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A família vivienciando o transplante cardíaco

Family living cardiac transplantation

La familia vivenciando el trasplante de corazón

Resumos

Estudo de abordagem qualitativa. O objetivo foi analisar a experiência vivida por familiares durante o processo de transplante cardíaco de seus parentes. Foi realizado na Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca UTIC do Hospital de Messejana, em Fortaleza-Ceará, com sete familiares. Os discursos foram obtidos através de entrevistas gravadas, e organizados em categorias: descrevendo as mudanças ocorridas, promovendo a adaptação para a provisão do cuidado, e redescobrindo e vivenciando a solidariedade. A análise realizada sugere que o transplante cardíaco gera mudanças, crises e momentos de desestruturação, e que não só a pessoa é abalada, mas também a rede familiar que se esforça para se adaptar a nova situação.

Relações familiares; Transplante cardíaco; Experiência de vida; Enfermagem


Study with qualitative approach that aimed at analyzing the experience lived for family members during the process of heart transplantation of their relatives. It was carried through in the Unit of Transplantation and Heart Failure - UTIC of the Hospital of Messejana, in Fortaleza-Ceará, with seven family members. The speeches were obtained through interviews, and classified in categories: describing the occured changes, promoting the adaptation for the provision of care, and discovering and living deeply solidarity. The analysis suggests that the heart transplantion generates changes, crises and moments of desestruturation, and that not only the person is shaken, but also the familiar net that make efforts to be adapted to the new situation.

Family relations; Heart transplantation; Life change events; Nursing


Estudio de naturaleza cualitativa. El objetivo fué analizar la experiência vivida por el familiar durante el proceso del transplante del corazón de sus parientes.Se desarrolló en la unidad del trasplante y insuficiência de corazón - UTIC del hospital de Messejana, en Fortaleza-Ceará, con siete personas. Los datos fueran obtenidos mediante entrevistas registradas, y organizados en temáticas: describiendo los cambios ocurridos, promoviendo la adaptación para la disposición del cuidado, y redescobrindo y vivenciando la solidaridad. El análisis sugiere que el trasplante cardiaco genera cambios, crisis y momientos de desestruturacion; y no solamente los pacientes son afectados, pero también la familia que si consolida para enfrentar la nueva situación.

Relaciones familiares; Trasplante de corazón; Acontecimientos que canbián la vida; Enfermería


PESQUISA

A família vivienciando o transplante cardíaco

Family living cardiac transplantation

La familia vivenciando el trasplante de corazón

Lise Maria Pinheiro de Mattos BritoI; Vera Lúcia Mendes de Paula PessoaII; Zélia Maria de Souza Araújo SantosIII

IEnfermeira da Unidade de Transplante do Hospital Universitário Walter Cantídio-HUWC, Fortaleza, CE. Especialista em Enfermagem Cardiovascular

IIEnfermeira da Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca do Hospital de Messejana-UTIC, Fortaleza, CE. Doutora em Enfermagem. Docente do Curso de Enfermagem Da Universidade estadual do Ceará-UECE

IIIEnfermeira da Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca do Hospital de Messejana-UTIC. Fortaleza, CE. Doutora em Enfermagem. Docente do Curso de Enfermagem e do Mestrado em Educação em Saúde da Universidade de Fortaleza-UNIFOR. zeliasantos@unifor.br zelia_santos@terra.com.br

RESUMO

Estudo de abordagem qualitativa. O objetivo foi analisar a experiência vivida por familiares durante o processo de transplante cardíaco de seus parentes. Foi realizado na Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca UTIC do Hospital de Messejana, em Fortaleza-Ceará, com sete familiares. Os discursos foram obtidos através de entrevistas gravadas, e organizados em categorias: descrevendo as mudanças ocorridas, promovendo a adaptação para a provisão do cuidado, e redescobrindo e vivenciando a solidariedade. A análise realizada sugere que o transplante cardíaco gera mudanças, crises e momentos de desestruturação, e que não só a pessoa é abalada, mas também a rede familiar que se esforça para se adaptar a nova situação.

Descritores: Relações familiares; Transplante cardíaco; Experiência de vida; Enfermagem.

ABSTRACT

Study with qualitative approach that aimed at analyzing the experience lived for family members during the process of heart transplantation of their relatives. It was carried through in the Unit of Transplantation and Heart Failure - UTIC of the Hospital of Messejana, in Fortaleza-Ceará, with seven family members. The speeches were obtained through interviews, and classified in categories: describing the occured changes, promoting the adaptation for the provision of care, and discovering and living deeply solidarity. The analysis suggests that the heart transplantion generates changes, crises and moments of desestruturation, and that not only the person is shaken, but also the familiar net that make efforts to be adapted to the new situation.

Descriptors: Family relations; Heart transplantation; Life change events; Nursing.

RESUMEN

Estudio de naturaleza cualitativa. El objetivo fué analizar la experiência vivida por el familiar durante el proceso del transplante del corazón de sus parientes.Se desarrolló en la unidad del trasplante y insuficiência de corazón - UTIC del hospital de Messejana, en Fortaleza-Ceará, con siete personas. Los datos fueran obtenidos mediante entrevistas registradas, y organizados en temáticas: describiendo los cambios ocurridos, promoviendo la adaptación para la disposición del cuidado, y redescobrindo y vivenciando la solidaridad. El análisis sugiere que el trasplante cardiaco genera cambios, crisis y momientos de desestruturacion; y no solamente los pacientes son afectados, pero también la familia que si consolida para enfrentar la nueva situación.

Descriptores: Relaciones familiares; Trasplante de corazón; Acontecimientos que canbián la vida; Enfermería.

1. INTRODUÇÃO

O transplante cardíaco não é apenas uma simples cirurgia para melhorar a qualidade de vida de pessoas portadores de insuficiência cardíaca (IC), mas um processo que exige muitos ajustes. A preparação para o transplante e para os cuidados necessários no pós-operatório é complexa, e exige do receptor e da família, colaboração e entendimento. Considerando a complexidade que envolve o transplante cardíaco, percebemos que não apenas o receptor sofre alterações no seu estilo de vida, mas também seus familiares; como, por exemplo, alterações na dinâmica familiar, a inversão de papéis. Vale ressaltar que essas mudanças principiam com o adoecimento ou instalação da IC. Assim, a pessoa que antes trabalhava acaba abandonando essa atividade, ocasionando a redução da renda familiar. Merece destaque que essas mudanças acontecem em diferentes esferas: econômica, social, sexual, etc. Os gastos aumentam com remédios e internações. A rotina familiar é quebrada, pois a pessoa transplantada necessita de cuidados, o que absorve tempo dos demais membros. A família já precisa de ajustes no enfrentamento do adoecimento, havendo inclusive inversão de papéis, que será ainda mais acentuado, quando se confirma a indicação do transplante.

O grupo familiar pode ser visto como um conjunto que funciona como uma totalidade, em que as particularidades dos membros não bastam para explicar o comportamento de todos os outros membros. Assim, os comportamentos dos membros de uma família são interdependentes e o adoecimento de um de seus integrantes afetará toda a estrutura familiar(1). Assim, a análise de uma família não é a soma das análises de seus membros individuais.

Tomando a família como um sistema, percebemos que a experiência de cada membro afeta, e é afetado pelo comportamento dos demais integrantes do sistema.

Os sistemas interpessoais como a família, podem ser encarados como circuitos de retroalimentação, dado que o comportamento de cada pessoa afeta e é afetado pelo comportamento de cada uma das outra pessoas(2).

Nesse âmbito, percebemos a família como um grupo de pessoas com características distintas formando um sistema inserido em outro sistema mais amplo que é o sociocultural, e que sofre influências e tenta se adaptar às mudanças dessa sociedade. Essa adaptação é a busca da homeostase, garantindo continuidade, proteção e crescimento dos membros.

Portanto, a família vivencia e enfrenta junto com seu ente todas as dificuldades encontradas durante o transplante cardíaco, ressaltando que este procedimento é apenas o ápice de todo um longo processo de adoecimento que muitas vezes se estende por anos, não permitindo que as pessoas envolvidas levem a frente projetos pessoais ou mesmo vivam uma absoluta anulação de sua individualidade. Isso pode gerar sofrimento e necessidade de suporte para ajudar o familiar no acompanhamento do seu parente. Percebendo a importância da família durante o curso do processo de transplante, o presente estudo teve como objetivo conhecer a experiência vivida por familiares de pessoas transplantadas cardíacas.

Entendemos que o familiar está inserido no processo como cuidador, onerado com inúmeras responsabilidades, e exposto a um intenso estresse emocional, e, por outro lado, a família muitas vezes fica imersa no processo de preparo e seguimento do transplante cardíaco sem que lhe sejam oferecidos os subsídios necessários para o acompanhamento seguro e eficiente dos receptores. Desse modo, as contribuições que pretendemos recolher com este estudo justificam-se pela preocupação em chegar a uma maior compreensão sobre o assunto, procurando identificar precocemente pontos conflitantes no relacionamento família-pessoa transplantada-equipe de saúde, além de reconhecer e corrigir lacunas nas ações de educação em saúde. A díade família-pessoa transplantada apresenta peculiaridades que não podem ser ignoradas, pois se reconhece que o êxito do transplante está diretamente relacionado com condições ambientais e emocionais adequadas no contexto familiar. Merece uma reflexão mais atentiva por parte da equipe multiprofissional, que muitas vezes exige do familiar um total desprendimento de sua individualidade, dando-lhe poucas opções de recusar o papel de cuidador.

2. PERCURSO METODOLÓGICO

Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa, para uma melhor compreensão da experiência vivida pelos familiares de pessoas que se submeteram ao transplante cardíaco. Na busca da descrição das experiências e do cotidiano dos sujeitos da pesquisa, lançamos mão da abordagem qualitativa para facilitar a compreensão dos resultados, visto que neste tipo de abordagem, o mais importante é o conteúdo das informações, ou seja, o aprofundamento na subjetividade das ações e relações humanas.

A pesquisa foi realizada na Unidade de Transplante e Insuficiência Cardíaca (UTIC), de um hospital público destinado ao atendimento de usuários portadores de afecções cardio-pulmonares, de Fortaleza-Ceará, com sete familiares que acompanharam pessoas submetidas ao transplante cardíaco, e que se mostraram disponíveis e interessados em participar do estudo. Também foi considerado importante, o tempo de transplante de até um ano, pois o familiar já convivia com a pessoa doente, sendo possível saber suas possíveis limitações, mudanças no estilo de vida e nas relações.

Considerando o objetivo da pesquisa, a coleta de dados se deu no período de dezembro de 2004 a janeiro de 2005, através da entrevista semi-estruturada, gravada, para orientar e facilitar uma apreensão mais ampla sobre a vivência subjetiva dos familiares de pessoas transplantadas frente ao processo de transplante cardíaco. Para orientar e facilitar a melhor apreensão do ponto de vista dos sujeitos, a entrevista teve como questões norteadoras: como você vivenciou a experiência do processo de transplante cardíaco? Faça uma avaliação das relações familiares durante essa fase?

Para garantir, na medida do possível, a fidelidade e confiabilidade das informações obtidas, procuramos transcrever na íntegra as entrevistas gravadas. Em seguida, procedemos com a leitura exaustiva das falas para melhor percepção das convergências dos discursos, o que favoreceu a agregação dos dados em categorias, que foram analisadas com base na literatura pertinente.

Os preceitos éticos foram respeitados no que diz respeito à aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa, assinatura de termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assim como respeito ao anonimato dos entrevistados.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para possibilitar a análise dos dados, organizamos nas categorias: descrevendo as mudanças ocorridas, promovendo a adaptação para a provisão do cuidado, e redescobrindo e vivenciando a solidariedade.

Descrevendo as mudanças ocorridas

Durante todo o processo de transplante, ou seja, desde o desenrolar da IC até a fase pós-cirúrgica, a pessoa se vê diante de mudanças nos seus hábitos e no seu estilo de vida, o que repercute indiretamente nos demais membros da família. As modificações se iniciam no momento em que o processo de adoecimento principia. A dinâmica familiar desde já, é alterada, exigindo ajustes tanto financeiros, como emocional. Aquele membro que antes era capaz de desempenhar as tarefas de autocuidado de forma independente, agora necessita de um cuidador, e de tratamento especializado.

A família é o primeiro grupo de relações em que o indivíduo está inserido, sendo, na maioria das vezes, os familiares, que estão mais próximos das vivências da pessoa doente. Considerando a família como um sistema, em que todos os integrantes interagem entre si, pois qualquer disfunção que afete um dos seus membros, irá freqüentemente atingir toda a família em algum aspecto. Então, percebemos que o transplante não é uma ação solitária, pelo contrário, todo o processo é representado pela tríade pessoa transplantada-família-equipe multiprofissional.

Na interação do indivíduo na esfera familiar, o estado de saúde e doença de cada um de seus membros afeta e é afetado pela família (3). Isto pode ser percebido na fala:

A gente mora no interior, aí minha vida mudou muito porque eu abandonei meu trabalho, minha casa e me dediquei só a ele (S5).

Várias são as responsabilidades do cuidador para preservar a saúde da pessoa transplantada: acompanhamento durante o período de internação hospitalar, às consultas de retorno, cuidados de higiene, horário das medicações, entre outras. Com tantas tarefas, muitas vezes esse indivíduo precisa abrir mão de sua vida, até mesmo abandonando sua identidade, para cuidar de seu parente.

Todos esses ajustes não repercutem apenas na vida do cuidador, mas em toda a estrutura familiar. A imprevisibilidade em relação à chegada do coração, e como resultado o isolamento exigido em nome do bem-estar do receptor, pode alterar toda a rotina da casa. Essa percepção está presente no discurso abaixo:

A rotina da casa mudou toda, mudou tudo, mudou a família, foi isolamento total. Todo mundo sofreu. Eu tenho muitos filhos, muitos netos e foi um desespero, assim, uma separação muito brusca. Porque o coração apareceu assim de uma vez, a gente não estava preparada [...] nós apressamos em tudo, foi como um vendaval (S6).

Na fala acima fica claro que toda a estrutura familiar teve que se modificar bruscamente para receber a pessoa no pós-transplante. Percebemos que mesmo a indicação formal da necessidade de um transplante não prepara ninguém para o evento, o isolamento necessário e sofrimento são inevitáveis.

Todo esse isolamento exigido é no sentido de evitar o contato físico da pessoa transplantada com o maior número de pessoas possível, pois quanto menor for esse contato, menor será seu risco de adquirir infecções. Entretanto, o cuidador e a família, que são saudáveis, acabam por abrir mão da convivência com outras pessoas em nome do bem-estar do transplantado.

A pessoa transplantada é obrigada, como já foi dito, a usar drogas contra a rejeição pelo resto da vida, o que significa viver sob constante risco de infecções das mais variadas, uma vez que as defesas naturais do organismo ficam diminuídas(4). Entretanto, a qualidade de vida da pessoa transplantada depende de sua adesão ao tratamento, que é o engajamento no autocuidado. "A ocorrência desse engajamento está diretamente associada ao bom relacionamento enfermeiro-cliente, e ao apoio familiar"(5).

A prática do autocuidado exige a necessidade de saberes fundantes como o conhecimento dos problemas de saúde, formas de tratamento, as medidas de promoção da saúde e prevenção de doenças. A educação em saúde é sempre uma estratégia primordial para engajar o cliente nas ações de autocuidado(6).

As mudanças são necessárias para melhor preservação do estado de saúde do transplantado, principalmente nos primeiros meses após o procedimento. A maior suscetibilidade às infecções decorrente do uso de imunossupressores, para a prevenção dessas, e de outras medidas essenciais, como uso de máscara, restrição no contato com outras pessoas, cuidados de higiene mais rigorosos, entre outras. É o que se observa nos depoimentos transcritos a seguir.

Tive que fazer mudança porque no quarto dormia eu, ela e o pai. Então, ela disse: vai ficar só você e ela dentro do quarto, e de preferência ela sozinha na cama. Nos primeiros dias eu fiquei com ela no quarto, mas ela na cama e eu botei outro colchão para eu dormir. Aí eu botei uma reserva na minha porta, eu botei um vidro igual ao hospital. Eu entrava, mas o resto do pessoal só via ela pelo vidro (S7).

O quarto dela antes era com 4 pessoas, depois do transplante ela teve que ficar no quarto sozinha dormindo com uma pessoa, com máscara, e todo cuidado de higiene (S2).

Todas essas mudanças ocorrem na vida das pessoas transplantadas e de seus familiares, levando-os a se depararem com limitações e perdas. Elas são compreendidas como eventos estressores e, de um modo geral, é muito difícil aceitá-las. Assim, enfrentar a nova situação, reconhecendo que a revisão dos hábitos familiares e as mudanças são necessárias, nem sempre são aceitas com facilidade. Isto pode ser percebido no depoimento abaixo.

Para mamãe é ela quem está sofrendo mais, porque ela está sentindo falta dos netos que não podem ir lá em casa, e ela está lá sozinha. No geral, a mudança foi grande para família, realmente é uma situação difícil de aceitar (S 3).

Enquanto algumas pessoas superam com dificuldades as mudanças forçadas de hábitos; outras já conseguem se adaptar com mais facilidade, pois sentem-se recompensadas com os benefícios que o novo órgão proporciona ao seu ente querido.

A mudança para mim, eu acho que foi boa, devido ela ter ganhado o coraçãozinho novo, foi transplantada, mudou para melhor (S7).

É importante focalizar a família como unidade sistêmica, que se organiza de modo singular, de acordo com suas crenças, experiências e estágio no ciclo de vida (7). A quantidade de reajustamento na estrutura, papéis, solução de problemas e manejo afetivo é peculiar a cada família. Assim, algumas estão mais bem equipadas para lidar com as mudanças e administram as crises com mais facilidade.

Percebemos que as alterações impostas pelo transplante são muitas e afetam também a família, como um sistema, que precisa se adaptar as necessidades do membro doente. Há uma quebra no equilíbrio familiar diante do novo evento. Conviver com as circunstâncias geradas pelo processo de transplante é uma experiência singular e ao mesmo tempo estressante, não apenas para o transplantado, mas também para todo um círculo de pessoas que com ele convivem.

Promovendo a adaptação para a provisão do cuidado

O transplante exige que o indivíduo re-signifique sua vida, adaptando-se as limitações e as novas condições geradas. A família necessita se organizar e também se adaptar, pois a pessoa transplantada irá necessitar de cuidados. Os papéis e funções podem necessitar ser repensados e redistribuídos.

De algum modo, a família tende a se envolver nos processos de tomada de decisão e na terapêutica quando a doença afeta um de seus membros. Tornar-se paciente e receber cuidados de saúde engloba uma serie de eventos que compreendem a interação de varias pessoas, incluindo a família, os amigos e os profissionais de saúde(3).

Os cuidados necessários a pessoa transplantada, exigem o envolvimento daqueles que o rodeiam; pais, irmãos, amigos e companheiro. Entretanto, um desses se responsabilizará pelos cuidados diretos, é o que denominamos de cuidador.

Realmente ele não tinha essa esposa, aí era eu mesma como mãe tinha que fazer todo esforço de estar ao lado dele, dando assistência em casa e dando assistência a ele. Então, de três em três dias, eu ia dá uma assistência em casa e corria imediatamente para dar assistência a ele (S1).

A pessoa transplantada necessita de cuidados especiais para a manutenção e promoção da saúde. Tudo isso está aliado à necessidade de mudanças no estilo de vida para aquisição de hábitos saudáveis, como na alimentação diferenciada, cuidados rígidos na higiene, etc. Os familiares ficam por conta da pessoa, ou seja, totalmente disponível, colocando-a como centro das atenções e de cuidados. Contudo, por mais que esse cuidado seja comprometido com o bem-estar, os familiares sentem-se inseguros e vivenciam o medo de uma possível complicação da qual possam vir a ser responsabilizados. Assim, temem em deixar o transplantado sozinho e se revezam o tempo todo.

Depois do transplante a gente fica mais cuidadoso, mais atencioso porque exige isso da gente. (...) mas exige um cuidado maior, uma atenção que a gente fica. Agora ela tem mais de três meses de transplante, fica mais sozinha, mas a gente não tem segurança, porque alguma coisa pode acontecer. Ela fala: "não, pode ir", mas a gente sabe que é perigoso, tem que ter cuidado. Às vezes tem algum evento que ela quer ir, aí não dá. Aí sempre uma de nós tem que deixar de ir, para ficar com ela (S2).

A família precisa mobilizar-se nos cuidados ao transplantado, para levá-lo às consultas, dar as medicações. Tudo isso pode interferir, de alguma forma, na vida pessoal do cuidador; ele pode necessitar pedir licença no trabalho, abrir mão de algum passeio, como podemos verificar na fala abaixo:

A coisa que eu mais adoro é ir à praia no domingo, então fica aí depois tu sai. Eu adoro ir à missa, mas minha mãe tinha saído, e eu não pude assistir a missa. Algumas coisinhas a gente tem que abrir mão. Se de repente acontece alguma coisa tem que ter alguém (S3).

Uma tensão crescente no cuidador é provocada pelo risco de exaustão e pelo contínuo acréscimo de novas tarefas. É necessário uma reorganização interna dos papéis, e a habilidade para utilizar os recursos disponíveis.

Foi difícil para mim, às vezes eu saia do trabalho e vinha direto para cá, não passava nem em casa, e o pobre do menino ficava só. Aí minha sobrinha ia, mas já ia cansada querendo se deitar, dormir para voltar em seguida. A barra foi difícil, cuidar dela, do filho, trabalhar, fazer as compras (S4).

Os familiares tentam se reorganizar e cada um ajuda da maneira que pode. Por todo o exposto, percebemos a família como o melhor local para acolher e manejar o cuidado à pessoa; entretanto, por outro lado, verificamos a sobrecarga física e emocional para seus integrantes. O enfermeiro e os demais integrantes da equipe de saúde precisam explorar esse cenário, conhecer os mecanismos adaptativos, oferecer ajuda e orientação nos cuidados, e suporte emocional.

Redescobrindo e vivenciando a solidariedade

São nos momentos difíceis de nossas vidas que descobrimos o verdadeiro valor da solidariedade. Ser solidário é demonstrar auxilio ao próximo sem esperar nada em troca, é ter uma relação de apoio. E não existe nada mais gratificante do que encontrar nos amigos o apoio para superar os momentos de crise.

Apoio social é um fenômeno complexo, abrangendo todas as interações de linguagem, costumes, estrutura familiar e tradição social que unem as pessoas(8). Esse apoio pode ser material, como uma ajuda financeira ou um objeto doado, ou espiritual, como um gesto ou uma palavra amiga. Independentemente do tipo de apoio, ele é sempre bem recebido.

Alguns amigos também ajudaram, dava uma coisa para ele, chega um com cinco reais, chega outro com dez, outro com alimento. Os amigos tiveram prazer de ajudar. Ele é uma pessoa amável, toda pessoa que conhece ele, gosta dele, e graças a Deus ele está sendo muito bem recebido, todo mundo gosta dele, apóia ele (S1).

É imperiosa a manutenção da pessoa em condições salubres, através da presença de saneamento básico total, adequação de material de construção, densidade habitacional e funções básicas do domicilio preservadas de forma privativa(9). Esta variável é recoberta de significância dada a fragilidade do sistema imunológico da pessoa no pós-transplante.

Condições sociais não adequadas e adversas, podem prejudicar a saúde da pessoa devido a sua imunidade deprimida. Assim, alguns ajustes na casa podem ser necessários para recebê-la.

Nós tivemos que pintar o quarto, esterilizar, trocar tudo, eu disse: "meu Deus como a gente vai fazer isso". Aí como a nossa comunidade tem muito benfeitor, a gente expôs o caso para comunidade e o pessoal se prontificou, trocou chuveiro, vaso sanitário, pintou o quarto, doaram uma cama, colchão novo, travesseiro (S2).

E os amigos também foram muito bons, deram apoio, o que era de esperar porque ela é uma pessoa que faz muita amizade, se comunica muito, faz amizade com todo mundo. [...]. Ela contou muito com os amigos de coração, família mesmo de sangue foram poucos. Mas essa sobrinha teve grande participação também, ficou com ela o tempo todo (S4).

Toda a família e amigos se mobilizam para obterem os recursos indispensáveis à pessoa transplantada, denotando sua adesão ao tratamento.

Frente à necessidade de retornos hospitalares freqüentes para consultas de acompanhamento com a equipe multiprofissional, os usuários provenientes do interior ou de outra cidade precisam mudar-se, temporariamente, para uma residência próxima ao hospital que facilite seu deslocamento para as consultas. Para muitas dessas pessoas que possuem condições financeiras precárias, isto se torna um obstáculo a ser vencido e a única solução é contar com a ajuda dos amigos e familiares.

A gente passou por muita dificuldade, precisamos da família para ajudar no aluguel da casa. O rapaz que alugou uma casa aqui para gente, mas nós tivemos que pagar três meses adiantados. Então, eu recorri à família, passando um envelopinho, e todo mundo contribuiu com o que pôde (S5).

A fala demonstra que a obtenção de um órgão não atende todas as necessidades da pessoa. Aliás, a doação é apenas um aspecto dentre tantos outros, os quais só podem ser atendidos por meio de um suporte financeiro adequado. Dessa forma, a família tem que se esforçar para mobilizar os recursos que viabilizem um cuidado melhor ao seu parente. Muitas são as estratégias de enfrentamento que podem ser utilizadas para resolução deste e de algum outro problema que possa surgir durante a trajetória do transplante.

Frente aos problemas de saúde, a família avalia alternativas, faz escolhas, toma decisões, mobiliza os recursos pessoais e materiais de que dispõe, e, quando possível, dispõe antecipadamente planos e condições que poderão acionar frente a uma nova dificuldade. Todos esses componentes (rede de relações interpessoais, recurso, um horizonte temporal) devem ser considerados em conjunto para uma análise suficientemente abrangente dos modos de enfrentamento de problemas de saúde na família (7).

A ajuda dos amigos, as palavras de conforto recebidas, tudo isso nos auxilia a superar os obstáculos. Portanto, nada melhor do que as experiências vividas para nos ensinar a crescer, principalmente aquelas que geram tensão e sofrimento. Momentos difíceis podem promover um amadurecimento e mudança no modo de pensar e agir em relação ao próximo, tornando-nos pessoas mais solidárias.

Não tinha nem idéia como era uma UTI, o sofrimento das pessoas, aquele corre-corre dos médicos e dos enfermeiros para salvar vida. Eu digo obrigado porque eu cresci muito, aprendi muito aqui. Eu aprendi tanto que quando eu voltar para o meu interior, eu vou visitar mais as pessoas doentes. Eu não era de visitar muito as pessoas, até mesmo os meus familiares que tivesse mais distante em tratamento, numa situação penosa, eu não pegava nem o telefone para dar uma palavra de conforto. E aqui eu recebi muitas palavras de conforto, telefonemas (S5).

Esse depoimento confirma a afirmativa de Silva(10): "pessoas que, depois de viver um momento muito difícil, são capazes de tirar uma lição dele e ajudar os demais." Vivemos em um mundo capitalista que estimula a busca pelo dinheiro e o individualismo. Passamos os dias correndo em busca de nossos objetivos e nos esquecemos daqueles que estão próximos passando por alguma dificuldade, precisando de uma ajuda. E, somente quando nos vemos do outro lado é que percebemos o verdadeiro sentido da palavra "solidariedade", descobrimos o quanto vale o apoio dos amigos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Falar sobre família, é trazer à tona um tema comum e ao mesmo tempo delicado e difícil, pois essa entidade é composta por pessoas complexas, formadas não só de matéria, mas de sentimentos. Portanto, percebemos que apesar da singularidade de cada membro, tendo a família como um sistema, a experiência de cada integrante afeta e é afetada pelas dos outros familiares.

Nas últimas décadas, os transplantes de órgãos deixaram de ser uma lenda, transpondo as fronteiras da medicina para trazer uma melhora da qualidade de vida de pessoas cronicamente incapacitadas ou mesmo salvar vida de muitas outras com doenças terminais. A obtenção do órgão não é a única barreira a ser transposta, pois muitas mudanças são necessárias para que a pessoa se torne um receptor "ideal", ou seja, de acordo com as exigências das diretrizes de transplantes. Portanto, por todo o exposto, percebemos que o processo de transplante gera crises e momentos de desestruturação, em que não só a pessoa é abalada, mas também toda a rede de relações que estabelece, principalmente o ciclo familiar que se esforça para se adaptar a nova situação.

De modo geral, no processo de transplante cardíaco o foco das atenções é o receptor, toda a equipe multiprofissional volta-se para este ente com o objetivo de reduzir complicações e favorecer seu bem-estar. A família, por outro lado, por vezes pode ficar imersa no processo de preparo e seguimento do transplante cardíaco sem que lhe sejam oferecidos os subsídios necessários para o acompanhamento seguro e eficiente dos parentes transplantados. Vale ressaltar que o familiar está inserido no processo como cuidador, onerado com inúmeras responsabilidades e exposto a um intenso estresse emocional.

A contribuição desta pesquisa reside num aprofundamento sobre o assunto abordado, visando uma melhoria significativa da interação entre a equipe de transplante e a família, procurando preservar o bem-estar das pessoas envolvidas diretamente com o cotidiano de cuidar de uma pessoa transplantada. A díade família-pessoa transplantada apresenta peculiaridades que não podem ser ignoradas, pois se reconhece que o êxito do transplante está diretamente relacionado com condições ambientais e emocionais adequadas no contexto familiar.

Frente às situações envolvidas no processo de transplante é fundamental uma abordagem multiprofissional e interdisciplinar, que envolva não só os aspectos clínicos, mas suas repercussões psicológicas e sociais, tanto para a pessoa como para seus familiares.

Esperamos que a discussão deste tema tenha contribuído para um melhor entendimento da complexidade que envolve o transplante cardíaco e suas repercussões no ciclo de vida familiar, e estimule aos profissionais de saúde o desenvolvimento de estratégias de intervenção.

Submissão: 24/08/2006

Aprovação: 15/12/2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2007

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2006
  • Aceito
    15 Dez 2006
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