para Contato:
    Petronila Liban Cechim.
    Curso de Graduação em Enfermagem.
    Universidade do Vale do Rio dos Sinos
    Av. Unisinos, 950. CEP 93022-000
    São Leopoldo - RS.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2007

    Histórico

    • Aceito
      12 Set 2006
    • Recebido
      06 Mar 2006
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