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A enfermagem em tempos de guerra: propaganda política e valorização profissional (1942-1945)

RESUMO

Objetivo:

discutir os efeitos simbólicos da veiculação na imprensa escrita de ritos institucionais relacionados aos cursos de esforço de guerra, promovidos pelas Escolas de Enfermagem do Distrito Federal brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial.

Método:

estudo exploratório e documental, cujas fontes foram tratadas pelo método histórico.

Resultados:

nas reportagens jornalísticas analisadas, evidenciou-se que o Estado Novo brasileiro utilizou a imagem de enfermeiras para divulgar socialmente o modelo altruístico de atuação da mulher no serviço à pátria, por meio da sistemática difusão pela imprensa de sua honrosa atuação na guerra, o que garantiu a ampliação da visibilidade e reconhecimento da profissão de Enfermagem naquele contexto.

Conclusão:

a divulgação pela imprensa de formaturas de enfermeiras socorristas consagrou sua aparição em espaços públicos, ocasião em que o rito institucional foi estrategicamente utilizado para transmitir à sociedade a emergência da nova profissão, com o intuito de apoiar as causas políticas vigentes no país.

Descritores:
Enfermagem; História da Enfermagem; Educação; Desastres; Cruz Vermelha

ABSTRACT

Objective:

to discuss the symbolic effects of the publication on written press of institutional rites related to the courses promoted by the Brazilian Federal District's Schools of Nursing during the Second World War.

Method:

exploratory and documentary study, whose sources were treated by historical method.

Results:

one noticed, in the news reports analyzed, that the Brazilian Estado Novo has used nurses images to divulge within the society the woman's acting altruistic model in service to the country, through the systematic diffusion by the press of her honorable acting during the war, what assured the amplification of the visibility and acknowledgment of the Nursing profession in that context.

Conclusion:

the diffusion by press of emergency nurses graduations magnified their apparition in public spaces, occasion on which the institutional rite was strategically used to transmit to the society the urgency of the new profession, in order to support the political causes in vigor in the country.

Descriptors:
Nursing; Nursing History; Education; Disasters; Red Cross

RESUMEN

Objetivo:

discutir los efectos simbólicos de la divulgación en la prensa escrita de los ritos institucionales relacionados con los cursos del esfuerzo de guerra promovidos por las Escuelas de Enfermería del Distrito Federal de Brasil durante la Segunda Guerra Mundial.

Método:

estudio exploratorio y documental, cuyas fuentes fueron tratadas por el método histórico.

Resultados:

en los informes de noticias analizados se ha revelado que el Estado Novo brasileño utilizó la imagen de las enfermeras para difundir socialmente el modelo altruista del papel de la mujer en servir al país a través de la difusión sistemática por la prensa de su papel de honor en la guerra, lo que garantizó la expansión de la visibilidad y el reconocimiento de la profesión de enfermería en ese contexto.

Conclusión:

la divulgación por la prensa de las graduaciones de enefermeras socorristas consagró su aparición en los espacios públicos, en los que se utilizó estratégicamente el rito institucional para transmitir a la sociedad el surgimiento de una nueva profesión, con el fin de apoyar las causas de la fuerza política en el país.

Descriptores:
Enfermería; Historia de la Enfermería; Educación; Desastres; Cruz Roja

INTRODUÇÃO

No Brasil, no período entreguerras (1918 a 1939), havia elevada demanda de enfermeiras, o que determinou a criação de novas Escolas de Enfermagem. Em agosto de 1942, com o rompimento de relações diplomáticas do Brasil com as potências nazifascistas do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) por ocasião da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), agravou-se a preocupação com a disponibilidade e capacitação de enfermeiras, especialmente pela possibilidade de empenhá-las no esforço de guerra(11 Oliveira AB, Cesario MB, Santos TCF, Orichio APC, Abreu MSA. Qualified nurses for the air force: the organization of a military group for the Second World War. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2013[cited 2016 May 16];22(3):593-602. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/en_v22n3a04.pdf
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).

Durante o conflito, o governo brasileiro passou a adotar diversas estratégias para a constituição de um front interno. Isso ocorreu no sentido de preparar cidadãos voluntários para possíveis ataques ao território nacional, o que conduziu à mobilização de enfermeiras com o objetivo de cuidar dos acometidos na guerra(11 Oliveira AB, Cesario MB, Santos TCF, Orichio APC, Abreu MSA. Qualified nurses for the air force: the organization of a military group for the Second World War. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2013[cited 2016 May 16];22(3):593-602. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/en_v22n3a04.pdf
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-22 Cytrynowicz R. [Serving the fatherland: the mobilization of Brazilian nurses during World War II]. Hist Cienc Saude- Manguinhos[Internet]. 2000[cited 2016 Mar 30];7(1):73-91. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702000000200004&lng=en Portuguese.
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).

Nesse contexto, as Escolas de Enfermagem do Distrito Federal (na época, a cidade do Rio de Janeiro) empenharam-se no preparo de voluntárias socorristas, por meio da criação e organização de diversos cursos intensivos. Dentre as instituições que tomaram parte dessa preparação, estiveram a Escola Prática de Enfermeiras da Cruz Vermelha Brasileira, a Escola Anna Nery, a Escola Profissional de Enfermeiras Alfredo Pinto e a Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac.

A participação dessas instituições de ensino se deu no sentido de capacitar voluntárias para a assistência em cenários de guerra, o que foi publicado em propagandas midiáticas, como em jornais e revistas, a fim de ampliar a visibilidade da imagem da enfermeira e potencializar a demanda da procura pela profissão. Nessa conjuntura, a imprensa funcionou como importante elemento de difusão e divulgação da profissão de Enfermagem no país, sendo este o ponto-chave da discussão desenvolvida no presente estudo.

Cabe ressaltar que pesquisas sobre os efeitos da imprensa são fundamentais para melhor compreensão dos processos que produzem, explicam e influenciam os fatos sociais, políticos e culturais(33 Cardoso RJM, Graveto JMGN, Queiroz AMCA. The exposure of the nursing profession in online and print media. Rev Latino-Am Enfermagem[Internet]. 2014[cited 2016 May 26];22(1):144-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v22n1/0104-1169-rlae-22-01-00144.pdf
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). Com efeito, a imprensa tende a assumir o papel estratégico de (re)produtora de discursos desenvolvidos por classes dominantes, a fim de viabilizar o alcance de interesses que busquem o controle social. Em síntese, o discurso midiático, ao relatar acontecimentos, produzir sentidos e buscar influenciar seus leitores, coloca em evidência o poder simbólico de determinados agentes e grupos sociais(44 Bourdieu P. O poder simbólico. 16. ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2012.).

Diante do exposto, investigou-se como e quais estratégias foram empreendidas para a propaganda e valorização profissional de enfermeiras brasileiras por meio de jornais do Distrito Federal, no contexto da Segunda Guerra Mundial.

Nesse sentido, foi traçado o seguinte objetivo: discutir os efeitos simbólicos da veiculação na imprensa escrita de ritos institucionais relacionados aos cursos de esforço de guerra, promovidos pelas Escolas de Enfermagem do Distrito Federal brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial.

MÉTODO

Aspectos éticos

A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery/Hospital São Francisco de Assis.

Referencial metodológico e teórico

Trata-se de estudo desenvolvido por meio do método histórico, cuja discussão foi apoiada pelos conceitos de rito institucional, poder, capital e campo, da Teoria do Mundo Social, de Pierre Bourdieu.

Tipo de estudo e fontes históricas

Estudo do tipo exploratório, com abordagem da micro-história, com base em análise documental. As fontes históricas foram reportagens jornalísticas, as quais foram localizadas no acervo da Biblioteca Nacional por meio da Hemeroteca Digital.

Procedimentos metodológicos

Para seleção das fontes históricas, na consulta pública do sítio eletrônico da Hemeroteca Digital, foram adotados os critérios: recorte temporal compreendido entre 1939 e 1945, justificado por se tratar do período da Segunda Guerra Mundial; e os nomes das Escolas de Enfermagem, com delimitação espacial no Distrito Federal (cidade do Rio de Janeiro), o que apontou para as reportagens nos jornais denominados: A Manhã, A Noite e Diário de Notícias, de grande circulação à época.

Ao todo, foram 31 matérias jornalísticas veiculadas nos jornais supramencionados, quando se aplicou outro critério. Este, referente aos efeitos da veiculação na imprensa escrita de ritos institucionais relacionados aos cursos de esforço de guerra promovidos pelas Escolas de Enfermagem, no Distrito Federal, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, o que resultou em três matérias jornalísticas.

Nessas, foi aplicada a matriz de análise composta de quatro elementos, a saber: dados de identificação, plano de conteúdo, plano de expressão e dados relevantes de outras fontes/ literatura(55 Oliveira Neto M, Porto FR, Nascimento SA. Application of semiotics in the analysis of facsimiles: a documentary research. Online Braz J Nurs[Internet]. 2012[cited 2016 Mar 30];11(3):848-64. Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/3705/html_1
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), quando a técnica da triangulação foi utilizada e, em seguida, circunstanciadas ao contexto, para a discussão com a literatura de aderência ao objeto de estudo e ao referencial teórico adotado.

RESULTADOS

Como anteriormente descrito, três matérias jornalísticas foram identificadas. Em síntese, a primeira foi publicada em 02 de dezembro de 1942 no jornal A Noite, com o título "Serão chamadas pelo rufar dos tambores e pelo toque dos clarins". Nela, o destaque direcionou-se às autoridades presentes no ritual de formatura das socorristas, principalmente para o paraninfo da turma, o general e ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra. A reportagem ocupou a primeira página com a publicação do discurso do referido militar, articulado a duas imagens: a primeira, com a entrega do certificado a uma das formandas; e a segunda, do grupo de formandas uniformizadas(66 Serão chamadas pelo rufar dos tambores e pelo toque dos clarins. A Noite. 1942 Dez 2. Ano XXXII, n.11.068:1,6,8.).

Já a segunda matéria, datada de 02 de dezembro de 1942 e oriunda do jornal Diário de Notícias, foi intitulada "Diplomadas 420 novas socorristas da Cruz Vermelha Brasileira - a cerimônia cívica de ontem no Teatro Municipal". Ela apresenta aos leitores um conteúdo parecido ao do Jornal A Noite, mas sem mencionar a presença do ministro da guerra e seu discurso(77 Diplomadas 420 novas socorristas da Cruz Vermelha Brasileira: a cerimônia cívica de ontem no Teatro Municipal. Diário de Notícias. 1942 Dez 2. ano XIII, n.6.168, p.1-3.).

A terceira reportagem foi veiculada em 09 de dezembro de 1942, no jornal A Manhã, intitulada "Cruz Vermelha Brasileira". Ela ressaltou a presença de Darcy Sarmanho Vargas, primeira-dama no governo, e da assistente social e educadora Maria Isolina Pinheiro, as quais foram homenageadas no rito, e mostradas com as formandas no primeiro plano da fotografia que acompanhou a notícia(88 Cruz Vermelha Brasileira. A Manhã. 1942 Dec 9. ano II; n.411:7.).

Os jornais que veicularam as matérias jornalísticas eram de editorais distintos. À época, os jornais A Manhã e A Noite desenvolviam uma linha editorial de "direita" - estadonovista - e o Diário de Notícias, de "esquerda", com tendência comunista, de posição contrária à do governo ditatorial vigente.

O recorte temporal dessas matérias se delimitou no período de 2 a 9 de dezembro de 1942. Este redimensionamento temporal justifica a tipificação do estudo na micro-história, quando o objeto de estudo é reduzido em sua escala de observação. A análise do corpus documental oportunizou a discussão acerca dos efeitos simbólicos da veiculação de ritos institucionais relacionados aos cursos de esforço de guerra na imprensa escrita, o que apontou indícios sobre a concorrência entre as Escolas de Enfermagem do Distrito Federal, para se fazerem ver e se darem a reconhecer. Como será possível identificar na discussão, os jornais, independentemente de suas linhas editoriais, direcionaram seus olhares especialmente para a Cruz Vermelha Brasileira, o que não deixou de dar relevo à profissão de Enfermagem ainda emergente naquele contexto.

DISCUSSÃO

O Estado Novo (1937-1945), que foi liderado pelo presidente da República, Getúlio Dornelles Vargas, é reconhecido na história do Brasil por suas características análogas às dos regimes nazifascistas europeus surgidos no período entreguerras, com qualidades ditatoriais de cunho nacionalista, conservador, autoritário e centralizado politicamente. O regime deixou suas marcas simbólicas em diversos campos, o que se deu em função da articulação de uma série de medidas estratégicas, entre elas a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda em 1939, que se constituiu em poderoso aparato burocrático-repressor para a persuasão e consolidação do regime ditatorial.

Por meio do controle oficial da imprensa e da propaganda, passaram a ser sistematicamente introduzidos e reproduzidos os ideais do Estado Novo. Desse modo, o Departamento de Imprensa e Propaganda visava o alcance de todas as camadas da sociedade, principalmente as populares, e logo se conformou como o mecanismo fundamental para o enquadramento dessas camadas às concepções e ideologia do regime. O delineamento pelos meios de comunicação de uma orientação sociopolítica uniforme, que alcançasse as famílias, escolas, fábricas, quartéis e os demais setores da sociedade, passou a contar com intervenções cada vez mais contundentes e cerceadoras, que buscavam assegurar o domínio da vida sociocultural do país e tornar as massas cúmplices do mesmo empreendimento estabelecido(99 Souza RL. A arte de disciplinar os sentidos: o uso de retratos e imagens em tempos de nacionalização (1930-1945). Rev Bras Educ[Internet]. 2014[cited 2016 Mar 30];19(57):399-416. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v19n57/v19n57a07.pdf
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).

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939, e com a tensa inserção do Brasil no conflito bélico contra a Alemanha nazista e a Itália fascista em 1942, o governo passou a adotar diversas medidas de proteção para possíveis ataques ao território nacional. Isso conduziu à mobilização civil e militar no país, e ao preparo de cidadãos para tomarem parte daquela dramática situação, o que implicou na sensibilização via imprensa das mulheres para agirem a favor da pátria(1010 Rosenheck U. Philatelic remembrances: stamps, national identity, and shifting memories of WWII in Brazil. The Latin Americanist[Internet]. 2016[cited 2016 Aug 04]; 60:115-37. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/tla.12066/epdf
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). Nesse processo, a Enfermagem foi tomada como um emblema, pois, como enfermeiras, as mulheres também estariam empenhadas às causas do regime e prestariam cuidados às vítimas de guerra, seja no Brasil ou mesmo no exterior, uma vez que o país estava em franco desenvolvimento de relações e alianças políticas, militares e econômicas com os Estados Unidos da América.

Em função da instalação do Estado Novo e da dinâmica configurada com a guerra, a afirmação da identidade nacional brasileira articulada com o apoio dos discursos militar e patriótico com tendência fascista passou a ser operada no campo da Educação(1111 Santos AV. [Education and fascism in Brazil: the schooling of childhood and the new state (1937-1945)]. Rev Port Educ[Internet]. 2012[cited 2016 Aug 07];25(1):137-63. Available from: http://www.scielo.mec.pt/pdf/rpe/v25n1/v25n1a07.pdf Portuguese.
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). A civilização e defesa da nação ganhavam força como argumentos aparentemente irrefutáveis nas práticas escolares e serviam de meios oportunos para operar a missão pedagógica e a nova ordem do regime ditatorial de Getúlio Vargas, de condução das massas.

Desse modo, o contexto e a cultura política passaram a ser determinantes na construção de esquemas pedagógicos, que legitimariam o projeto ideológico do regime por meio da incorporação e inculcação da cultura das Forças Armadas entre os jovens, na promoção de desfiles cívico-militares por exemplo, onde se assistia comumente a participação de meninos vestidos de escoteiros e meninas trajadas de enfermeiras(22 Cytrynowicz R. [Serving the fatherland: the mobilization of Brazilian nurses during World War II]. Hist Cienc Saude- Manguinhos[Internet]. 2000[cited 2016 Mar 30];7(1):73-91. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702000000200004&lng=en Portuguese.
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). Isso funcionava como uma tentativa de moldagem de ideal patriótico, mas também profissional, que buscava ressaltar a nobre missão de ser soldado e de ser enfermeira, pela manipulação imagética.

A exemplo das grandes nações, em especial dos Estados Unidos da América, o Brasil passou a estruturar efetivos de enfermeiras em condições de responder às necessidades do conflito. Toda essa situação não fez tardar a formação de contingentes de mulheres voluntárias para a prática de Enfermagem de Guerra(11 Oliveira AB, Cesario MB, Santos TCF, Orichio APC, Abreu MSA. Qualified nurses for the air force: the organization of a military group for the Second World War. Texto Contexto Enferm[Internet]. 2013[cited 2016 May 16];22(3):593-602. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/en_v22n3a04.pdf
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,1212 Immonen I. Nursing during World War II: Finnmark County, Northern Norway. Int J Circumpolar Health[Internet]. 2013[cited 2016 Aug 05];72:1-6. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3637642/pdf/IJCH-72-20278.pdf
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles...
-1313 Mecone MCC, Freitas GF, Bonini BB. Nursing Training in the Brazilian Red Cross in the 1940s: a foucaultian approach. Rev Esc Enferm USP[Internet]. 2015[cited 2016 Mar 21];49(n.spe2):60-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v49nspe2/en_1980-220X-reeusp-49-spe2-0060.pdf
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). Diante disso, no Distrito Federal, foram organizados 11 cursos para voluntárias no período da guerra: Socorro de Guerra da Cruz Vermelha Brasileira, Voluntárias de Socorro de Guerra, Primeiros Socorros de Guerra Supletivo ao Instituto Social, Samaritana Hospitalar, Samaritanas Socorristas, Voluntárias Socorristas, Socorrista, Socorrista Hospitalar Supletivo ao Patronato da Gávea, Emergência, Voluntárias Samaritanas e Socorros de Urgência.

No conjunto das instituições que se empenharam na criação e organização desses cursos, figuraram, no Distrito Federal, a Cruz Vermelha Brasileira, a Escola Anna Nery, a Escola Profissional de Enfermeiras Alfredo Pinto e a Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac.

Dentre as matérias jornalísticas selecionadas que noticiaram a promoção dos cursos, a primeira foi publicada em 2 de dezembro de 1942, no jornal A Noite, com o título "Serão chamadas pelo rufar dos tambores e pelo toque dos clarins". Nesse jornal, de apoio ao governo, conferiu-se destaque às autoridades presentes no ritual de formatura, principalmente para o paraninfo da turma, o general e ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, que estava a cumprir papel decisivo junto ao presidente Getúlio Dornelles Vargas na concretização da ditadura do Estado Novo.

No início da Segunda Guerra, o comandante do Exército, Eurico Gaspar Dutra, mostrou-se inclinado a defender a aproximação política e militar do governo brasileiro com a Alemanha nazista e com a Itália fascista, o que foi enfraquecido pelo alinhamento político definitivo do país com os países Aliados em 1942. Contudo, em que pese tal posicionamento, ele foi responsável em articular o envolvimento operativo/militar do Brasil na guerra, fazendo-se presente em várias solenidades, como esta de formatura de 420 socorristas, a qual também foi noticiada nos jornais A Manhã e Diário de Notícias, assim como na Revista da Cruz Vermelha. No A Noite, a reportagem ocupou a primeira página de modo destacado, em que foi publicado o discurso completo do paraninfo, cuja reprodução de um excerto se segue:

Senhoras socorristas - O vosso gesto de extremada gentileza convidando-me a paraninfar a solenidade de vossa formatura, vem traduzindo um sentimento de fidalguia e apreço, encerra um sentido mais amplo e uma significação mais profunda - rendeis homenagem ao próprio Exército Brasileiro. Há muito de simbolismo e muito de compreensão nessa atitude. Reserva que sois das Forças Armadas, coadjuvantes imediatas dos serviços de Saúde e Pronto Socorro, procurastes as mãos amigas de vossos futuros chefes, para receber a consagração na carreira a que vos conduziu o amor ao Brasil e à sua gente. [...] Não é apenas o socorro material que suaviza o sofrimento. Não é apenas a presteza do auxílio que ameniza a dor. Não é apenas a medicação que afasta e domina o mal. Há muito mais ainda. Há o conforto moral de vossa presença, o amparo, algo que fala à nossa sensibilidade e muito que diz ao nosso coração. Esta é a vossa grande e inigualável força, a vossa secreta e misteriosa providência, a vossa maior e melhor contribuição. Nós vos compreendemos, pois, senhoras socorristas, e ao penetrardes nas fileiras dos que devem partir lutando pela sobrevivência da pátria, estendemos as nossas mãos calejadas no manejo das armas que destroem, para apertar as vossas, que apenas conhecem as armas da bondade, da doçura e da mansidão(66 Serão chamadas pelo rufar dos tambores e pelo toque dos clarins. A Noite. 1942 Dez 2. Ano XXXII, n.11.068:1,6,8.).

A fala do paraninfo e ministro da Guerra sobre a participação de mulheres nas guerras reiterava as características de boa parte dos discursos publicados na imprensa escrita da época, que reafirmavam particularidades tidas como essencialmente femininas, como o amor, a abnegação, a candura, mansidão e a disponibilidade.

Tal estratégia discursiva tinha por argumento o estabelecimento da crença simbólica na imposição dos ideais de defesa e na tentativa de consagração daquelas mulheres voluntárias, o que era ilustrado em meio a uma atmosfera poética recoberta de emoção e glamour, que tomavam o lugar da realidade política.

Imagem 1
Ministro da Guerra em ritual de diplomação de 420 novas socorristas da Cruz Vermelha Brasileira, no Teatro Municipal(77 Diplomadas 420 novas socorristas da Cruz Vermelha Brasileira: a cerimônia cívica de ontem no Teatro Municipal. Diário de Notícias. 1942 Dez 2. ano XIII, n.6.168, p.1-3.)

No jornal Diário de Notícias, a reportagem sobre essa formatura foi acompanhada de duas imagens. Na primeira, pode-se observar o ministro da Guerra em ato de entrega de certificado a uma das socorristas da Cruz Vermelha Brasileira. A maior parte delas utilizava a touca na composição de seu uniforme com o símbolo da cruz. Além do ministro da Guerra, estava presente o presidente da Cruz Vermelha Brasileira, general Ivo Soares, além de representantes de outros ministérios, da prefeitura, da Polícia Militar e do Serviço de Defesa Passiva, bem como a esposa de Henrique Dodsworth, interventor do Distrito Federal. A participação dessas autoridades constituiu um dos aspectos necessários à legitimação daquele rito de passagem, visto que evidencia o poder das instituições e das próprias autoridades presentes(1414 Bourdieu P. Les rites comme actes d'institution. Act Recherche Sci Social[Internet]. 1982[cited 2016 Jan 20];43(1):58-63. Available from: http://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1982_num_43_1_2159
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).

Por outro lado, o jornal Diário de Notícias, um dos poucos que faziam alguma oposição política ao Estado Novo, não publicou o discurso do ministro da Guerra, como o fez o Jornal A Noite, A Manhã e a Revista da Cruz Vermelha, o que, de certa forma, apontava sua posição editorial de "esquerda", situação que colocou o Diário de Notícias como alvo de sanções do próprio Departamento de Imprensa e Propaganda, como o controle e alto preço pago para a importação do papel de imprensa para impressão que utilizava.

A segunda reportagem sobre a organização de cursos de esforço de guerra pelas Escolas de Enfermagem, que foi publicada no Jornal A Manhã, de 09 de dezembro de 1942, ressaltou a participação de Darcy Sarmanho Vargas, primeira-dama à época e única mulher a paraninfar uma turma desses cursos.

A intenção de destacar a posição da esposa do presidente da República foi, sem dúvida, prover a distinção. Assim, foi posta em evidência a figura de uma mulher exemplar, um modelo a ser seguido, por conta de seu envolvimento com as causas assistenciais e sociais, que culminaram com a criação e liderança por ela da Legião Brasileira de Assistência, a qual contribuiu para engajar mulheres no esforço de guerra, logo após o presidente Getúlio Vargas declarar o ingresso oficial do Brasil na Segunda Guerra.

Essa entidade foi popularizada pela imprensa, quando milhares de mulheres voluntárias passaram a se inscrever em seus cursos para atuar na defesa passiva antiaérea, na economia de alimentos em virtude da recessão sofrida durante a guerra, na ajuda aos familiares e produção de roupas dos soldados brasileiros que foram enviados ao front italiano, e para apoio à formação de socorristas(1515 Simili IG. Políticas de gênero na guerra: as roupas e a moda feminina. Rev Acervo[Internet]. 2013[cited 2016 Aug 07]; 25(2):121-42. Available from: http://linux.an.gov.br/seer/index.php/info/article/view/550/477
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).

Naquele ritual, coube à Darcy Sarmanho Vargas utilizar-se de seu poder e prestígio como figura feminina pública, o que, de certa forma, contrariava a prática ainda vigente daquele momento de que o campo da política era, sobretudo, uma reserva de caça masculina, onde não era conveniente uma mulher estar inclusa(1616 Alves AES. Divisão sexual do trabalho: a separação da produção do espaço reprodutivo da família. Trab Educ Saúde[Internet]. 2013[cited 2016 Mar 25];11(2):271-89. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tes/v11n2/a02v11n2.pdf
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).

Além da primeira-dama, a assistente social e educadora Maria Isolina Pinheiro também foi homenageada. Ela produziu diversos trabalhos sobre Assistência Social e militou no Movimento Escola Nova pela democratização e gratuidade do ensino público. Em maio de 1944, fundou a Escola Técnica de Assistência Social Cecy Dodsworth no Distrito Federal, atual Faculdade de Serviço Social, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Na Escola da Cruz Vermelha Brasileira, Maria Isolina Pinheiro atuou como professora de Serviço Social, ocasião em que estruturou, em face dos riscos da guerra moderna, um plano de criação de um Corpo de Enfermeiras Auxiliares composto por 100 mil mulheres treinadas, para apoiar as enfermeiras profissionais, bem como um Corpo de Enfermeiras Domésticas, com cerca de 500 mil mulheres preparadas para resolver urgências domésticas, além de um Corpo de Nutrição e um Corpo de Motoristas. Ainda que algo exagerados, os números fantasiosos de sua desmesurada pretensão permitem uma aproximação do lugar que a Enfermagem passou a assumir no discurso mobilizatório da época(22 Cytrynowicz R. [Serving the fatherland: the mobilization of Brazilian nurses during World War II]. Hist Cienc Saude- Manguinhos[Internet]. 2000[cited 2016 Mar 30];7(1):73-91. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702000000200004&lng=en Portuguese.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
,1717 Pinheiro ME. Samaritanismo: objetivos e atividades da Cruz Vermelha. Noções de técnica e de aplicações do Serviço Social. Preparação civil. Defesa passiva. Socorros de urgência. Rio de Janeiro (RJ), Typografia Baptista de Souza; 1942.).

Imagem 2
Formandas da Cruz Vermelha Brasileira com Darcy Vargas e Maria Isolina Pinheiro(88 Cruz Vermelha Brasileira. A Manhã. 1942 Dec 9. ano II; n.411:7.)

A Imagem 2 acompanhou a matéria jornalística intitulada "Cruz Vermelha Brasileira", que registrou essa solenidade de diplomação de cerca de 500 socorristas concludentes do curso na Associação de Educação, na Associação Cristã de Moços e na Associação Cristã Feminina, que contaram com o apoio da Cruz Vermelha.

As formandas se encontram uniformizadas e com touca de tom claro, possivelmente branca. Ao centro do texto imagético, no primeiro plano, encontra-se a primeira dama Darcy Sarmanho Vargas (à esquerda) e Maria Isolina Pinheiro (à direita). A imagem chama a atenção para o uso da cruz nos uniformes na altura do tórax dos corpos das socorristas retratadas, uma das marcas simbólicas da Cruz Vermelha Brasileira. Destarte, o símbolo da cruz e sua representação visual demarcava a institucionalização da Cruz Vermelha, (inter)nacionalmente(1818 La Porte P. Humanitarian assistance during the Rif War (Morocco, 1921-6): the International Committee of the Red Cross and 'an unfortunate affair'. Historical Research[Internet]. 2016[cited 2016 Aug 05]; 89(243):114-35. Available from: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1468-2281.12091/epdf
http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.11...
). Ao longo do tempo, especificamente durante a Segunda Guerra, muitas instituições apropriaram-se do símbolo em seus uniformes, como as próprias Forças Armadas brasileiras, conforme era previsto em seus dispositivos legais. As Escolas de Enfermagem também o fizeram, mas de forma geometricamente diferente, e às vezes de outra cor. Um dos casos, mesmo antes da adoção do símbolo pela Cruz Vermelha Brasileira, foi o da Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras da Assistência a Alienados, atual Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, que adotou a cruz na cor azul.

Refletir sobre os discursos veiculados pela imprensa brasileira, sobre a participação de mulheres no contexto da Segunda Guerra Mundial, ajuda a entender como e o quanto elas foram manipuladas pelos agentes legitimadores do próprio regime ditatorial(1919 Bourdieu P. Dominação masculina. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand; 2010.). Com efeito, elas serviram como elemento para a engrenagem da organização do projeto de identidade nacional, o que foi oportunizado pela ação dos veículos de comunicação por meio de textos escritos e imagéticos, mesmo diante das linhas editorais distintas entre os jornais(2020 Silva CB. Cultura escolar e cultura política: projeto de nacionalização e o jornal escolar, a criança brasileira (Santa Catarina, 1942-1945)]. Hist Educ[Internet]. 2013[cited 2016 Mar 20];17(40):175-95. Available from: http://www.scielo.br/pdf/heduc/v17n40/v17n40a09.pdf
http://www.scielo.br/pdf/heduc/v17n40/v1...
).

O rito institucional tem esta função, ou seja, de manipular o poder construído e idealizado, propriamente para (re)produzir imagens mentais e representações de certos grupos. Com efeito, o que estava em jogo era a subsistência e existência do projeto governamental, visto que sua ideologia e valores deveriam prioritariamente ser reconhecidos e legitimados de forma pública. Isso pode ser explicado pela magia gerada pelos atos de instituição, pois eles tendem a imprimir a crença simbólica aos indivíduos consagrados de que sua existência se justifica e de que devem estar em prontidão para as coisas e causas que se fizerem necessárias(1414 Bourdieu P. Les rites comme actes d'institution. Act Recherche Sci Social[Internet]. 1982[cited 2016 Jan 20];43(1):58-63. Available from: http://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1982_num_43_1_2159
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,2121 Bourdieu P. A economia das trocas linguísticas. 5.ed. São Paulo (SP): Edusp; 2011.).

Ademais, a força estabelecida por esta espécie de crença simbólica favorecia os detentores do poder para falarem em nome do grupo de mulheres voluntárias para a guerra, o que, de certa forma, oportunizada a elas a sua consagração(2121 Bourdieu P. A economia das trocas linguísticas. 5.ed. São Paulo (SP): Edusp; 2011.-2222 Ostos N. A questão feminina: importância estratégica das mulheres para a regulação da população brasileira (1930-1945). Cad Pagu[Internet]. 2016[cited 2016 May 20];(39):313-43. Available from: http://www.scielo.br/pdf/cpa/n39/11.pdf
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). Logo, elas foram induzidas a se direcionarem favoravelmente ao jogo político e social, quando se reconheciam e se deixavam representar mutuamente no projeto de mobilização do governo para a guerra.

Não obstante, a participação e divulgação midiática de autoridades, que paraninfavam as formaturas dos cursos de voluntárias socorristas, viabilizaram a capitalização de alguns lucros simbólicos para a representação da Enfermagem no campo social. Por certo, o prestígio dos agentes depende do seu capital simbólico, isto é, do reconhecimento, institucionalizado ou não, que recebem de um grupo ou de um porta-voz autorizado, para falar em nome desse grupo. O porta-voz tende a falar em nome de uma dada ordem e goza, por sua vez, da legitimidade do coletivo, e o faz pela manipulação simbólica das imagens e pelas operações semióticas de justaposição de valores a signos e símbolos(44 Bourdieu P. O poder simbólico. 16. ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2012.).

Além disso, a própria realização de ritos institucionais dessa natureza tinha como função essencial imprimir a comunhão e unidade coletiva e gerar estados de tensão emocional a serem difundidos pela imprensa afeita ao regime ditatorial. Por essa via, tais espetáculos de cunho nacionalista eram realizados com o comparecimento e comprometimento de pessoas comuns e ilustres. Isso permitia anestesiar o senso crítico e tornar mais permeáveis as mensagens emitidas aos espectadores/leitores(1414 Bourdieu P. Les rites comme actes d'institution. Act Recherche Sci Social[Internet]. 1982[cited 2016 Jan 20];43(1):58-63. Available from: http://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1982_num_43_1_2159
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), tanto assim que os jornais de linhas editoriais contrárias ao regime ditatorial buscavam, no que era possível, resistir a servirem de mecanismo para reforçar a crença simbólica estabelecida.

Por outro lado, o jornal Diário de Notícias manipulou simbolicamente a mensagem jornalística, quando excluiu o dito governamental. Isso resulta no sentido, na leitura realizada à época por um leitor desavisado, de minorar o efeito do discurso de um representante governamental no rito institucional ocorrido. Entretanto, ao se omitir o dito, esse jornal também garantiu maior visibilidade da Enfermagem na matéria, mesmo diante da manipulação da informação transmitida.

Em síntese, as "representações em coisas" ou, por assim dizer, as estratégias de manipulação simbólica - a promoção de rituais e atos públicos, a presença de emblemas, hinos, discursos e declarações à imprensa, e a veiculação de imagens produzidas para estes fins - tinham a finalidade de, mesmo quando parte do rito institucional foi omitido, almejar determinadas impressões que os outros deveriam ter.

Cabe ressaltar que, além da Cruz Vermelha Brasileira, as demais Escolas de Enfermagem do Distrito Federal também se dedicaram ao preparo de enfermeiras, ao que lhes foi possível e oportuno, mas careceram de visibilidade pelos jornais. Isso se infere pela crença simbólica estabelecida pela e na Cruz Vermelha, no que diz respeito à sua atuação (inter)nacional humanitária em conflitos e calamidades públicas, o que lhe rendia lucros simbólicos pela credibilidade à época, definidos especialmente pela construção e reprodução de representações favoráveis à instituição(1313 Mecone MCC, Freitas GF, Bonini BB. Nursing Training in the Brazilian Red Cross in the 1940s: a foucaultian approach. Rev Esc Enferm USP[Internet]. 2015[cited 2016 Mar 21];49(n.spe2):60-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v49nspe2/en_1980-220X-reeusp-49-spe2-0060.pdf
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,2323 Nowak M, Fitzpatrick JJ, Schmidt CK, DeRanieri J. Community partnerships: teaching volunteerism, emergency preparedness and awarding Red Cross certificates in nursing school curricula. Procedia Soc Behav Sci[Internet]. 2015[cited 2016 Mar 30];174:331-7. Available from: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S187704281500720X
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).

Por certo, nesses anos de guerra e de ditadura, o que esteve em evidência entre as Escolas de Enfermagem do Distrito Federal foi a intenção de impor uma visão legítima, no que diz respeito à formação de recursos humanos para a Enfermagem. Nesse processo, evidenciou-se uma luta propriamente simbólica pelo monopólio de fazer ver, dar, conhecer e de se fazer reconhecer, como um dos elementos de manutenção e de sustentação dessas instituições no campo social e político.

Dessa maneira, apesar das relações entre os agentes integrantes do campo da Enfermagem serem permeadas de cooperação, nelas coexistiam o conflito e as disputas pela autoridade, para falar e agir em nome do campo. Isto é, apesar da ordem estabelecida entre as instituições para a criação e organização desses cursos intensivos, havia nas entrelinhas a forte presença da luta para se manter no campo, para acumular capital e pelo poder simbólico.

Outrossim, os ritos institucionais são geralmente operados com o uso de uma linguagem eficaz e com uma espécie de preparação psicológica, que necessita de certo número de gestos, símbolos, juramentos e discursos patrióticos reconhecidos pela sociedade. Trata-se, de fato, de uma das estratégias de transcendência para atuar na realidade social, fortalecendo a crença simbólica, o que era oportunizado com o aparecimento constante de enfermeiras na imprensa(44 Bourdieu P. O poder simbólico. 16. ed. Rio de Janeiro (RJ): Bertrand Brasil; 2012.).

O fato de se contar com autoridades no rito institucional, como paraninfos, era um dos elementos de sensacionalismo para o jornalismo submetido/subordinado ao Estado Novo, a fim de inculcar sua ideologia. Por isso, os cursos intensivos de voluntárias socorristas receberam visibilidade, como se constatou, inclusive, na disposição espacial das reportagens nas páginas dos jornais. Assim, os registros noticiosos acabaram por dar visibilidade à Cruz Vermelha Brasileira e aos cursos de Enfermagem de Guerra por ela criados e organizados, obtendo, como consequência, considerável número de voluntárias inscritas. Isso ficou evidenciado no discurso da educadora Maria Isolina Pinheiro, de que as guerras não são ganhas apenas nos campos de batalha, mas também na retaguarda(1717 Pinheiro ME. Samaritanismo: objetivos e atividades da Cruz Vermelha. Noções de técnica e de aplicações do Serviço Social. Preparação civil. Defesa passiva. Socorros de urgência. Rio de Janeiro (RJ), Typografia Baptista de Souza; 1942.).

Ademais, o exercício de análise apontou a potencialidade da Cruz Vermelha Brasileira na formação de recursos humanos para o atendimento em situações de emergências coletivas, especialmente na Segunda Guerra Mundial, o que, a princípio, não chegou a ser alvo ainda de consideração em outros estudos.

Limitações do estudo

A limitação do estudo se deu mediante ao exercício da síntese histórica discursiva e argumentativa, em função de sua densidade e complexidade. Por um lado, opções foram feitas sobre a aderência e coerência dos resultados encontrados, mas isso foi para atender os ditames metodológicos. Por outro lado, a discussão evidenciou indícios históricos importantes, o que permite versões e interpretações para além daquelas algumas vezes cristalizadas.

Contribuições para a área da Enfermagem

O estudo oportuniza a possibilidade de se ampliar o conhecimento da história da profissão de Enfermagem no contexto da Segunda Guerra Mundial, caracterizado por se tratar de um momento de avanços, rupturas e de mudanças paradigmáticas acerca da formação e prática profissional, e pela necessidade de se debater as circunstâncias dos usos sociais e políticos da imprensa, na construção de representações sobre a identidade profissional de tempos passados que, em geral, tendem a ser (re)atualizadas no presente, quando se (re)conhece o passado.

Pensar nessa perspectiva é direcionar o olhar para o passado no presente, no sentido de entender melhor as representações construídas. Isso implica em ressignificar as experiências pretéritas e aprimorar determinadas práticas atuais, mas também futuras. Aliás, foi em circunstâncias e cenários similares, de guerra e caos, que a identidade da Enfermagem se fortaleceu, o que serviu de vetor para a sua profissionalização e reforçou o legado de sua missão de salvar vidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da discussão das matérias jornalistas articuladas ao contexto, pela redução do objeto de estudo direcionado aos rituais de formação de socorristas no Distrito Federal, durante a Segunda Guerra Mundial, ficou explícito o destacado envolvimento da Cruz Vermelha Brasileira, no sentido de minorar os efeitos dramáticos que, geralmente, encerram as situações de conflito armado internacional.

De fato, o período do Estado Novo contribuiu para valorizar a profissão de enfermeira, apesar dos efeitos simbólicos da manipulação sob a égide ditatorial. Ainda que pela redução da escala de observação do objeto de estudo, evidenciou-se a difusão de informação sobre a Enfermagem nos jornais da época. Com efeito, isso garantiu o acúmulo de alguns lucros simbólicos para a Cruz Vermelha Brasileira, mas também para a própria profissão, principalmente no que diz respeito ao aumento de sua visibilidade e reconhecimento de sua honradez e necessidade em situações de guerra.

A análise jornalística referente às solenidades de formatura dos cursos promovidos pela Cruz Vermelha Brasileira no esforço de guerra demonstrou a sua potencialidade na preparação de mulheres para atuarem como "enfermeiras de guerra" em prol da pátria, ao fazer ver as estratégias de captação de voluntárias para atuação nos cuidados às vítimas de guerra. Isso foi estimulado pelo contexto do Estado Novo, que mobilizou a construção do front interno e da imagem benemérita e pública de enfermeira durante a Segunda Guerra Mundial.

O estudo evidenciou que a divulgação pela imprensa escrita dessas voluntárias socorristas nos ritos institucionais conferiu visibilidade à profissão de enfermeira, o que consagrou sua aparição em espaços públicos, tradicionalmente ocupados por homens, apesar da reafirmação dos papéis femininos e masculinos notável nos discursos dos paraninfos, ilustres representantes dos campos político, social e militar. Além disso, o estudo ressaltou o efeito simbólico que os ritos institucionais exercem a favor dos esquemas de dominação e de manipulação, ao ratificar os seus usos estratégicos e as relações de poder estabelecidas nos espaços sociais.

  • FOMENTO
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Chamada Universal - MCTI/CNPq Nº 14/2013.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2016
  • Aceito
    10 Nov 2016
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