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O ato de comer e as pessoas com Síndrome de Down

El acto de comer y las personas con Sindrome de Down

Eating act and people with Down Syndrome

Resumos

Trata-se do relato de experiência vivida durante a disciplina de Projetos Assistenciais de Enfermagem e de Saúde do Curso de Mestrado em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina de cunho interdisciplinar, realizado com pessoas com Síndrome de Down com foco tanto na sua racionalidade quanto no seu imaginário. Buscou-se construir junto com estas pessoas e seus familiares uma sistematização nutricional individualizada que contribuísse para sua independência pessoal na prática cotidiana do ato de comer. Os postulados do Interacionismo Simbólico guiaram esta prática e se interligaram com os instrumentos metodológicos da escuta e da observação sensível, além das atividades lúdicas. Evidenciou-se que o primeiro significado do ato de comer é construído pela sua família e reforçado pelo seu convívio social.

Pesquisa qualitativa; Síndrome de Down; Padrões alimentares


Eso es un relato de una experiencia vivida en la disciplina de Proyectos Asistenciales de Enfermaría y de Salud del Curso de Maestría en Enfermaría de la Universidad Federal de Santa Catarina con característica interdisciplinario, hecho con personas con el Síndrome de Down, con la atención tanto para la racionalidad cuanto para el imaginario. Se ha buscado construir juntamente a las personas con el Síndrome de Down y sus familiares una sistematización de nutrición individualizada que contribuyese para su independencia personal en la práctica cotidiana del acto de comer. Los postulados del Interaccionismo Simbólico condujeron la práctica y interconectáronse con los instrumentos metodológicos de la escucha y de la observación sensible, además de las actividades lúdicas. Fue evidenciado que el primer significado del acto de comer es transmitido por sus familias y reforzado por el convivir social.

Investigación cualitativa; Síndrome de Down; Conducta alimentária


This is en experience report lived in the Health and Nursing Assistance Projects of the Post-Graduate Nursing Master Degree of the Federal University of Santa Catarina as an interdisciplinary subject, and it was done with Down's Syndrome people, concentrating in their rationality and imaginary. We tried to build with these people and their families an individualized nutritional systematization that contributes to their personal independence in the daily practice of the act of eating. The postulates of symbolic interactionism guided this practice and established a connection with the methodological instruments of sensible listening and observation, besides playful activities. It was evident that the first meaning of the act of eating is built in the family and reinforced in the social life.

Qualitative research; Down Syndrome; Feeding behavior


PESQUISA

O ato de comer e as pessoas com Síndrome de Down

Eating act and people with Down Syndrome

El acto de comer y las personas con Sindrome de Down

Andréa Giaretta; Angela da Rosa Ghiorzi

Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem. Florianópolis, SC

Correspondência Correspondência: Angela da Rosa Ghiorzi Universidade Federal de Santa Catarina Departamento de Enfermagem Campus Universitário Trindade CEP 88040-900. Florianópolis, SC Submissão: 09/04/2008 Aprovação: 14/05/2009

RESUMO

Trata-se do relato de experiência vivida durante a disciplina de Projetos Assistenciais de Enfermagem e de Saúde do Curso de Mestrado em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina de cunho interdisciplinar, realizado com pessoas com Síndrome de Down com foco tanto na sua racionalidade quanto no seu imaginário. Buscou-se construir junto com estas pessoas e seus familiares uma sistematização nutricional individualizada que contribuísse para sua independência pessoal na prática cotidiana do ato de comer. Os postulados do Interacionismo Simbólico guiaram esta prática e se interligaram com os instrumentos metodológicos da escuta e da observação sensível, além das atividades lúdicas. Evidenciou-se que o primeiro significado do ato de comer é construído pela sua família e reforçado pelo seu convívio social.

Descritores: Pesquisa qualitativa; Síndrome de Down; Padrões alimentares.

ABSTRACT

This is en experience report lived in the Health and Nursing Assistance Projects of the Post-Graduate Nursing Master Degree of the Federal University of Santa Catarina as an interdisciplinary subject, and it was done with Down's Syndrome people, concentrating in their rationality and imaginary. We tried to build with these people and their families an individualized nutritional systematization that contributes to their personal independence in the daily practice of the act of eating. The postulates of symbolic interactionism guided this practice and established a connection with the methodological instruments of sensible listening and observation, besides playful activities. It was evident that the first meaning of the act of eating is built in the family and reinforced in the social life.

Descriptors: Qualitative research; Down Syndrome; Feeding behavior.

RESUMEN

Eso es un relato de una experiencia vivida en la disciplina de Proyectos Asistenciales de Enfermaría y de Salud del Curso de Maestría en Enfermaría de la Universidad Federal de Santa Catarina con característica interdisciplinario, hecho con personas con el Síndrome de Down, con la atención tanto para la racionalidad cuanto para el imaginario. Se ha buscado construir juntamente a las personas con el Síndrome de Down y sus familiares una sistematización de nutrición individualizada que contribuyese para su independencia personal en la práctica cotidiana del acto de comer. Los postulados del Interaccionismo Simbólico condujeron la práctica y interconectáronse con los instrumentos metodológicos de la escucha y de la observación sensible, además de las actividades lúdicas. Fue evidenciado que el primer significado del acto de comer es transmitido por sus familias y reforzado por el convivir social.

Descriptores: Investigación cualitativa; Síndrome de Down; Conducta alimentária.

INTRODUÇÃO

A pessoa é um ser de relações que pensa, sente, se emociona e que tem um significado de vida inserido no seu cotidiano. Sua motivação em viver o significado e a relevância de sua vida, faz com que ela tematize o mundo a partir de suas vivências. Logo, ela se complementa na relação com o outro de forma integrada e comunicacional criando seu script de vida(1).

Neste contexto a família tem um papel importante. Ela pode ser saudável ou não. Pode permitir ou não o vôo livre de cada um de seus membros. E isto depende de como ela administra o contexto externo, a sua organização interna e os seus símbolos significantes sobre o viver(1,2). Regras, normas e ritos sociais jogam no mundo familiar com idéias, emoções, imaginário e símbolos significantes; incluindo também o ato de comer(1,2).

Via de regra, os pais de crianças com Síndrome de Down buscam compensar seu erro cromossômico através da liberdade irrestrita de suas vontades, onde o ato de comer pode assumir gigantescas proporções de contribuição para o sobrepeso e a obesidade(2,3).

Assim sendo, o ato de comer não pode ser resumido à alimentação de células; porque percorre a existência de todas as pessoas e coexiste com valores instalados na cultura, com significados específicos para a pessoa e para a sociedade. Portanto, relacionado à dimensão do comer, há um sistema de valores e crenças familiares associados e qualquer alteração neste contexto tem tanto uma implicação na vida social, quanto nos significados do ato de comer para cada família e para cada pessoa que a compõe(1-3).

Portanto, para que uma criança com Síndrome de Down chegue à fase adulta saudável, sem sobrepeso, sem obesidade, é necessário um apoio educativo, no sentido de um trabalho integrado entre a família, o nutricionista e a equipe interdisciplinar. O foco é a pessoa integral, onde razão e imaginário, com toda a sua rede de símbolos significantes, se inter-relacionam indissociavelmente.

Mesmo sendo uma pessoa com Síndrome de Down, ela tem uma autonomia e uma independência relativa para fazer a sua escolha alimentar. Uma família transmite seus valores e crenças, dita as normas do certo e do errado, mas cabe a cada um de seus membros a escolha de seu destino(2,3).

A Teoria do Interacionismo Simbólico permite desvelar a real necessidade das pessoas, bem como a compreensão do sentido, do significado do seu momento vivido e por isso mesmo foi eleita como referencial teórico da prática assistencial em questão. De acordo com os postulados desta teoria, as pessoas estão em constante interação umas com as outras, com o meio social que as cerca e consigo mesmas. Comunicando-se por meio de símbolos que são interpretados pelas pessoas e passam a ter significado quando ambas o compreendem(1).

Portanto, o objetivo maior deste trabalho foi o de construir junto com as pessoas com Síndrome de Down vinculadas a uma Instituição de Ensino de São José/SC e suas famílias, uma sistematização nutricional individualizada que contribuísse para sua independência pessoal na prática cotidiana do ato de comer.

METODOLOGIA

Com base nas considerações acima, a prática assistencial se deu numa Instituição de Ensino com uma equipe interdisciplinar. A instituição e os membros desta equipe consentiram com o trabalho através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina.

Para poder participar do trabalho, a pessoa com Síndrome de Down tinha que: ser aluno regular da instituição, ter deficiência mental moderada e residir com a família. Com relação à família, foi solicitado a participação do(s) responsável(is) pelo cuidado dessa pessoa. A identidade dos participantes foi preservada, sendo utilizado codinomes.

Do total de 11 alunos que os pais autorizaram participar, somente 9 pessoas participaram de toda a prática assistencial. Dos familiares, apenas compareceram as mães e do total de 11, apenas 2 concluíram as atividades.

Foi utilizado como instrumentos metodológicos interacionistas de busca de significados da realidade representada por eles com relação ao ato de comer, a escuta e a observação sensível.

Para as famílias das pessoas com Síndrome de Down, que estavam sendo assistidos, utilizou-se uma entrevista aberta, onde, a partir de uma pergunta temática, o familiar podia discorrer livremente sobre o tema que lhe foi proposto.

A entrevista foi realizada apenas com duas mães, pois as outras desistiram ao longo da prática assistencial. Em seguida, foi feita a transcrição da mesma e as anotações foram entregues aos participantes para que conferissem a veracidade dos dados.

Além deste instrumento de coleta de dados, utilizou-se a pesagem e a tomada da altura, para poder classificar o estado nutricional dessas pessoas.

Como atividades lúdicas, foram utilizados jogos e brincadeiras. Por meio do lúdico, o ser humano expressa seu mundo de criatividade, interagindo consigo mesmo e com as pessoas que o cercam, ou seja, sua ludicidade extrapola as barreiras do seu mundo subjetivo(4).

As dinâmicas envolveram três etapas: uma atividade inicial de descontração; uma atividade lúdica específica no meio para captar e compreender o ato de comer das pessoas envolvidas e uma dinâmica final para integração do processo assistencial com a construção de uma sistematização individual do ato de comer.

No que diz respeito às atividades de descontração e de fechamento, utilizou-se: músicas, exercícios de alongamento e relaxamento e assuntos do seu cotidiano.

As atividades lúdicas utilizadas foram: colagens, histórias, modelagem, brincadeira do restaurante, jogo da amarelinha dos alimentos, bingo dos alimentos, confecção de uma salada de frutas. Estas foram realizadas em nove encontros com os adolescentes e em oito encontros com as crianças.

Com as mães, foram realizadas quatro atividades em sete encontros. Envolveram: construção da árvore dos desejos (desejos com relação à alimentação); dinâmica da colagem livre de palavras, fotos e figuras (quais os fatores culturais e ambientais que influenciam na sua alimentação); colagem dos sentimentos e emoções relacionados ao ato de comer; técnica da hipnose consciente; e confecção de uma salada de frutas juntamente com seus filhos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Entre as crianças do estudo, 66,7% (2 crianças) estão obesas e 33,3% (1 criança) está com sobrepeso. Gomes & Amorim (2000), pesquisando a incidência de sobrepeso e obesidade em crianças com Síndrome de Down constataram que 83% de crianças com idades entre 2 e 6 anos estão dentro dos padrões da normalidade para peso e 17% estão com sobrepeso ou obesidade(5).

Retomando o relato da prática assistencial, constatou-se 33,3% dos adolescentes com Síndrome de Down estão com sobrepeso, 33,3% eutróficos e 33,3% desnutridos. Nos jovens adultos, 50% estão obesos e 50% eutróficos.

Estes achados reforçam os resultados encontrados em outros estudos de crianças e adolescentes com Síndrome de Down que demonstraram um aumento na prevalência de obesidade desde a primeira infância(6). Este dado, somado ao fato de que crianças com Síndrome de Down necessitam de calorias idênticas às crianças que não têm a Síndrome, vem reforçar a importância do acompanhamento nutricional desde a tenra idade nesta população, para prevenir o aparecimento do sobrepeso e da obesidade(7).

Do ponto de vista qualitativo, encontrou-se os seguintes significados do ato de comer em cada pessoa assistida com Síndrome de Down:

CHURRASCO: 20a, masc., obeso

Mostrou independência e confiança em suas escolhas, inclusive as alimentares, em todas as dinâmicas. Esta atitude indica a influência da família na construção do ato social de comer, a qual permite que Churrasco manifeste seus gostos e desejos, respeitando-o e educando-o para a sua independência.

Churrasco demonstrou preocupação com o corpo, através do uso de produtos diet e light. Percebe-se magro, da mesma forma como percebe os membros de sua família. A dualidade entre razão e imaginário está presente no consumo de coca-cola light e alimentos doces e sua preocupação em manter o corpo magro. Sua mãe controla a ingestão de doces no dia-a-dia e ele quer comê-los diariamente. Durante as dinâmicas, sempre escolheu os alimentos calóricos, ricos em gordura e açúcares. Para ele o ato de comer significa ter poder de escolhas e comer em família, sendo os alimentos preparados por sua mãe ou por ele.

COCA-COLA: 21a, masc., eutrofia

Durante o desenvolvimento das dinâmicas, pode-se perceber o crescimento no envolvimento e na confiança em mim, através da sua participação das atividades propostas. Desde o início das atividades, Coca-cola mostrou ser independente em suas escolhas alimentares e que sua mãe educa-o para tal.

Demonstrou preocupação com seu corpo, em se manter esbelto. Sua mãe relatou que fala isto ao filho: cuidado com a barriga; não come muito para dar barriga (MC). É o ato social de comer expresso na unidade e unicidade familiar. Coca-cola percebe-se magro e disse fazer ginástica. Este fato reforça a preocupação com seu corpo aliado ao consumo de produtos light que disse fazer.

Porém, há dualidade em seu discurso e em seu imaginário: de um lado o desejo de comer nega maluca, sorvete, bombom, tortas, refrigerantes e do outro, manter o corpo com peso adequado (imagem distorcida da sua realidade, o que lhe autoriza comer o quê e na quantidade que quer). Na última dinâmica, Coca-cola disse que pode comer os alimentos ricos em açúcar e gordura, porém em pequena quantidade, para não engordar. Aí vê-se o que significa o ato de comer para ele: comer de tudo, com moderação.

PRESUNTO: 15a, masc., sobrepeso

No início dos encontros, Presunto pareceu disperso, porém com a formação de vínculo, isto desapareceu. É muito comunicativo, alegre, participativo e descontraído.

Presunto percebeu-se acima do peso, assim como sua família. E realmente sua mãe está obesa.

Através das brincadeiras, ficaram explícitos seus desejos, pensamentos e vontades alimentares. O desejo de comer alimentos extremamente calóricos e ricos em gordura e açúcares por Presunto coincide com o seu biótipo atual: sobrepeso. A dualidade também se fez presente: em seu discurso sabe que não pode comê-los, pois está com sobrepeso, porém em sua realidade os quer e os come.

Durante nossas atividades, Presunto disse diversas vezes que tem barriga (Presunto) e que os alimentos ricos em açúcares e gorduras dão barriga (Presunto). Ele tem consciência de seu estado nutricional. Em seu imaginário ele pode comer alimentos calóricos, mas a sua razão não o permite.

Para Presunto, o ato de comer significa comer aquilo que gosta e em grandes quantidades. Não foi possível identificar se sua família educa-o para ser independente em suas escolhas alimentares. É interessante ressaltar que sua mãe utiliza os alimentos como forma de aliviar suas dores no estômago. Este ato social é repetido por Presunto.

BANANA: 11a, masc., eutrofia

Banana demonstrou ser uma criança tímida e reservada. Entretanto, isto foi se modificando com o passar dos encontros.

Banana apresentou um comportamento de ansiedade durante as brincadeiras: pegava todas as figuras dos alimentos para colocar em seu prato e bem ligeiro. Sua mãe foi uma das que participaram até o final da assistência. Ela falou que, quando está ansiosa, angustiada, come, mesmo sem estar com fome e que seus dois filhos a vêem fazer isto. Ela disse que Banana logo após jantar, geralmente pede mais comida. Aqui, conseguimos perceber o ato social de comer: Banana repete aquilo que vê, que aprende, o que está sendo construído socialmente com sua mãe, em casa.

Em seu imaginário, há o consumo de alimentos calóricos, para satisfazer sua ansiedade, logo, busca calma. Entretanto, sua realidade é outra: sua mãe relatou que controla a alimentação do filho e que as baboseiras, é só de vez em quando. Final de semana e olhe lá (Loirinha). Isto se reflete em seu estado nutricional de eutrofia. O ato de comer para Banana significa que, quando se está ansioso, deve-se comer.

No decorrer das dinâmicas, essa característica de ansiedade desapareceu. Neste momento, reconstrói-se seu ato de comer. Nesta mesma dinâmica, pude identificar que ele está sendo educado para ser independente em suas escolhas alimentares.

MACARRÃO: 8a, masc., sobrepeso

Macarrão inicialmente mostrou-se contrariado, de cara amarrada. Esta atitude permaneceu nos três primeiros encontros. Ao familiarizar-se mais comigo através das brincadeiras iniciais, passou a ter confiança, criou um vínculo afetivo: sorria, me abraçava, beijava, falava, me dava a mão e participava das atividades.

Através das dinâmicas e durante os encontros com sua mãe (que também participou até o final da prática), ficou evidente a monotonia alimentar de Macarrão. Ele não mastiga corretamente, nem come alimentos de consistência mais dura. Sua mãe afirmou que, quando ele era criança, ela não oferecia alimentos de consistência mais sólida, pois temia que Macarrão se engasgasse. Em estudo realizado em crianças com Síndrome de Down com idades entre 1 e 12 anos, identificou-se dificuldades em utilizar utensílios para comer, em comer os alimentos servidos para a família e dificuldades para mastigar os alimentos(8).

Macarrão reconhece sua realidade: está acima do peso. Sua mãe contou que muitas vezes utiliza alimentos para acalmá-lo e que a sua mãe (avó de Macarrão), prepara todos os alimentos que ele gosta quando vai à sua casa. Seria isto um provável fator contribuinte para o seu sobrepeso?

Outro fato constatado é que Macarrão adora alimentos do grupo dos carboidratos e mais especificamente o macarrão, comendo-o todos os dias. Durante a prática assistencial, ele também confirmou não gostar de frutas e verduras. No encontro final, onde confeccionamos uma saborosa salada de frutas, Macarrão foi o único a não comer, mesmo sua mãe insistindo. Aliás, ela própria confessou que não o faz e que adoraria comê-las com mais freqüência. Nesta atitude, vê-se a construção do ato social do comer de sua família: a dualidade entre dever fazer e querer. Para Macarrão, o ato de comer significa comer macarrão, comer somente o que gosta.

Com ele foi reconstruído o significado da introdução de carboidratos diferentes nas principais refeições. Conhecedor dos riscos, enfatizou a necessidade de não os misturá-los para não haver excesso energético nestas refeições.

DANONINHO: 7a, fem., obesidade

Danoninho inicialmente mostrou-se contrariada, de cara amarrada e braços cruzados. Após o terceiro encontro, começou a brincar mais, a falar e participar das atividades.

Danoninho está obesa, o que pode ser devido ao fato de sua mãe permitir o consumo livre de alimentos, sem restrição pelo fato dela ser temporona e por ter Síndrome de Down. Somando-se a isso, Danoninho manifestou seu gosto e o seu consumo por alimentos calóricos, bem como o consumo de grande quantidade de alimentos. O que Danoninho expressou conter em seu imaginário sobre o seu ato de comer foi o de satisfação pela permissividade: tudo é permitido e, assim, fico alegre. Para Danoninho, o ato de comer significa comer de tudo o que quer e o que gosta livremente para ser feliz. Sua mãe não a educa para ser independente em suas escolhas alimentares.

Com Danoninho foi re-significado o uso indiscriminado e livre de carboidratos.

SALADA DE FRUTAS: 6a, masc., obesidade

Salada de frutas apresentou pouca participação durante quase todas as dinâmicas. Nas duas últimas participou, emitiu sons altos, porém incompreensíveis, utilizando seus braços como forma de se comunicar.

Na última atividade, que foi a da confecção da salada de frutas, ele participou junto com sua mãe e comeu com muito gosto as frutas. Porém, não foi possível conhecer o significado de seu ato de comer, nem de sua família, pois a comunicação de Salada de frutas era totalmente não-verbal e o tempo empreendido não me permitiu chegar ao meu objetivo. Também não pude identificar se sua mãe o educa ou não para ser independente em suas escolhas alimentares.

ÁGUA: 7a, fem., desnutrição

Água quase não participou durante o desenvolvimento da prática. Estava sempre muda, de braços cruzados ou dedos na boca, emburrada, não comunicativa, inerte, com poucas reações. Não respondia com palavras aos questionamentos. Somente com a cabeça. Entretanto, na última dinâmica, a que preparamos a salada de frutas, Água participou picando as frutas com minha ajuda. Neste momento, ela permitiu e aceitou meu contato, indicando uma possível formação de vínculo. Quem sabe se o tempo tivesse sido maior, Água começasse a participar das dinâmicas com os seus colegas.

Devido à sua baixa adesão às dinâmicas, às faltas repetidas por doenças e problemas familiares e a não participação da família, não foi possível conhecer o significado do seu ato de comer.

BOLO DE CHOCOLATE: 16a, fem., desnutrição

Bolo de chocolate esboçou desde o início da prática assistencial, alguns sorrisos e conversava consigo mesma em voz baixa. Tem problemas na fala. É uma adolescente tímida, calada, que não conversava muito.

Foi difícil conhecer seu ato de comer, pois ela faltou muito aos encontros e as dinâmicas da qual participou, apresentaram resultados contraditórios. Demonstrou em suas brincadeiras comer uma diversidade de alimentos, porém em sua fala, havia uma monotonia alimentar. Isto pode refletir seu imaginário: nele tudo é permitido e possível. Eu posso, eu sou capaz. Entretanto, tem baixo peso. Será devido a uma ingestão alimentar insuficiente, tanto do ponto de vista de quantidade, quanto de qualidade?

No contexto geral, todos os participantes mantiveram duas características em comum: a preferência por refrigerantes e a baixa aceitação/consumo de frutas. Estes achados vêm confirmar que as pessoas com Síndrome de Down tendem a se alimentar da mesma forma que pessoas sem a síndrome, reforçando a falta de uma correta orientação nutricional e a importância da família para o desenvolvimento de hábitos alimentares saudáveis para se evitar o sobrepeso e a obesidade(9,10).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, constatou-se realmente a influência do contexto externo, social, no contexto interno da família e, mais especificamente de cada membro familiar(1). Essa influência traduziu-se em uma rede interacionista, que amarra, dá nós e se apóia nas crenças e valores de cada um e de todos. Enquanto trama de fios, cada pessoa interioriza uma experiência particular, singular, mesmo tendo vivido o mesmo fato em família. Aí adquire a sua representação de realidade e é com ela que se comunica o tempo todo. É com ela que pensa, sente e age. É com ela que interage, construindo, desconstuindo e reconstruindo significados junto com o outro.

Através das atividades lúdicas, ficaram claros os desejos, pensamentos e vontades alimentares das pessoas com Síndrome de Down. O desejo de comer alimentos extremamente calóricos e ricos em gordura e açúcares pela maioria dos participantes, coincidiu com o biótipo atual deles: sobrepeso ou obesidade. Provavelmente em casa, estas crianças e adolescentes comam este tipo de alimentos.

Além disso, ficou evidenciada a rede cultural familiar onde este ato se inscreve. Social e individual, no sentido de particular, singular, se mesclaram e se exteriorizaram a partir do registro de memória de cada pessoa frente ao ato vivido.

A independência das pessoas com Síndrome de Down nas suas escolhas alimentares, bem como no preparo dos alimentos, é possível e viável desde que essas pessoas saibam o que querem e como podem fazê-lo, além de serem compreendidas, respeitadas, acreditadas e estimuladas para tal.

A família realmente é fundamental dentro do papel de educação nutricional, porque é ela quem transmite para seus filhos o primeiro significado do ato de comer, a partir de sua construção social. O membro familiar que foi mais imitado enquanto veículo do significado do ato de comer foi a mãe: as pessoas com Síndrome de Down repetiam comportamentos alimentares idênticos aos de suas mães. Isto é o retorno cíclico do tempo: o quê as mães aprenderam e como aprenderam a comer(2).

Ficou evidente que não se pode trabalhar somente com uma pessoa da família, da mesma forma que o nutricionista não pode dar conta de todo este contexto. Assistir as pessoas com Síndrome de Down e seus familiares requer um trabalho interdisciplinar e interinstitucional. Logo, a colaboração das professoras e dos pedagogos da Instituição de São José, bem como dos professores do Curso de Pós-Graduação em Enfermagem junto ao nutricionista, reforçaram e permitiram a qualidade deste relato. O ato de comer é um ato construído socialmente e deve ser visto e entendido a partir dos vários olhares das áreas do saber: biológico, antropológico, sociológico e psicológico.

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  • Correspondência:
    Angela da Rosa Ghiorzi
    Universidade Federal de Santa Catarina
    Departamento de Enfermagem
    Campus Universitário Trindade
    CEP 88040-900. Florianópolis, SC
    Submissão: 09/04/2008
    Aprovação: 14/05/2009
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      14 Maio 2009
    • Recebido
      09 Abr 2008
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