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A enfermeira e a nudez do paciente

The nurse and patient's nudity

La enfermera y la desnudez del paciente

Resumos

Trata-se de um estudo qualitativo sobre a relação de enfermeiras de um hospital universitário com o paciente quando precisam desnudá-lo para cuidar. O objetivo foi analisar o relato dessas enfermeiras na situação proposta. As informações foram produzidas pela transcrição de sete entrevistas semi-estruturadas e foram analisadas com base no pensamento de Michel Foucault. Os resultados mostraram que as relações da enfermeira com pacientes em momentos onde a nudez é necessária para o cuidado de enfermagem são carregadas de poder, para as quais nem sempre as profissionais se sentem preparadas e não julgam que, ao agir como agem, estão exercendo poder sobre os pacientes. Sugere-se que os cursos de enfermagem realizem oficinas sobre o cuidado do corpo despido.

Enfermagem; Ética; Poder; Cuidado


This is a qualitative study about the relationship among nurses of a university hospital and their patients when they need to undress those patients to take care. The purpose was to analyze speech of seven nurses in this situation. The information was taken by transcribing the semi-structured interviews which were analyzed according Michel Foucault's thought. The results demonstrated that the relationship among nurses and patients at the time when nudity is needed to perform nursing care is full of power, to which the nurses don't feel always prepared. Also the nurses don't think that, acting as they act, they exert power over the patients. It is suggested to Nursing schools to perform seminars about the care with the naked body.

Nursing; Ethics; Power; Care


Es un estudio cualitativo sobre la relación de enfermaras, en un hospital universitario, frente la neceesidad de desnudar el paciente para cuidarselo. El objetivo fue analizar el relato de séte dellas frente tales hechos. Los datos producidos por la transcripción de las entrevistas semi estruturadas y su analisis es basada en el pensamiento de Michel Foucault. Los resultados mostraron que las relaciones enfermeras/pacientes, donde la desnudez se hace necesaria para el cuidado de enfermería, son cargadas de poder, mientras ni siempre las profesionales estén preparadas o ni evaluan el grado de poder ejercido sobre los pacientes. Sugerimos que los cursos de enfermería ofrezcan oportunidad de discusiónn e intercambio de opiniones sobre el tema.

Enfermería; Ética; Poder; Cuidado


PESQUISA

A enfermeira e a nudez do paciente

The nurse and patient's nudity

La enfermera y la desnudez del paciente

Regina Maria dos SantosI; Ívea Rayane M. N. VianaI; Josefa Rita da SilvaI; Maria Cristina Soares Figueiredo TrezzaI; Joséte Luzia LeiteII

IUniversidade Federal de Alagoas. Escola de Enfermagem e Farmácia, Maceió, AL

IIUniversidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ

Autor correspondente Autor correspondente: Regina Maria dos Santos UFAL/ESENFAR Av. Lourival Melo Mota, s/n CEP 57072-970. Maceió, AL E-mail: relpesantos@gmail.com

RESUMO

Trata-se de um estudo qualitativo sobre a relação de enfermeiras de um hospital universitário com o paciente quando precisam desnudá-lo para cuidar. O objetivo foi analisar o relato dessas enfermeiras na situação proposta. As informações foram produzidas pela transcrição de sete entrevistas semi-estruturadas e foram analisadas com base no pensamento de Michel Foucault. Os resultados mostraram que as relações da enfermeira com pacientes em momentos onde a nudez é necessária para o cuidado de enfermagem são carregadas de poder, para as quais nem sempre as profissionais se sentem preparadas e não julgam que, ao agir como agem, estão exercendo poder sobre os pacientes. Sugere-se que os cursos de enfermagem realizem oficinas sobre o cuidado do corpo despido.

Descritores: Enfermagem; Ética; Poder; Cuidado

ABSTRACT

This is a qualitative study about the relationship among nurses of a university hospital and their patients when they need to undress those patients to take care. The purpose was to analyze speech of seven nurses in this situation. The information was taken by transcribing the semi-structured interviews which were analyzed according Michel Foucault's thought. The results demonstrated that the relationship among nurses and patients at the time when nudity is needed to perform nursing care is full of power, to which the nurses don't feel always prepared. Also the nurses don't think that, acting as they act, they exert power over the patients. It is suggested to Nursing schools to perform seminars about the care with the naked body.

Key works: Nursing; Ethics; Power; Care.

RESUMEN

Es un estudio cualitativo sobre la relación de enfermaras, en un hospital universitario, frente la neceesidad de desnudar el paciente para cuidarselo. El objetivo fue analizar el relato de séte dellas frente tales hechos. Los datos producidos por la transcripción de las entrevistas semi estruturadas y su analisis es basada en el pensamiento de Michel Foucault. Los resultados mostraron que las relaciones enfermeras/pacientes, donde la desnudez se hace necesaria para el cuidado de enfermería, son cargadas de poder, mientras ni siempre las profesionales estén preparadas o ni evaluan el grado de poder ejercido sobre los pacientes. Sugerimos que los cursos de enfermería ofrezcan oportunidad de discusiónn e intercambio de opiniones sobre el tema.

Descritores: Enfermería; Ética; Poder; Cuidado.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Dentre os profissionais da equipe de saúde a equipe de enfermagem é a que mais próxima está do paciente para realizar determinados procedimentos, sendo, nesta conjuntura, a profissão que mais mantém contato direto e constante com o cliente durante a internação e a que mais expõe, toca e manuseia o corpo ao implementar a assistência(1). Dentre a referida equipe, a enfermeira também cuida de pacientes, em situações graves ou complexas conforme determina a Lei n.º 7.498/86, onde o corpo do paciente precisa ser exposto.

Considerando este contexto, o estudo abordou a relação da enfermeira com o paciente em situações em que é necessário desnudá-lo para prestar cuidados de Enfermagem. A idéia de realizá-lo foi decorrente da experiência de acompanhar os primeiros contatos de estudantes com o cuidado de Enfermagem, nas aulas da disciplina Métodos e Processos de Intervenção de Enfermagem do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Alagoas UFAL. É nesta disciplina, correspondente à antiga disciplina Fundamentos de Enfermagem, que as estudantes são introduzidas nas primeiras vivências com o processo de trabalho da enfermeira, o método como a enfermeira define quais os cuidados de Enfermagem que cada paciente precisa e como executá-los quando ele próprio está impedido de cuidar-se.

Antes das práticas propriamente ditas, conteúdos sobre Ética e Bioética sempre são abordados, assim como aspectos históricos e sociais sobre como a enfermeira se relaciona com seus pacientes e como deve abordá-los, prestar o cuidado e finalizar a atividade, principalmente quando a situação requer o desnudamento do cliente, como é o caso do banho no leito, higiene íntima, algumas sondagens ou aplicação de medicamentos por vias íntimas. Nesses momentos, mesmo havendo treinamento anterior no Laboratório de Enfermagem que simula uma enfermaria hospitalar, sempre se observa reações de curiosidade, vergonha ou constrangimento entre as estudantes, uma vez que esses conhecimentos lhes colocam frente a frente com a relação com seu próprio corpo e com os tabus que cercam o corpo nu.

Além dos conteúdos éticos, os estudantes são colocados também diante dos princípios científicos que embasam os procedimentos técnicos e são levados a compreender como a sua abordagem e a execução da técnica passo a passo tem o poder de promover o bem estar, prevenir a contaminação ou infecção e preparar o corpo para que a natureza possa agir sobre ele(2).

Neste mister, o cuidado de enfermagem, tal como descrito por Florence, tem o poder de inserir-se nos mais diversos aspectos, de forma que certas condições ambientais sejam providenciadas para a natureza agir. Segundo ela, deveria significar emprego apropriado de ar puro, luz, calor, limpeza, quietude e a adequada escolha e administração da dieta - tudo com o mínimo gasto da força vital do paciente(3). A limpeza, naturalmente incluía a limpeza do ambiente e a limpeza do corpo, como requisito para sua recuperação.

Além disso, a execução da técnica de forma muito bem fundamentada e seguida à risca pode conter um componente de exercício de poder sobre o corpo do outro, influenciando a atitude da enfermeira, aspecto esse que não tem sido objeto de muitos estudos, ao menos no espaço social do estado de Alagoas. Neste sentido, estudar a relação da enfermeira(o) com pacientes, nos momentos em que prestam cuidados de Enfermagem que implicou no toque ao corpo desnudado poderia ser um caminho de contribuição para as enfermeiras refletirem sobre sua prática cotidiana, principalmente depois de algum tempo de formada, quando o frescor do conhecimento adquirido já foi substituído pelo amadurecimento da labuta, considerando que esses momentos podem ser de muito constrangimento para os pacientes e eles não se sentem à vontade para reagir ou humildemente não conseguem se contrapor, principalmente quando se encontram em um hospital universitário, onde as enfermeiras também exercem o poder de ensinar a cuidar.

Coerentemente com este contexto o estudo teve como objetivo geral analisar o relato de um grupo de sete enfermeiras(os) do Hospital Universitário Professor Alberto Antunes, sobre sua relação com o paciente, na prestação do cuidado de Enfermagem onde a nudez é necessária, com base no pensamento foucaultiano, acerca do exercício do poder sobre o corpo.

METODOLOGIA

O estudo, registrado no Grupo de Estudos Dra. Isabel Macintyre/Universidade Federal de Alagoas (GEDIM/UFAL), financiado com bolsa do Programa PIBIC/CNPq, foi do tipo qualitativo, pois se buscou respostas muito particulares para as questões levantadas, as quais se referiam a um universo muito delicado de sentimentos e emoções envolvidas no desnudamento do corpo do outro para dele cuidar e que envolve o exercício de um poder concedido legal e socialmente para tocar o outro.

A pesquisa foi realizada no HUPAA da UFAL que presta serviços de referência estadual, assumindo no SUS, em Alagoas, a posição de serviço de alta complexidade na hierarquização da assistência à saúde e que atende as pessoas que ali buscam cuidados, entre os quais os cuidados de Enfermagem. Os setores foram de internamento de adultos, as Clínicas Médica e Cirúrgica, com 40 leitos cada, onde se encontram pacientes em diferentes graus de complexidade e alta dependência dos cuidados de Enfermagem.

Os sujeitos foram sete enfermeiras(os), de um total de 12, que trabalham nas clínicas selecionadas onde se oferece tratamento clínico e cirúrgico, situações nas quais muitos pacientes são dependentes da Enfermagem para a prestação de cuidados de higiene e conforto. Os critérios de inclusão foram: estar lotado em uma destas duas clínicas e aceitar participar do estudo.

Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética (Protocolo n.º 009545/2007-15), de posse do nome das(os) enfermeiras e seus turnos de trabalho, foi iniciado o processo de aproximação com os sujeitos, os quais foram esclarecidos sobre o estudo e como este seria feito, explicando-se o TCLE - termo de consentimento livre e esclarecido. Tomou-se como instrumento um roteiro de entrevista semi-estruturada com perguntas abertas.

A análise das informações foi iniciada pelo processo de organização dos dados. Para isso foram feitas leituras exaustivas das falas dos sujeitos, tendo como guia o objetivo do estudo. Depois de organizados, os dados foram lidos novamente, para identificar núcleos de sentido de onde foram extraídos os temas. Em seguida procurou-se discutir esses temas com o pensamento de Michel Foucault, dialogando com o conhecimento já produzido sobre a temática por autores enfermeiros.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para compreender a dinâmica de identificação dos temas encerrados nas falas das entrevistadas e sentir a forma de pensar e agir dos respondentes é importante conhecer algumas características das(os) enfermeiras(os) que aceitaram participar deste estudo, verificando-se que a maioria dos sujeitos era do sexo feminino, tinham mais de 10 anos de formado e tinham mais de um vínculo empregatício. Com esse tempo de formado, os sujeitos tiveram a possibilidade de transmitir suas experiências ao cuidar de um corpo despido, relatar suas vivências e comentar como encararam essa relação tão delicada da enfermeira com o corpo nu do paciente ao realizar algum procedimento que exigiu o desnudamento. Cuidados desta natureza são prestados aos pacientes que se encontram internos nessas clínicas, fragilizados, necessitando de um acompanhamento mais próximo.

Assim, as/os enfermeiras/os que se encontram nesses setores foram consideradas pelas pesquisadoras as(os) mais abalizadas(os) para fornecer dados significativos para o estudo. Em suas falas elas(es) relataram diferenças e dificuldades em preservar a privacidade do paciente, dependendo do hospital e do setor, referindo-se a diferenças existentes entre os dois locais onde trabalham, pois nem todos ofereciam condições adequadas nem equipamentos ou materiais para proteger a a nudez. Essa constatação fez as pesquisadoras refletirem como as(os) enfermeiras(os) enfrentam situações precárias dificultadoras do cuidar com princípios de humanidade e respeito.

Ao ouvir tais relatos o primeiro impacto foi perceber como os princípios éticos e bioéticos estão imbricados na relação da enfermeira, evidenciando que o trabalho da enfermagem, do ponto de vista ético, é muito diferente de outras categorias da área de saúde. Estudiosos como Kruse(4) refletem que a enfermeira vive uma situação complicada porque são pressionadas por ações subordinadoras de um lado, vivendo a hegemonia de uma classe profissional sobre ela e as outras profissões da saúde, enquanto que do outro exerce poder de coordenar a equipe de Enfermagem. Em função disso acaba por exercer poder de controle sobre os pacientes, porquanto a enfermeira, juntamente com o técnico e o auxiliar de enfermagem são os profissionais que permanecem 24 horas por dia junto ao paciente, prestando cuidado de enfermagem direto, contínuo e vigilante(5). Ambrozano(6) é enfática ao esclarecer que trabalhar em enfermagem é atuar em prol da qualidade de vida do individuo orientando, olhando, ouvindo, falando, medicando, sondando, banhando, alimentando, oferecendo conforto, fazendo-se confiável, "instrumentalizando" para o amanhã e oferecendo a paz.

Assim, como homem e ser social, o paciente precisa sentir que nós como profissionais o consideramos. Neste sentido, alguns aspectos relacionados aos cuidados de enfermagem devem ser adaptados conforme suas preferências, respeitando sempre sua individualidade. Um cuidado básico para manter um conforto social é que os profissionais precisam estar atentos ao que diz respeito ao pudor do cliente, pois é algo que deverá ser mantido em todas as situações. O reconhecimento de que nas práticas de enfermagem existem momentos em que o desnudamento é imperioso, exigindo que a enfermeira dispa o paciente permitiu identificar o primeiro tema presente nas falas:

A relação da(o) enfermeira(o) com o paciente despido contém algum exercício de poder

É interessante estar estudando a relação da(o) enfermeira(o) com pacientes em situações que exigem o desnudamento do corpo a ser cuidado porque, na maioria das vezes ela exerce poder acreditando que esta respeitando um outro principio da Bioética, que é o da Beneficência, segundo o qual a ação deve proporcionar o bem ou causar benefício a outros, sendo considerada como o fim das ações de cuidado em saúde(7). Esses aspectos podem ser observados nas falas:

Se era necessário fazer, penso no melhor pra ele e realmente é uma coisa que não pode deixar de ser feita. (Maria)

O paciente não tem o direito de recusar, pelo menos, teoricamente tem, mas... na prática não tem. Agora, se for por em risco a vida dela, eu faço. (Paulo)

A gente tenta apressar para poder acabar logo. (José)

A(O) enfermeira(o) pode estar raciocinando que os cuidados de higiene e conforto, mesmo invadindo a privacidade e tocando o corpo nu, vai fazer bem, tornando a ação de poder justificada.

Também foi observado na análise das falas das enfermeiras que a forma como as mesmas encaram as situações de desnudamento na atualidade são diferentes das suas primeiras experiências. Esta diferença esta relacionada à adaptação, pois segundo as enfermeiras o ato de desnudar, com o tempo, "vira" (grifo nosso) rotina. Assim, é nessa lógica que observamos relações de poder da enfermeira sobre seu cliente. Pois, o poder é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado(8). Isso pode ser visto nas falas:

Depois é que a gente vai se adaptando, hoje já é diferente daquele primeiro. Já não tenho mais aquela timidez e a gente já se acostumou com aquele hábito de fazer o curativo com ele sem roupa, né? (José)

A gente tá mais acostumado a fazer certo tipo de procedimento às vezes mais de três, quatro no mesmo dia então assim eu vejo de forma mais fácil entendeu. Eu acho que a gente vai se acostumado com isso. (Maria)

Nada de anormal. Não sentia nada. (Paulo)

De acordo com o pensamento foucaultiano em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações(9). Dessa forma, como profissionais de saúde não podemos achar que o ato de despir se torna banal com o tempo, pois ao desnudar invadimos o espaço pessoal de um ser social que apresenta suas particularidades. É válido ainda mencionar que a sexualidade implícita a todo tempo nas relações com pacientes despidos é um objeto de preocupação e de análise, pois não é possível negar que o corpo apresenta tabus que se encontra na base da vida social. Além do mais, não se pode esquecer que (a) o enfermeira (o) cuida de muitos pacientes por dia, mas para cada um deles é a nudez de si que está em questão.

Segundo estudos realizados por Domingues e Chaves(10) foi possível identificar o conhecimento cientifico como valor e como meio de obter segurança no agir e assegurar o poder. O que parece estar presente neste estudo é que o conhecimento científico, sustentação do poder de tocar os corpos nus é a chave para agir a despeito dos questionamentos éticos que podem se colocar na consciência dos profissionais, permitindo-lhes exercer, mesmo sem reconhecer, o poder sobre aqueles que estão sobre os seus cuidados.

No entanto, o processo de qualificação da disciplina Enfermagem não parece trilhar o caminho do exercício do poder pelo poder, mas, exercer poder para qualificar o cuidado. Como afirma Almeida, Mishima e Pereira(11), as lideranças da enfermagem vieram construindo este corpo de conhecimentos específicos para garantir a identidade da profissão, a sua autonomia, autoridade e responsa-bilidade, enfim dar à enfermagem o estatuto de disciplina e de ciência aplicada na área da saúde, para garantir o cuidado qualificado.

Na realidade, percebe-se que no cotidiano, a maioria dos pacientes sujeita-se aos cuidados da equipe de saúde por desconhecer seus direitos ou por acreditarem que o profissional, detentor do saber, conhece o que é melhor para seu tratamento e bem-estar. No entanto, esses aspectos não descartam a preocupação que têm com relação ao respeito e à preservação da sua privacidade.

Sendo assim, é importante que a(o) enfermeira(o), mesmo tendo conhecimento cientifico para executar o procedimento, o que lhe garante poder, não exerça a função de controle ao invadir o espaço e a intimidade do corpo na hora de cuidar. É observado que na formação profissional cada profissão tem um código de ética a seguir, o qual procura estabelecer normas cujo propósito é ao menos orientar o profissional na baliza de suas atitudes. O Código de Ética dos Profissionais de EnfermagemCEPE(12) tem como objetivo assegurar o direito de assistência de enfermagem a população, assistindo ao cliente com qualidade, sem riscos e que seja acessível a todos.

Ao explorar este tema, foi possível perceber que as falas dos sujeitos entrevistados sobre a questão do exercício de poder por parte dos enfermeiros foram mais além, evidenciando como esse exercício de poder acontece, muitas vezes sem que seja percebido como tal, como pode ser visto nos sub-temas a seguir:

Sub-tema 1 O poder subliminar e não admitido das (os) enfermeiras (os) sobre o corpo

Este sub-tema significa entender que nem sempre as pessoas percebem quando estão exercendo poder sobre o outro. É onde mais se entende que poder não é algo palpável, é muito mais uma relação onde alguém impõe ao outro a mensagem que deseja transmitir e que implica muitas vezes no uso da hierarquia(9). Quando esta posição de poder é vista como "natural", é onde o poder mais se revela. Compreendendo-se esta forma de exercício de poder, como Foucault(9) explica, é possível fazer uma analogia com certas atividades desempenhadas pela enfermeira que, ao cuidar da pessoa, não pode ignorar que lhe toca o corpo e a expõe, muitas vezes sem pedir autorização, adotando uma postura de poder sobre o corpo do outro, mesmo sendo na maioria das vezes, uma postura negada. Essa situação é contemplada nas falas abaixo:

Eu particularmente não tenho problema, não, com isso, eu sempre... primeiro porque eu preparo o paciente para isso, eu não sou aquele tipo de profissional que chega e vai tirando o lençol. (Luiza)

Eu não vejo isso como poder, eu vejo isso como uma necessidade de algum procedimento que o paciente vai precisar. Não .... não ... a meu ver não. Eu nunca me vi pensando nisso não, como poder não. De forma alguma. Eu nunca me percebi pensando como poder, muito pelo contrário, quando a gente vai fazer algum procedimento, ou com homem ou com mulher, a gente sempre pede licença, né? E explica antes de começar todo o procedimento, explica que a gente é acostumado a fazer, que não se preocupe, aquelas orientações de "praxe", que ele fique a vontade, é uma coisa que a gente faz de rotina. (Morena)

Esse conjunto de falas mostra claramente que o exercício do poder não é percebido pelas(os) enfermeiras(os) estudadas(os). Elas(es) de fato não acreditam que o modo como agem encerra poder e controlam as manifestações sexuais presentes no cuidado de enfermagem que desnudam o corpo. Não obstante, é preciso ficar claro que essas atitudes de respeito, preocupação, empatia, declaradas não impedem que a enfermeira adote uma postura de poder sobre o corpo do outro.

Em seu livro "Vigiar e Punir", Foucault(9) menciona que nos séculos XVII e XVIII surgiram técnicas de poder que eram centradas no corpo individual, centradas no corpo como máquina. Assim, há um investimento no corpo através do adestramento, da ampliação de suas aptidões, retirando-lhe as forças, a partir de procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos, sua colocação em série e em vigilância, organizando em torno desses corpos um campo de visibilidade. Tal forma de interpretar as rotinas e a "praxe", como Morena classificou o conjunto das orientações de convencimento dadas aos seus pacientes, não deixa de ser um sistema de controle cuja hierarquia é exercida primeiramente pela enfermeira, chefe da equipe de enfermagem, detentora do poder de determinar qual(is) técnica(s) seria(ao) executada(s) em cada paciente.

Logo, para Kruse(4), as técnicas de enfermagem são constituídas tendo como base a disciplina espacial e do controle do tempo, portanto, ocupam-se dos gestos, da colocação das coisas no espaço, não considerando o ritmo, a participação e as características dos sujeitos que as executam. Sem dar margem para a inovação, centram-se mais no desenvolvimento das tarefas do que no resultado das ações, objetivando um máximo de rapidez e eficácia. Na vigência da possibilidade de uma recusa, a enfermeira age com rapidez, tanto para evitar o "não" como para encerrar o mais rápido possível uma relação de constrangimento para ambos os pólos desta relação:

Procurei ser rápida e pronto [...]. Eu achei melhor fazer tudo mais rápido. (Lena)

Nessa fala, é possível observar claramente o controle do tempo, do espaço e do corpo do paciente, aspectos que caracterizam o poder disciplinar, dispositivo específico de poder mencionado por Foucault(8-9). Para este autor a disciplina é um controle do tempo. Isto é, ela estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia. Neste sentido, não é basicamente o resultado de uma ação que lhe interessa, mas seu desenvolvimento. E esse controle minucioso das operações do corpo ela o realiza através da elaboração temporal do ato, da correlação de um gesto específico com o corpo que o produz e, finalmente, através da articulação do corpo com o objeto a ser manipulado(9).

Portanto, quando a enfermeira dá explicações ao paciente sobre o procedimento, monta estratégias para evitar sua exposição e desconforto, está assegurando meios eficazes de controlar o corpo e, assim, realizar a técnica invasiva sem qualquer interferência, ou seja: a ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso, com o objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso faz com que pareça pela primeira vez na história esta figura singular, individualizada o homem como produção do poder. Mas também, e ao mesmo tempo, como objeto de saber(8).

Esse contexto é abordado na obra Microfísica do Poder, quando Foucault afirma que rigorosamente o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. Dessa forma, tomemos como exemplo a relação entre a enfermeira e o paciente no ambiente hospitalar, onde nessa relação, sabemos que a enfermeira possui uma autorização social e legal para tocar, manusear e expor o outro exercendo poder sobre seus corpos.

Porém, não é só o exercício do poder pelo poder que está sendo observado nas falas das(os) enfermeiras(os) é uma necessidade de controlar a expressão mais delicada do ser humano que é a sexualidade, a qual quase nunca é vista como "pulsão de vida"(9), mas como a mera expressão sexual. Daí, portanto, usa-se as mais diversas técnicas e estratégias para evitar que o conteúdo sexual do cuidado de enfermagem possa se manifestar. Esta interpretação delineou o segundo sub-tema:

Sub-tema 2 O poder exercido com consentimento do paciente

É notório que desde o trajeto acadêmico, as enfermeiras são indiretamente ensinadas a exercer poder sobre o corpo do paciente, e esse poder se manifesta de várias formas, pois, não existe algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação(9). O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente. Verificamos claramente essa situação na seguinte fala:

Porque se o indivíduo está ali naquele local [...], pra receber aquele tratamento e como nós somos... ele é o hóspede, ele está na condição de hóspede e nós estamos na condição de... dos profissionais do local, então ele sente que, quem sabe dessas questões somos nós. Então ele se rende ao saber. E, na minha opinião, saber é poder. Sabe porque eu digo isso, pela fala que a gente observa, que eles dizem o seguinte: eu não queria não, mas... eu como não entendo nada de saúde, como quem sabe é a senhora, é.. então eu vou deixar e termina deixando. (Veneza)

Sobre esta perspectiva, Foucault(9) afirma que saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber.

Ainda, um estudo de Ferreira e Figueiredo citado por Kruse(4) sobre as relações de poder das enfermeiras sobre os corpos hospitalizados no momento do cuidado de enfermagem, observou que as mesmas estabelecem uma relação direta entre o saber cuidar do corpo e o poder cuidar do corpo, pois, em sua ótica, o saber científico que detêm está associado à prerrogativa de manipular o corpo. O manuseio dos corpos para a realização dos procedimentos de enfermagem e a inspeção dos mesmos, determina um poder sobre o corpo dos/as pacientes internados/as. Ao mesmo tempo, produz um saber sobre este corpo que, através dos registros, passa a ser de domínio de toda a equipe, o que lhes possibilita a aquisição de um saber sobre o corpo hospitalizado. Neste estudo foi possível observar bem de perto esta correlação entre saber e poder. Mais adiante, a análise do conjunto das falas permitiu ainda encontrar mais um tema:

As enfermeiras utilizam-se do conhecimento como estratégia de convencimento

Nesse tema a relação de poder da enfermeira com o paciente vem à tona com outra nuance, pois esta profissional, muitas vezes para realizar procedimentos invasivos, que interferem na privacidade e pudor dos pacientes, utiliza-se de estratégias para convencê-lo e mostrar que aquilo é o melhor. Ou seja, estas profissionais, utilizam-se de "discursos verdadeiros"(8) para atingir determinados fins.

De acordo com Kruse(4), nas atividades diárias da enfermeira no espaço hospitalar, a vigilância é contínua, constante, indefinida e funciona numa rede de relações que sustenta o conjunto e o preenche com os efeitos do poder, onde uns apóiam os outros. Assim, pela análise de Foucault, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder(8). Isso é constatado nas seguintes falas dos sujeitos:

"Pra no caso assim... se for um banho, uma sonda, uma lavagem assim... nunca aconteceu de precisar a gente... pegar a força, você não pega... assim... de convencer, conversar, conversar pra convencer". (Lena)

Quando a gente vai fazer algum procedimento, ou com homem ou com mulher, a gente sempre pede licença. E explica antes de começar todo o procedimento, explica que a gente é acostumado a fazer, que não se preocupe, aquelas orientações de "praxe", que ele fique a vontade, é uma coisa que a gente faz de rotina. (Morena)

Esta última fala deixa claro o sentido da preparação da (o) enfermeira (o) quando assume que a (o) enfermeira (o) pede "licença" para fazer e não pede autorização, quer dizer, não pergunta se o paciente quer ou aceita o cuidado. Ela (e) simplesmente explica o que vai fazer, assegura que sabe fazer, que tem "prática" de fazer e que ele pode "ficar à vontade". Isso não é exercício de poder, na concepção Foucaultiana?

Se esta é a prática do grupo de enfermeiras(os) estudado, é possível que outras descrevam práticas até diferentes, porém serão igualmente asseguradoras do poder de tocar o corpo do outro, pois, cada profissional apresenta uma postura no cumprimento de suas atribuições, acatando-se que a imagem do corpo é estabelecida através da percepção que vai registrando modelos e posturas, e da emoção que proporciona maior conhecimento sobre o objeto que é manuseado ou seja, o próprio corpo, pensamento este também corroborado por Ressel e Gualda(10).

Ao discutir como as enfermeiras "convencem" os pacientes sobre a necessidade de realizar o cuidado de enfermagem e como precisam estar seguras de que suas ações serão consentidas sem recusas, verificamos a existência de situações onde ocorrem reações inesperadas, as quais desencadeiam reações não desejadas e que precisam ser controladas. Nesta circunstância percebemos o terceiro tema que denominamos da seguinte forma:

Cuidados ao corpo nu podem gerar situações a serem contornadas

A relação da enfermeira com o paciente, principalmente nos momentos em que é preciso desnudar o corpo do mesmo para realizar procedimentos invasivos está permeada de situações de natureza sexual, que envolve pudores, privacidade, tabus e poder. Dessa forma, o ato de despir é questionado e desperta determinados sentimentos como vergonha constrangimento e embaraço. Isso acontece porque vivemos em uma sociedade que dita as regras do que é positivo e do que é negativo e as condições de vida que é dado aos seus valores. É importante ainda falar que o corpo através do olhar comunica sentimentos que denunciam o ato de cuidar. Assim, enquanto profissionais devemos estar atentos aos aspectos relacionados à postura e a expressão facial para que não venhamos constranger o paciente. Essas considerações podem ser contempladas na seguinte fala:

Eles ficam muito constrangidos né [...]. Eu acho que eu também me sinto constrangida. (Maria)

Para Pupulim e Sawada(11) a invasão do território e espaço pessoal, fere a dignidade do indivíduo. A privacidade é uma necessidade e um direito do ser humano, sendo indispensável para a manutenção de sua individualidade. O doente não questiona essa invasão porque, na sua percepção, ela é necessária para sua recuperação. Porém, demonstra constrangimento, vergonha e embaraço.

Esse contexto de nudez, sexualidade, invasão de privacidade e poder, envolve cotidianamente a prática profissional da (o) enfermeira (o) ao cuidar de um paciente despido, gerando situações desagradáveis, embora sob efeito ou não da vontade do paciente. É o que pode acontecer na realização de um cateterismo vesical, procedimento em que se insere uma sonda na uretra masculina ou feminina com o objetivo de esvaziar a bexiga ou drenar continuamente a urina(12). Nessa situação pode ocorrer uma ereção, causando embaraço para ambos os sujeitos envolvidos na situação. É o momento da enfermeira tomar as rédeas e resolver a questão de forma a mostrar claramente a inadequação ocorrida. A seguinte fala demonstra esse fato:

Porque eu passei uma sonda no paciente e o bichinho, ele começou a ficar com ereção também. Ele era jovem, ai você entende, né? Uma pessoa jovem, aí chega uma pessoa, do sexo feminino [...] pra fazer cateterismo, [...] pra fazer com toda técnica mexe muito. [....]. Nesse momento que você tem que fazer, você tem que segurar ou fazer mesmo. Mas ai você não vai parar né? Aí tem pessoas que dizem que... bota éter. (Lena)

Neste contexto, a sexualidade, torna-se assim um objeto de preocupação e de análise, como alvo de vigilância e de controle, produzia ao mesmo tempo a intensificação dos desejos de cada um por seu próprio corpo(9). Esta reflexão nos leva a deduzir que tamanha complexidade no ato de desnudar o corpo para cuidar vai exigir muito estudo e muita preparação para o controle da situação. Desta dedução, a partir das entrevistas foi possível extrair o seguinte tema:

O ato de desnudar alguém deve ser conteúdo obrigatório dos cursos de enfermagem.

Ter detectado nas falas das enfermeiras alusão ao curso que fizeram, tanto do ponto de vista de que a questão não foi abordada como deveria ou de que não sentiram na prática relevância deste conteúdo levou à necessidade de verificar se na formação dessas enfermeiras a nudez do paciente foi abordada.

As enfermeiras, ao serem indagadas sobre sua relação com pacientes em situação onde a nudez é necessária reconheceram de imediato que existem cuidados que exigem o desnudamento do corpo. Explicaram que isso acontece quando o paciente não tem condições de cuidar-se sozinho ou em momentos em que se tornam dependentes da equipe de enfermagem. É importante atentar para o fato de que nas instituições hospitalares o corpo do cliente está sobre os cuidados dos profissionais que ali se encontram desenvolvendo procedimentos que se fazem necessários e que exigem o desnudamento, como: banho no leito, cateterismo vesical, higiene íntima, lavagem intestinal, massagem de conforto, entre outros. Isso pode ser contemplado nas seguintes falas:

"Começamos a ver disciplinas, né, que abordavam fundamentos, as técnicas, é... em que fomos encaminhados às unidades hospitalares, aos postos de saúde". (Maria)

"Uma sonda que eu passei, [...] o paciente comigo, não tinha mais ninguém olhando, mas ele cobriu o rosto com vergonha". (Maria)

"Terminei de passar uma sonda agora. Perguntei a paciente... só que ela já me conhece, conhece meu trabalho, e deixou". (Paulo)

"Na minha época, quando eu passei minha primeira sonda foi já dentro de biombo. Agora o paciente se submeteu a 'tá' com cinco alunos do lado e eu passando a sonda". A questão é mais complexa do que você imagina. (Paulo)

É desta forma que o estudante é colocado frente a frente aos cuidados de enfermagem sobre o corpo despido. Assim, essa organização de conteúdos objetiva dotar o estudante de conhecimentos para o exercício profissional estando presente nas Diretrizes Nacionais para a Formação de Enfermeiros e nas Diretrizes Nacionais para Formação de Técnicos e Auxiliares de Enfermagem, embora não textualmente. Essa organização é necessária porque os saberes sobre o corpo são organizados para compor um conjunto de conhecimentos que deve ser ensinados às enfermeiras. Tais saberes, historicamente comprometidos, estão organizados em disciplinas que compõem uma estrutura curricular que se pretende universal e capaz de produzir enfermeiras com determinada identidade profissional(4).

A resolução CNE/CES, 3/2001 define os princípios, fundamen-tos, condições e procedimentos da formação de enfermeiro. Assim, observamos que existe todo um conteúdo programático, através do qual os estudantes irão adquirir saberes para a prática profissional. Essa organização não é neutra e ao pretender uniformizar a formação dos profissionais, concordaremos que se considerarmos as instituições educativas, o currículo seria um dos elementos mais produtivos para estudar o poder e seus variados modos de disseminação(4).

Autores como Almeida, Mishima e Pereira(12) sustentam que as técnicas de enfermagem foram as primeiras manifestações organizadas e sistematizadas de saber na enfermagem e continham as descrições do que deveria ser executado pela enfermeira, passo a passo, relacionando também o material a ser utilizado. Ainda segundo essas autoras, a partir das técnicas, se estruturou um controle rígido do hospital, pois elas determinavam, por exemplo, que os banhos fossem pela manhã, que os horários de verificação de sinais vitais fossem de quatro em quatro horas, que os curativos fossem trocados três vezes por dia, de forma que foram estruturando rotinas que se tornaram tradicionais e perduraram por décadas. Elas são desenvolvidas em determinados espaços e tempos, de forma repetitiva, regular, rotineira e trivial.

Nas palavras de Foucault(9), todo esse saber constituído pela enfermagem, esse controle do tempo, essas atividades repetitivas, o hábito, trata-se do que ele chamou de disciplina ou poder disciplinar. Assim, as técnicas de enfermagem se organizaram de um modo a produzirem um controle das atividades. Dessa forma, o controle se exerce sobre o tempo, sobre o corpo que se realiza a atividade e sobre o objeto da sua realização(4).

Esta interpretação é sustentada por Foucault(9) quando diz que a rotina é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder. São métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade. É o diagrama de um poder que não atua do exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e a manutenção da sociedade(8).

É válido mencionar que a ausência de alguns temas (pudor, invasão de privacidade, sexualidade e tabus) nos assuntos encontrados pelos programas, não significa que tais aspectos não tenham sido levados à tona no momento de ensino da técnica, por alunos ou professores. Essa afirmação pode ser constatada pela fala dos entrevistados quando perguntados se tiveram alguma orientação para lidar com o corpo nu ao prestar um cuidado de enfermagem:

a gente tem toda uma orientação na faculdade [...], a gente recebeu orientação na própria aula teórica, quando a gente fala do banho, da higiene do paciente, tudo que mexe com a nudez do paciente, a gente tem toda uma orientação [...] (Luiza)

Tive , foi uma orientação dentro de uma disciplina. (Morena)

Tive, só nos fundamentos de enfermagem, por exemplo, quando a gente começa a estudar fundamentos tem uma parte que fala sobre essas questões de como cuidar do paciente, focaliza essa questão da privacidade, sobre o próprio corpo. (Veneza)

Nesse sentido, pela leitura das transcrições, foi possível apre-ender que, a maioria dos profissionais entrevistados recebeu orientações para se relacionar com a nudez do paciente, respeitando suas decisões e sentimentos, bem como protegendo-o de qualquer exposição desnecessária, fazendo uso de meios como biombo, cobrindo com lençol, fechando a porta e evitando a circulação de pessoas no local da realização do procedimento invasivo. Os entrevistados assim descrevem este momento:

a gente tem toda uma orientação como preservar o paciente, manter a porta fechada, a gente deve usar o biombo [...], tá dando banho no leito, não esquecer o biombo, fechar a porta pra preservar a privacidade do paciente. Às vezes a gente ia fazer uma higiene, às vezes passar a sonda, por exemplo, não precisava despir o paciente como um todo, só precisa despir realmente a região que você vai manipular, a gente tinha toda uma orientação. (Luiza)

com relação a isso a gente teve primeiro que explicar ao paciente o procedimento para ele saber que vai prestar o cuidado, que a gente vai ter que retirar a camisola, ou tirar assim... a roupa, mas que ele fique tranquilo porque ali quem está é só o profissional e ele, aí a gente fecha todo o local, com biombos e fecha a porta. Aí pede para as pessoas naquele momento não entrar até terminar o procedimento. (Veneza).

Sobre esses aspectos Pupulim e Sawada(11) afirmam que a invasão do território e espaço pessoal, fere a dignidade do indivíduo. A privacidade é uma necessidade e um direito do ser humano, sendo indispensável para a manutenção de sua individualidade. O doente pouco questiona essa invasão porque, na sua percepção, ela é necessária para sua recuperação. Porém, demonstra constrangi-mento, vergonha e embaraço.

Por outro lado, a leitura exaustiva das falas sobre a preparação das enfermeiras para cuidar do corpo nu nos levou a perceber que o foco da aprendizagem não é o trabalho da compreensão da sexualidade, muito pelo contrário, é a preparação da estudante para exercer o controle da situação e do corpo que ela toca.

Tendo em vista tudo que foi exposto é válido ressaltar que os cuidados do corpo nú são necessários para manter o conforto, segurança e bem-estar do cliente. Contudo, as práticas higiênicas não tratam apenas da limpeza do corpo, mas de uma limpeza mais além, da higienização social, concordando-se que as práticas higiênicas imunizam mais as idéias que as coisas; os microorganismos patogênicos ameaçam mais a vida social que a vida orgânica, e por isso são objeto de ritos purificatórios(13).

Neste sentido, estudar as técnicas de higiene, que exige o desnudamento, é de fundamental importância para a obtenção do conhecimento acerca de um tema tão polêmico como a nudez, pois, a cultura na qual estamos inseridos ditam normas em relação ao corpo que precisam ser esclarecidas e entendidas pelos diversos profissionais da área de saúde que lidam com os diversos sistemas sociais os quais atribuem ao corpo nu um sentido particular da representação social. Segundo Rodrigues(13) sabe-se que cada sociedade elege um certo número de atributos que configuram o que o homem deve ser, tanto do ponto de vista intelectual ou moral quanto do ponto de vista físico; que esta constelação de atributos é em certa medida a mesma para todos os membros de uma sociedade, embora tenda a se distinguir em nuances segundo os diferentes grupos, classes ou categorias que toda sociedade abriga.

Porém, é preciso saber que esses tipos de cuidados que exigem o corpo nu estão ligados a diversos fatores sociais, pessoais e culturais que vão influenciar diretamente no desenvolvimento das práticas de enfermagem. Esses aspectos podem ser observados nas falas:

Depende de como ele reage, porque muitas vezes a gente faz uma higiene numa paciente do sexo feminino tranquilo, ela aceita tranquila [...] quando ele se recusa a gente não consegue fazer, desenvolver corretamente. (José)

Por mais que a gente converse, que a gente explique que aquilo vai ser importante pra ele [...], e assim eu tento explicar, tento mostrar que aquilo é importante [...]. Eu boto na minha cabeça que vai ser importante fazer aquilo com ele e tento conversar com ele pra que ele se sinta, assim, o mais a vontade possível. (Maria)

Esse conflito pode ser compreendido ao se perceber que no corpo está simbolicamente impressa a estrutura social. A atividade corporal andar, lavar, morrer não faz mais do que torná-la expressa. A estrutura biológica do homem possibilita-lhe ver, ouvir, cheirar, sentir e pensar, mas a cultura fornece o rosto de suas visões, sentimentos e pensamentos(13). Fica claro que o corpo carrega consigo preocupações impostas pela sociedade, o que o faz escolher um repertório de regras sem nenhum limite definido. Se considerarmos todas as modelações que sofre, constataremos que o corpo é pouco mais que uma massa de modelagem à qual a sociedade imprime formas segundo suas próprias disposições: formas nas quais a sociedade projeta a fisionomia do seu próprio espírito.

No entanto, a consciência de estar desnudando, lavando, enxugando, vestindo, invadindo com sondas, tubos e procedimentos o corpo do outro coloca a enfermeira permanentemente diante de si própria, de sua preparação para cuidar do outro e esta caracte-rística não lhe tira o desconforto em realizar cuidados que precisam do corpo despido.

Tomando como destaque a preparação da enfermeira para desnudar o corpo de outra pessoa, é importante mencionar que durante as entrevistas, algumas enfermeiras demonstraram insatisfação com as orientações recebidas na época da faculdade acerca do tema estudado. Isso pode ser observado na seguinte fala:

Não. A gente não foi preparado na faculdade. A questão da ética, a moral, o respeito ao próximo. A professora coloca na sala de aula pra gente ter respeito, cuidar, mas o preparo psicológico, eu acho que até hoje não é dado" (Paulo). Era bom que mudasse a visão dos professores na questão da nudez. Entendeu? E que os professores fossem primeiro trabalhados para depois trabalhar os alunos. (Paulo)

Enquanto isso, outros demonstram satisfação com as informações recebidas. Neste caso, a preparação pode estar sendo vista como o conteúdo de uma aula ou como recomendações de professores tanto nas aulas teóricas como nas atividades práticas acompanhadas, voltadas para proteger a nudez do paciente de outros olhares, mas, sem discutir o seu próprio constrangimento, como é visto nas falas abaixo:

Eu não tenho muita lembrança, mas é..., a gente teve uma aula sobre isso. O respeito ao pudor, né, do paciente, eles orientavam assim é que a gente sempre colocasse alguma coisa pra proteger o paciente. (José)

Algumas professoras orientavam quanto a isso, a quanto proteger o paciente, colocar o biombo no caso de enfermaria ou fechar a porta no caso de apartamento. (Maria)

Porém, não é aceitável reduzir a preparação a um conjunto de recomendações ou a uma aula teórica pontual que pode ou não estar presente nos programas de disciplina ou no projeto pedagógico do curso. Preparação, no sentido capturado das entrevistas remete ao entendimento de um processo pedagógico educacional.

Como prática educativa, é importante estar atento para as lições de Freire(14) quando afirma que é importante saber que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu cunho gnosiológico, a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, idéias. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra.

Por estas prerrogativas, fica fácil compreender que quando desenvolvemos um procedimento como uma higiene íntima, onde o órgão envolvido é a genitalia, reconhece-se quando o cliente demonstra sentimentos de constrangimento e vergonha. Sobre esta questão LeLoup(15) afirma que quando estudamos a região sagrada, quando abordamos a sexualidade, damo-nos conta de que não se trata somente da sexualidade, mas trata-se também da imagem que a sociedade e as religiões têm da sexualidade. Esses aspectos podem ser observados nas falas:

Vergonha de mostrar o corpo para mim e eu também. (Maria)

É ... é interessante porque a gente se sente envergonhado também, né? De uma certa forma a gente sente uma certa dificuldade. (José)

É um pouco complicado porque a gente vê no rosto do paciente que ele tem vergonha [...]. Mas é difícil pro paciente. (Maria)

É válido ressaltar que em muitas sociedades o corpo é considerado um templo sagrado, assim, nós, enquanto profissionais na área de saúde, ao tocarmos um corpo não devemos esquecer que antes de tocar em um paciente estamos tocando em uma pessoa com toda sua história de vida. Segundo LeLoup(15) o corpo inconsciente guarda o segredo de nossa história pessoal e também da história coletiva. E, algumas vezes, nosso corpo somatiza problemas não somente nossos, que não são apenas aqueles da nossa primeira infância. O que leva Rodrigues(13) a afirmar que ao corpo se aplicam, portanto, crenças e sentimentos que estão na base da nossa vida social e que ao mesmo tempo não estão subordinados diretamente ao corpo. O mundo das representações se adiciona e se sobrepõe a seu fundamento natural e material, sem provir diretamente dele. As forças físicas e as forças coletivas estão simultaneamente juntas e separadas.

Assim sendo, a enfermeira deve estar preparada para se relacionar com o paciente nos momentos em que o cuidado é desenvolvido sobre o corpo despido, pois a mesma no momento de desnudar deve proporcionar um ambiente adequado para a realização da técnica, garantindo a privacidade e o respeito ao paciente.

No contraponto dessas descobertas, a realidade de trabalho das enfermeiras estudadas lhes coloca diante de outras situações onde o exercício de poder vale como estratégia para economizar tempo, fazer o trabalho andar para que todos os cuidados sejam realizados, os pacientes, ao fim do turno estejam limpos, arrumados, medicados, o ambiente em ordem e as ordens médicas cumpridas, sem que apareçam queixas de agressão ou desrespeito. Então, as enfermeiras acabam por se render a esta realidade e se adaptarem à essa circunstância que julgam não ter poder para mudar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teve como objetivo analisar o relato de sete enfermeiras (os) do HUPAA sobre sua relação com o paciente, na prestação do cuidado de Enfermagem onde a nudez é necessária. Nas entrevistas foi possível identificar que os enfermeiros vivenciam seus primeiros contatos com pacientes desnudos ainda no período de formação, entre o terceiro e o quinto semestre da graduação, sempre acompanhadas por suas professoras. Foram vivências cercadas de insegurança, vergonha, constrangimento, mas que as prepararam para o exercício profissional.

Ficou reconhecido que a preparação do estudante/profissional, embora aconteça de alguma forma, precisa ser algo assumido no projeto político pedagógico dos cursos de graduação em enferma-gem. Sugere-se ainda que esses cursos realizem oficinas preparatórias para o cuidado do corpo despido, extensivas aos estudantes e professores, considerando-se que o cuidado constitui uma das ações essenciais (e na atualidade mais do que nunca) que visa a manutenção da vida(16).

As informações produzidas, permitiram concluir que as relações da enfermeira com pacientes desnudos são carregadas de exercício de poder, para as quais nem sempre as profissionais se sentem preparadas e não julgam que, ao agir como agem, estão exercendo poder sobre os paciente. Tais idéias dizem que na relação de cuidado da enfermeira a técnica assume uma certa valorização e acaba por expressar a complexidade do cuidado que assume a dimensão das competências do conhecer, do fazer e do ser, de modo que se possa chegar à compreensão dessa complexidade.

A essência da enfermagem é o cuidado no que ele tem de mais humano e nenhum poder respeita a humanidade, tornando as relações frias, imparciais e desprovidas de sentimento(4). Assim, é preciso dar sentimento ao cuidado, a fim de que as enfermeiras possam assumir que exercem poder sobre os corpos dos outros e se disponham a adotar no seu cotidiano atitudes e estratégias que minimizem o efeito do exercício deste poder, conferindo uma assistência mais humanizada e politicamente correta.

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  • Autor correspondente:
    Regina Maria dos Santos
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    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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