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Possibilidades de cuidado ao casal sorodiscordante para o HIV que engravidou

RESUMO

Objetivo:

Compreender o significado da gestação para casais heterossexuais diante da situação de sorodiscordância para o HIV com vistas à construção de possibilidades de cuidado fundadas na subjetividade.

Método:

Investigação fenomenológica, referencial teórico-filosófico-metodológico de Martin Heidegger. Foi desenvolvida em um Hospital Universitário no interior do Sul do Brasil entre setembro de 2013 a maio de 2014 por meio de entrevista fenomenológica, da qual participaram 11 casais.

Resultados:

Para os casais, a gestação faz parte do seu vivido quando têm vontade, desejam e querem ter o filho do casal, mesmo quando um ou ambos já têm filhos de relacionamentos anteriores. Também faz parte quando consideram os riscos e não querem mais ter filhos nessas circunstâncias, mas de forma inesperada isso aconteceu.

Conclusão:

Compreender as necessidades e demandas reprodutivas desses casais se mostra como subsídio para a qualificação e aprimoramento da atenção como contribuição para o planejamento dos cuidados de enfermagem à saúde reprodutiva desse casal.

Descritores:
Cuidados de Enfermagem; Direitos Sexuais e Reprodutivos; HIV; Gravidez; Filosofia em Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

Understanding the meaning of pregnancy for heterosexual couples facing serodiscordant situation for HIV, aiming at construction of care possibilities based on subjectivity.

Method:

Phenomenological research, theoretical-philosophical-methodological framework by Martin Heidegger. Research was conducted in a University Hospital in the countryside of Southern Brazil, from September 2013 to May 2014 through a phenomenological interview, with participation of eleven couples.

Results:

For the couples, pregnancy is part of life when they wish to have a child, even when one or both of them already have children from previous relationships. In addition, it is part of life when they consider the risks and do not want to have children in such circumstances anymore, but it happened unexpectedly.

Conclusion:

Understanding reproductive needs and demands of these couples is an aid for qualification and improvement of care as a contribution to nursing care planning towards reproductive health of these couples.

Descriptors:
Nursing Care; Sexual and Reproductive Rights; HIV; Pregnancy; Philosophy in Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Comprender el significado del embarazo para las parejas heterosexuales serodiscordantes al VIH con el propósito de establecer cuidados basados en la subjetividad.

Método:

Estudio fenomenológico, de referencial teórico, filosófico, metodológico heideggeriano. Se empleó entrevista fenomenológica a once parejas participantes del estudio en el Hospital Universitario de una ciudad en la región Sur de Brasil en el periodo de septiembre de 2013 a mayo de 2014.

Resultados:

Para las parejas el embarazo forma parte de sus experiencias, ya sea porque desean tener hijos con el/la compañero/a, incluso si uno o ambos ya tienen hijos provenientes de relación anterior. Asimismo forma parte al considerar los riesgos y no desean tener más hijos en estas circunstancias, pero ocurre lo inesperado al quedarse embarazada.

Conclusión:

Comprender las necesidades y demandas reproductivas de estas parejas es importante para la calificación, el mejoramiento de los cuidados y la planificación de la asistencia ofrecida por el personal de enfermería a la salud reproductiva de estas personas.

Descriptores:
Atención en Enfermería; Derechos Sexuales y Reproductivos; VIH; Embarazo; Filosofía en Enfermería

INTRODUÇÃO

A resposta brasileira à epidemia pelo vírus que causa a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (aids) se fundamenta na compreensão de que a saúde é direito de todos, assegurada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Foi esse sistema que permitiu estruturar um programa de acesso universal à prevenção, ao tratamento e ao cuidado à saúde em todas as suas dimensões(11 Brasil. Ministério da Saúde. Recomendações de terapia antirretroviral para adultos vivendo com HIV/aids no Brasil. Versão Preliminar. Brasília: Ministério da Saúde, 2012.). Nessa perspectiva, e em decorrência do êxito terapêutico, foi possível alcançar um aumento considerável da expectativa de vida das pessoas infectadas, e a aids passou a ser classificada uma condição crônica(22 Mendes EV. Health care networks. Ciênc Saúde Colet[Internet]. 2010 [cited 2016 May 20];15(5):2297-05. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v15n5/v15n5a05.pdf
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-33 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2011. 549 p.). Com esses aspectos, surgem outras necessidades para as pessoas que vivem com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), como demandas reprodutivas e o direito ao exercício da paternidade e da maternidade(44 Ventura M. Direitos Reprodutivos do Brasil. Fundo de População das Nações Unidas - UNFPA. 3.ed. Brasília - DF, 2009.).

As discussões envolvendo a temática reprodutiva e o HIV podem ser consideradas a partir da utilização de biotecnologias, mediante a reprodução humana assistida (RHA) e a reprodução entre casais heterossexuais e homossexuais decorrentes dos novos arranjos familiares. Tais possibilidades, associadas à gestação na condição de um dos companheiros ou ambos serem infectados pelo HIV, refletem que a atenção à saúde reprodutiva desse casal, em especial, merece destaque(55 Langendorf TF, Padoin SMM, Vieira LB, Mutti CF. Gestantes que tem HIV/aids no contexto da transmissão vertical: visibilidade da produção cientifica nacional na área da saúde. Rev Pesq: Cuid Fundam[Internet]. 2011[cited 2016 May 20];3(3):2109-25. Available from: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/1358/pdf_416
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).

Tendo em vista o cuidado à saúde das pessoas vivendo com HIV (PVH), é importante destacar as práticas do cuidar em enfermagem que devem primar pela promoção de uma atenção à saúde pautada no acesso universal, na longitudinalidade e na integralidade do cuidado(66 Rocha GSA, Angelim RCM, Andrade ARL, Aquino JM, Abrão FMS, Costa AM. Nursing care of HIV-positive patients: considerations in the light of phenomenology. Rev Min Enferm[Internet]. 2015 [cited 2016 May 20];19(2):258-61. Available from: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1020
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).

A especificidade do HIV, o déficit de informações e a necessidade de qualificação mobiliza os profissionais enfermeiros para uma busca ativa pelo conhecimento, com vistas ao fortalecimento da autonomia profissional e qualidade do cuidado(77 Santos EI, Gomes AMT. Vulnerability, empowerment and knowledge: nurses' memories and representations concerning care. Acta Paul Enferm[Internet]. 2013 [cited 2016 May 20];26(5):492-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v26n5/en_a14v26n5.pdf
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). A gestação com diagnóstico de HIV evidencia a relevância da atuação do enfermeiro qualificado para além da profilaxia da transmissão vertical do vírus, contemplando aspectos emocionais e sociais, vislumbrando a integralidade(88 Caldas MAG, Porangaba SCF, Melo ES, Gir E, Reis RK. Perception of the nursing team on pregnancy concerning infection caused by HIV. Rev Rene [Internet]. 2015[cited 2016 May 20];16(1):29-37. Available from: http://www.periodicos.ufc.br/index.php/rene/article/viewFile/2660/2045
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).

Destaca-se que a reprodução na situação de sorodiscordância se refere aos casais em que apenas um dos parceiros é soropositivo. Essa situação aponta desafios: no plano social, no que diz respeito à conjugalidade, uma vez que o/a parceiro/a negativo/a está exposto/a à infecção pelo HIV; e no plano da atenção à saúde do casal no que se refere ao planejamento reprodutivo. Esses casais, por vezes, não acessam os serviços de saúde por medo de serem julgados. Uma ferramenta na atenção reprodutiva a esses casais é o aconselhamento(99 Gingelmaier A, Wiedenmann K, Sovric M, Mueller M, Kupka MS, Sonnenberg-Schwan U, et al. Consultations of HIV-infected women who wish to become pregnant. Arch Gynecol Obstet[Internet]. 2011 [cited 2016 May 26];283(4):893-98. Available from: http://link.springer.com/article/10.1007%2Fs00404-010-1794-5
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10 Erhabor O, Akani CI, Eyindah CE. Reproductive health options among HIV-infected persons in the low-income Niger Delta of Nigeria. HIV/AIDS. Res Palliative Care[Internet]. 2012 [cited 2016 May 26]; 4:29-35. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3284261/
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11 Matthews LT, Crankshaw T, Giddy J, Kaida A, Psaros C, Ware NC et al. Reproductive counseling by clinic healthcare workers in Durban, South Africa: perspectives from HIV-infected men and women reporting serodiscordant partners. Infect Dis Obstet Gynecol[Internet]. 2010 [cited 2016 May 26]; 2012:1-9. Available from: http://www.hindawi.com/journals/idog/2012/146348/
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-1212 Reis RK, Neves LAS, Gir E. The desire to have children and family planning among hiv serodiscordant couples. Ciênc Cuid Saúde[Internet]. 2013 [cited 2016 May 26];12(2):210-18. Available from: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/16393
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), inclusive para o cuidado de enfermagem na atenção às suas necessidades e demandas reprodutivas.

Os direitos reprodutivos das PVHs, inclusive os casais sorodiscordantes, são os mesmos para as pessoas não infectadas pelo vírus. Entretanto, por vezes, esta temática é silenciada e negligenciada pelos profissionais de saúde(1313 Rahangdale L, Richardson A, Carda-Auten J, Adams R, Grodensky C. Provider Attitudes toward Discussing Fertility Intentions with HIV-Infected Women and Serodiscordant Couples in the USA. J AIDS Clin Res[Internet]. 2014 [cited 2016 May 26];5(6):01-13. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4160891/
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), pautando suas ações em valores morais e estigmas. Para a atenção integral à saúde no campo dos direitos sexuais e reprodutivos aos casais sorodiscordantes, é indispensável incluir discussão quanto à decisão de ter filhos, já que implica na composição familiar(1212 Reis RK, Neves LAS, Gir E. The desire to have children and family planning among hiv serodiscordant couples. Ciênc Cuid Saúde[Internet]. 2013 [cited 2016 May 26];12(2):210-18. Available from: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/16393
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).

Os serviços de saúde têm o compromisso de atender às demandas de mulheres que vivem com HIV, seus parceiros e famílias, especialmente no período gravídico puerperal(1414 Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS / VIH/SIDA (UNAIDS/ONUSIDA). Plano global para eliminar novas infecções por HIV em crianças até 2015 e manter suas mães vivas. Brasília: UNAIDS/ONUSIDA Brasil, 2011.). Os investimentos de qualificação profissional e de acesso aos serviços de saúde refletem a importância das relações estabelecidas entre o profissional de saúde e a PVH, a qual é capaz de acarretar benefícios ao seguimento terapêutico, prevenção de agravos e qualidade de vida(1515 Costa T L, Oliveira DC, Formozo GA. The health sector in social representations of HIV/Aids and quality of life of seropositive people. Esc Anna Nery Rev Enferm[Internet]. 2015 Jul/Sep [cited 2016 May 20];19(3):475-83. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v19n3/en_1414-8145-ean-19-03-0475.pdf
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).

Nesse panorama, a consulta de enfermagem representa uma intervenção eficaz, evidenciando a relevância da relação estabelecida nessa ação capaz de promover a saúde. E para que isso ocorra, o profissional deve fazer prevalecer as individualidades do usuário por meio da escuta, a qual se mostra como uma potencialidade na atenção à PVH, pois permite que esta expresse seus sentimentos e contribui para que o cuidado prestado seja aproximado à necessidade de cada indivíduo(1616 Bringel APV, Pereira MLD, Vidal ECF, Dantas GB. Experience of women diagnosed with HIV/Aids during pregnancy. Ciênc Cuid Saúde [Internet]. 2015 [cited 2016 May 20];14(2):1043-50. Available from: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/22299
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-1717 Tonera LCJ, Meirelles BHS. Potentialities and weaknesses in the care network of people with HIV/AIDS. Rev Bras Enferm[Internet]. 2015 [cited 2016 May 20];68(3):438-44. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v68n3/en_0034-7167-reben-68-03-0438.pdf
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). Tais características de atuação do enfermeiro são convergentes ao repensar a valorização da intersubjetividade nessa relação entre quem cuida e quem é cuidado(1818 Langendorf TF, Padoin SMM, Paula CC, Souza IEO, Aldrighi JD. Prevention of vertical mother-to-child transmission of HIV: care and adhesion provided by couples. Rev Bras Enferm[Internet]. 2016 [cited 2016 May 31];69(2):275-81. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v69n2/0034-7167-reben-69-02-0275.pdf
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).

Com este estudo, busca-se contribuir, a partir dos significados e sentidos desvelados, para o cuidado de enfermagem na atenção à saúde reprodutiva do casal heterossexual sorodiscordante para o HIV. Ainda, almeja-se fornecer subsídio para o planejamento das ações do enfermeiro, considerando que esse profissional: compõe a equipe de saúde na atenção às necessidades e demandas reprodutivas desse casal; participa ativamente na atenção ampliada no pré-natal, no parto, no puerpério e na puericultura bem como no desenvolvimento de ações educativas, sustentadas em produção científica(1919 Barbosa TLA, Gomes LMX, Dias OV. Pre-natal consultation by nurses: client satisfaction among expectant mothers. Cogitare Enferm. [Internet]. 2011 [cited 2016 May 20]; 16(1):29-35. Available from: http://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/21108/13934
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).

Diante do exposto, esta investigação tem como objetivo compreender o significado da gestação para casais heterossexuais diante da situação de sorodiscordância para o HIV com vistas à construção de possibilidades de cuidado de enfermagem fundadas na subjetividade.

MÉTODO

Aspectos éticos

Esta pesquisa foi desenvolvida em concordância com a Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde - Ministério da Saúde, a qual estabelece diretrizes e normas que regem as pesquisas, no Brasil, envolvendo Seres Humanos(2020 Brasil. Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde: dispõe sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). 2012). O projeto foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, com aprovação.

Referencial teórico-metodológico

Pesquisa qualitativa de natureza fenomenológica, voltada ao desvelamento das vivências e do vivido de casais heterossexuais sorodiscordantes para o diagnóstico de infecção pelo HIV, os quais apresentavam demandas de saúde com vista à profilaxia da transmissão vertical do HIV durante o período perinatal. O objeto da investigação direcionou a escolha do referencial teórico e filosófico de Martin Heidegger, bem como o metodológico do mesmo autor(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.).

Local da pesquisa e participantes

O cenário do estudo foi um Hospital Universitário (HU) localizado em uma cidade no interior do Sul do Brasil; mais especificamente, foram os espaços desse HU onde os adultos que vivem com HIV são atendidos de acordo com suas demandas: ambulatório adulto, de puericultura e de pré-natal; Unidade Dispensadora de Medicamentos; e Núcleo de Vigilância Epidemiológica.

Na qualidade de fonte de dados, foram definidos como possíveis participantes do estudo aqueles que atenderam aos critérios de inclusão: casais heterossexuais que se compreenderam nesta convivência familiar de casal, já tendo, ambos os parceiros, conhecimento prévio do diagnóstico de soropositividade de um deles no momento da entrevista e que vivenciaram pelo menos uma gestação na situação de sorodiscordância para o HIV. Critério de exclusão: quando o homem ou a mulher apresentasse alteração no processo cognitivo de pensamento - porém não foi necessário utilizar este critério.

A partir dos critérios e dos casais que os atenderam, 11 aceitaram participar da pesquisa, tendo sido entrevistados. Os parceiros participaram juntos da entrevista, pois este estudo se propôs a investigar o vivido do casal diante da gestação, e compreendeu-se que, para acessar esse fenômeno, tornava-se necessário escutá-los juntos, como casal.

O número de participantes não foi pré-determinado, uma vez que o estudo de natureza fenomenológica considera a possibilidade do alcance da essência do que se mostra, estabelecida como objetivo do estudo, e não, previamente, a quantidade de entrevistas a ser realizada. Assim, a etapa de campo foi desenvolvida concomitante à análise, com vistas à reflexão da adequação da questão norteadora e questões empáticas convergentes à trajetória do estudo. Isso permitiu apontar a suficiência de significados expressos nas falas dos casais, denotando o alcance do objetivo(2222 Paula CC, Cabral IE, Souza IEO, Padoin SMM. [Analytical movement - Heideggerian hermeneutics: methodological possibility for nursing research]. Acta Paul Enferm[Internet]. 2012 [cited 2016 May 18];25(6):984-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v25n6/v25n6a25.pdf Portuguese
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).

Coleta de dados

O convite inicial foi realizado a quem (casal, homem ou mulher) estava no serviço de saúde ao ser contatado pela pesquisadora. Assim, houve a necessidade de quem foi convidado conversar com seu/sua companheiro/a e, posteriormente, a pesquisadora fazer o segundo contato para saber se havia interesse do casal em participar da pesquisa. Para tanto, foi composta uma lista com o contato telefônico do casal, visando confirmação do interesse e agendamento da entrevista.

Considerando que a fenomenologia busca os significados e estes são expressos pela descrição inerente ao conteúdo dos depoimentos, a técnica para obtenção de dados foi a entrevista fenomenológica(2323 Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. [Driving modes of the interview in phenomenological research: experience report]. Rev Bras Enferm[Internet]. 2014 [cited 2016 May 18];67(3):468-72. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v67n3/0034-7167-reben-67-03-0468.pdf Portuguese
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). Iniciou-se essa técnica pela questão orientadora: Como foi pra vocês ter esse filho? Nas situações em que o casal não aprofundou em seu depoimento a questão da sorodiscordância, então foi colocada a segunda questão: Como foi pra vocês ter esse filho na situação de sorodiscordância? Foi necessário realizar a segunda questão em cinco entrevistas.

A etapa de campo foi desenvolvida no período correspondente a setembro de 2013 a maio de 2014. As entrevistas ocorreram na data, horário e local de preferência do casal, setores institucionais ou residência. Foram gravadas com equipamento digital e transcritas à medida que foram realizadas. Os nomes dos participantes foram substituídos pelos códigos M de mulher, H de homem e F de filho, quando este foi mencionado nos depoimentos pelos pais, seguidos dos números 1 a 11 (M1, H1, F1; M2, H2, F2; sucessivamente).

Análise dos dados

Foi utilizado o referencial metodológico de Martin Heidegger, o qual propõe dois momentos: 1) Compreensão Vaga e Mediana e 2) Hermenêutica(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.). Para o desenvolvimento do primeiro momento, foram realizadas leituras e releituras do conteúdo digitado das entrevistas com o objetivo de identificar e grifar as estruturas essenciais, que constituem a estrutura de significação do fenômeno investigado. Essas estruturas são aquelas expressas pelos casais como vivências ou experiências significativas acerca do fenômeno estudado, correspondendo aos significados convergentes, que respondem ao objetivo da investigação.

Após a elucidação e agrupamento dos significados, foi elaborado o caput da unidade - enunciado, cabeçalho ou título da categoria a posteriori que constitui a Unidade de Significação - (US). As US juntamente com os discursos fenomenológicos (descrições detalhadas e textuais do conjunto dos significados expressos nas falas dos casais) compõem a Compreensão Vaga e Mediana. Para elaboração dos discursos fenomenológicos, a pesquisadora procurou seguir com rigor a descrição dos significados utilizando palavras e expressões ditas pelos casais.

A Compreensão Vaga e Mediana diz respeito à dimensão ôntica do fenômeno, aquilo que pode ser percebido de imediato(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.). Remete aos fatos, ao que está dado e pode ser explicado. Dessa forma, os significados buscados nesse momento metódico podem ser entendidos como o que é factual para o próprio casal heterossexual sorodiscordante para o HIV no vivido da gestação.

A Hermenêutica, segundo momento, contempla a análise interpretativa dos significados apreendidos que se constituíram nas US, com vistas à possibilidade de desvelar facetas fenomenais do objeto investigado. Esse é um movimento interpretativo que permite caminhar da dimensão ôntica, factual, para a ontológica, fenomenal. Na dimensão ontológica, indo ao encontro do ser, é que será possível desvelar facetas do fenômeno(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.).

RESULTADOS

A Compreensão Vaga e Mediana, primeiro momento metódico proposto por Martin Heidegger, permitiu ir em direção à compreensão dos significados atribuídos, pelos próprios casais, ao vivido da gestação na situação de sorodiscordância para o HIV.

Assim, os significados foram agrupados constituindo uma unidade de significação.

Unidade de Significação

Os casais heterossexuais sorodiscordantes para o HIV, no vivido da gestação, expressaram que engravidar foi um acontecimento inesperado, em que querendo ou não a gravidez aconteceu.

Os casais expressaram que a gestação faz parte do seu vivido: considerando as diferentes situações que a envolve como ter vontade, desejar e querer ter o filho do casal, mesmo quando um ou ambos já têm filhos de relacionamentos anteriores; quando levam em conta os riscos e não querem mais ter filhos nessas circunstâncias, mas de forma inesperada aconteceu.

A M1 que tomou todas as iniciativas, ela que disse que queria ter [...] No começo eu não queria [...] Mas...aí era uma questão de querer e aconteceu. [...] Mas tem que querer, não adianta, tem que ter muita vontade. (H1)

Agora eu vou ter! Agora vai ser! (M1)

Quando eu perdi eu queria muito esse filho né [...] A gente já tem outros filhos, tenho os meus né [...] a gente sonhou [...] a gente planejou ter a criança antes de tudo isso acontecer. Eu não creio que tenha uma coisa que seja mais forte que a vontade de ser mãe... Por mais que eu tenha meus outros filhos a gente queria ter um filho nosso. (M3)

A gente se planejou nos nove meses, depois que ela ficou grávida, que ela me avisou né, que tava grávida. (H3)

E a gente descobriu que eu tava grávida com 3 meses de gravidez [...] Eu queria ter um filho, mas não queria ter nessas circunstâncias [...] daí eu entrei na onda do falso negativo [positivo] e fiquei grávida. (M6)

Que a gente tava também querendo engravidar daí foi, foi começou a ideia de ir fazer [o teste para o HIV] [...] eu nunca quis ter filho [...] aí játinha no caso o meu resultado positivo [...] mas a M6 queria muito, queria ter esse filho então acabamos tendo. (H6)

Até a gente não queria mais, tenho três filhos, não queria mais, a M10 também, já tem dois. (H10)

Eu também não [queria ter mais filhos]. (M10)

O acontecimento da gravidez surpreendeu os casais, pois não esperavam, não viram e quando ficaram sabendo, a companheira já estava grávida e ficaram apavorados por não imaginar que isso ia acontecer. Não acreditavam no que havia acontecido, porque não queriam, não era hora. Quando as tentativas de gestação não dão certo ou quando esta não chega ao final, não desistem, dão um tempo e a gestação acontece

A gente já nem esperava né? Mas quando aconteceu, quando a M2 soube, ela estava grávida já. (H2)

É que eu tomava remédio, eu não imaginava que eu ia engravidar, né? (M2)

A gente não planejou. (M4)

A gente tinha planejado primeiro, daí ela acabou tendo aquela pré-eclampsia, daí deu seis meses de gravidez, perdeu. Aí demos um tempo e aconteceu. (H4)

Depois a gente ficou sabendo que ela tinha engravidado. (H5)

Tanto que eu descobri minha gravidez eu tava com quase 3 meses de gravidez e eu fiquei apavorada. (M5)

A princípio a gente não tinha programado [...] veio assim num momento que a gente não esperava [...] a gente queria ter um filho, a gente tava em concordância [...] a gente vinha tentando e não tava conseguindo, aí ela veio sem a gente... Inesperado. (H8)

Eu estava tentando engravidar há 6 anos, aí tanto que eu insisti, insistia, não conseguia aí foi um dia que eu desisti e quando eu desisti, daí eu fui fazer exame e descobri que tava grávida. (M8)

É, foi uma surpresa assim, a gente não.... Não esperava e também não queria [...] Já tinha considerado uma vitória a [filha] tábem, tudo certinho, [...] tu pensar, passar por tudo de novo. (H9)

Pra mim foi um susto também, eu vou ser bem sincera, eu não esperava e no momento eu não queria [...] eu olhei o teste da farmácia e eu fiquei assim "Ah, eu não acredito" sabe, porque eu não queria sabe, não era pra agora. (M9)

Pelo que ouviram falar sobre o HIV e a sorodiscordância pensavam e falavam que não podem ter filhos e, com isso, não imaginaram que a companheira iria engravidar. Considerando o que sabem sobre o assunto, não pensam nisso no início e, quando pensam, a primeira coisa que questionam ou afirmam é que não vão ter filhos diante dessa situação.

No começo eu não queria porque eu... na verdade eu acho que o preconceito maior sempre foi meu (H1)

Na hora a gente não pensa nesse tipo de coisa né. [...] daí eu disse "Bah [nome do médico] , filho nem pensar né? E ele disse "Por que não?". "Como é que eu vou ter filho com ele né? É impossível …" Daí o médico: "Não, tem possibilidade". (M1)

Eu não sabia que ela tinha, se eu soubesse é claro que eu ia me prevenir [...] me cuidava pra nem engravidar. (H7)

Eu engravidei né, daí tive que contar [para o H7 sobre o HIV]. (M7)

Tanto é que eu comentei com ela [esposa] quando eu conheci ela, digo " Ó, filho já era, a gente pode só com preservativo". (H5)

Eu sabia que ele tinha [HIV],só que eu nunca imaginei que eu ia engravidar, que nós ia ter um filho juntos. (M5)

Ao falarem que nessa sua situação não podem ter filhos, fazem o que é necessário para não engravidar. Cuidam-se bastante, o companheiro usa preservativo, ou a companheira usa anticoncepcional, porém há falha no método, e a gravidez acontece. Quando querem engravidar, fazem o que é preciso e buscam recursos para consegui-lo.

Pensam nas dificuldades que terão de enfrentar, como os remédios a tomar, levar os outros filhos de um lado para o outro e o estresse do hospital. Também pensam no risco de vida existente para a companheira ao engravidar… mas a gravidez aconteceu.

Chegou um ponto que ela pediu, pediu, pediu e eu fui buscar ajuda médica. (H1)

Aí depois que veio a... tá, agora vamos tentar, vamos ver as possibilidades [...] depois de um ano né? (M1)

A gente se cuidava um horror [...] Foi na relação sexual, estourou o preservativo e ela engravidou. (H5)

É a gente se cuidava bastante [...] Só que a gente não viu [que o preservativo estourou]. (M5)

Ah não foi planejado né, tanto que quando a M10 tava grávida, tava com 2 pra 3 meses já né M10 [...] mas aconteceu, fazer o que né [...] tem que esparramar as crianças, tipo, ele fica com a vó dele, os da M10 ficam com a vó deles. (H10)

É acho que com quase 3 meses [quando descobri a gestação]. (M10)

Esse não, esse não foi planejado... Os outros foram, mas esse não [...] porque eu tava tomando anticoncepcional e tava vindo [a menstruação] [...] ele não queria mais [filhos]... Sabe, até eu não queria mais [...] os remédios, tem que tomar direitinho [...] As crianças [...] Porque ele trabalha daí eu tenho que correr pra tudo [...] Daí fica difícil pra mim. (M11)

Foi problema dos comprimidos [por isso engravidou] [...] Daí vinha um monte de sangue, a gente achava que ela tava menstruando [...] [não queria ter mais filhos] até pelos riscos, pelo risco de vida que ela tem, problemas, assim, tudo afeta [...] Remédios, tudo né, e o estresse, hospital, tudo [...] As crianças, tem que tá correndo com eles pra cima e pra baixo. (H11)

DISCUSSÃO

A Hermenêutica ou interpretação da compreensão dos participantes, casais heterossexuais sorodiscordantes para o HIV, à luz do referencial teórico de Martin Heidegger, impõe explicitar alguns conceitos que sustentaram o alcance do objetivo do estudo. Esse pensador desenvolveu uma ontologia, um estudo do ser do humano que vive em sociedade num determinado contexto e sob algumas condições. Seu pensamento é expresso por palavras hifenizadas com o propósito de valorização etimológica para indicar a raiz e as aglutinações.

Heidegger indica o termo ente para se referir às pessoas no seu cotidiano. Ao se referir astomar as pessoas em sua essência indica o termo ser. O termo - indica que se assume o lugar de protagonista de suas vivências, experiências e relações. Neste estudo, os participantes se compreenderam como um casal, e a Hermenêutica heideggeriana possibilitou desvelá-los como ser-aí-casal(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.).

A composição das palavras hifenizadas ser-no-mundo faz referência ao ser que compartilha vivências e experiências no mundo, em constante relacionamento consigo, com outras pessoas e coisas. Quando se refere ao mundo circundante, aponta aquilo que está mais próximo do ser, caracterizado pelo ambiente e arredores imediatos à sua volta, como o local de trabalho, a vizinhança e outros espaços de convivência(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.).

Neste mundo, o ser desenvolve uma visão daquilo que o cerca, denominada circunvisão, que lhe confere entendimento das coisas e dos fatos, que vão guiar sua ação(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.). Neste estudo, o que cerca o casal é a gestação na situação de sorodiscordância para o HIV. Assim, a circunvisão da gestação guiou como o casal deveria se ocupar para planejá-la. O termo ocupação indica hábitos, um modo de ser predominante e prescrito, em que o ser repete suas ações ou faz sempre as mesmas coisas no cotidiano.

Diante dos acontecimentos no cotidiano, o ser estabelece seu campo de ação e exerce sua liberdade de movimento, aproximando-se daquilo que lhe interessa e está ao alcance do seu entendimento ou afastando-se daquilo que não lhe interessa(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.). Para esse movimento, Heidegger indica o termo espacialidade. Neste estudo, o ser-aí-casal significou o vivido da reprodução como um acontecimento, em que, desejando ou não, a gestação aconteceu. Mostrou-se num movimento de aproximação e afastamento em direção à gestação, desvelando o modo de ser da espacialidade(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.).

Os casais mostraram de imediato, em seus depoimentos, a sua visão sobre o tema soropositividade para o HIV, gestação e sorodiscordância. Ao refletirem acerca de suas vivências e experiências com o preconceito e discriminação, somadas às informações que possuem, formaram um pensamento, uma circunvisão.

A partir dessa visão, os casais mostraram-se no modo de ser da ocupação, ou seja, se ocuparam entre o desejo de ter filhos e o receio de isso acontecer. Então, sua circunvisão guiou este movimento de distanciamento e aproximação da gestação na situação de sorodiscordância para o HIV, que está à mão do ser no mundo circundante(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.).

A circunvisão dos casais expressa o entendimento que possuem, influenciado pelas informações que recebem ou buscam. O que se ouve falar pode ser compreendido medianamente, sem que haja uma apropriação do que se fala. Aquilo sobre o que se fala, por assim ter ouvido falar, traz consigo um caráter autoritário, afirmando que as coisas são assim porque é assim que se ouviu falar delas(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.).

Esse entendimento, denominado por Heidegger de falatório, é aquilo sobre o que se fala que é repetido e passado adiante, potencializando a inapropriação e reforçando a falta de solidez do que é dito. Com isso, o ser-aí tem a possibilidade de compreender tudo sem ter se apropriado e compreendido previamente do que se fala(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.). No vivido da gestação, o ser-aí-casal discorreu sobre ficar apavorado quando engravidou e não querer ter filho devido ao HIV. Sobre isso, já ouviu falar que não se pode ter filho na situação de ter HIV e ser sorodiscordante pelos riscos para o/a companheiro/a negativo e para o filho, ou que, para isso ocorrer, precisa buscar ajuda profissional. O ser-aí-casal se mostra no falatório ao reproduzir autoritariamente, como se houvesse compreendido, a informação de que não poderia ter filho.

O movimento de aproximar-se ou não da gestação, tendo um distanciamento em relação à reprodução, foi regulado pela circunvisão dos participantes, ou seja, por aquilo que sabem acerca do HIV e da sorodiscordância. Nessa interpretação, mostrou-se no modo de ser da espacialidade. No que se refere ao distanciamento e o direcionamento, estes remetem à dinâmica ontológica de constituição do espaço, ressaltando que a espacialidade não é apenas uma posição estática num espaço imóvel. O ser sempre ocupa um lugar e este ocupar deve ser compreendido como a aproximação daquilo que está à mão do ser no seu mundo circundante, a partir de algo já familiar, a sua circunvisão(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.).

O ser-aí-casal expressou que a gestação faz parte do seu vivido, seja quando desejou ter o filho, seja quando, pelos riscos a que está submetido, não o quiseram ter. Considera esses riscos a partir do que entende do HIV e da sorodiscordância. Porém, independentemente do desejo de querer ou não ter filhos, a gestação aconteceu.

O ser-aí-casal utiliza o que está ao seu alcance para atender à sua vontade. Quando quer ter filhos, busca ajuda médica, vai à busca das possibilidades, utiliza recursos tecnológicos, faz reprodução assistida e não desiste da vontade, mesmo tendo perdido outro filho em gestação anterior. Quando não quer ter filhos, usa preservativo masculino ou anticoncepcional.

Ocupa-se a partir da sua circunvisão, trazendo algo para que se torne próximo com a intenção de providenciar, ter à mão, orientando-se pela manualidade. Esse termo indica que, no mundo circundante, o ser pode utilizar as pessoas e as coisas como instrumento. Todo instrumento carrega em sua essência características de ter serventia e aplicabilidade, e tais características indicam o seu caráter de ser-para(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.). Então, o ser prende-se ao instrumental e à manualidade no campo da ação, sem pensar ou refletir sobre o que está fazendo, apenas faz aquilo que precisa ser feito no seu cotidiano(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.).

Ocupado, se mostra na manualidade ao utilizar os instrumentos que vêm ao encontro no seu mundo circundante, como o preservativo masculino e o anticoncepcional oral para evitar a gravidez ou a rotina de tratamento para reprodução humana assistida como forma segura para engravidar. Guiado por essa circunvisão, da impossibilidade da gestação na situação de sorodiscordância, o ser-aí-casal ocupa-se da gravidez ao empenhar-se no seu cotidiano em evitá-la ou buscar recursos para que esta ocorra.

A gravidez está à mão do ser-aí-casal no mundo circundante, pois dela o ser-aí-casal pode se aproximar, fazendo com que aconteça ou não. Embora cotidianamente empenhado e ocupado nesse manuseio, é de forma inesperada que a gestação acontece. O ser-aí-casal fica surpreso, pois não esperava engravidar ou tinha desistido disso, mas fica sabendo da gestação. Considerando que a gestação aconteceu, o ser-aí-casal está entregue à responsabilidade de vivenciar a mesma e seus riscos. Diante do fato posto, não há nada que o ser-aí-casal possa fazer para escapar da gestação. Assim, se abre a um ter de ser e se entrega à responsabilidade de ser o que é(2121 Heidegger M. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. São Paulo (SP): Vozes, 2011.): casal sorodiscordante para o HIV que buscou engravidar e casal que evitou, mas engravidou.

Limitações do estudo

Destaca-se como limitação desta investigação os desafios no decorrer da etapa de campo para encontrar pessoas que atendessem aos critérios de inclusão e que pudessem ser convidadas para participar da pesquisa. Outros fatores são a especificidade dos critérios de inclusão e o déficit de registros acerca da conjugalidade, situação sorológica dos companheiros/as e questões reprodutivas. Diante disso, a previsão de um tempo ampliado para o desenvolvimento dessa etapa da pesquisa foi fundamental na busca pelos casais participantes.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

Na perspectiva de construção do cuidado de enfermagem fundado na subjetividade, esse estudo desvelou como possibilidade o poder-ser mais próprio do casal, compreendido como: a gestação na situação de sorodiscordância com o casal tendo conhecimento acerca do que vivenciará durante a gravidez para que esta transcorra com tranquilidade, e minimizando a vulnerabilidade de infecção do/a companheiro/a negativo e do bebê nos casos de exposição vertical ao HIV. Com isso, afirma-se a relevância do cuidado de enfermagem na atenção à saúde reprodutiva do casal heterossexual sorodiscordante para o HIV, tanto no plano objetivo (biológico, clínico) quanto no plano subjetivo (social, existencial), aproximando-se da integralidade da atenção e viabilizando a garantia do exercício dos direitos sexuais e reprodutivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta investigação, a partir da compreensão dos significados e da interpretação dos sentidos, desvelou facetas de como o ser-aí-casal vivenciou a gestação na situação de sorodiscordância, permitindo compreender suas necessidades e demandas reprodutivas, das quais se destacam a necessidade de resposta menos preconceituosa da sociedade e a compreensão da demanda subjetiva, que se refere ao planejamento reprodutivo para esses casais.

Este desvelamento forneceu subsídios para a qualificação e aprimoramento da atenção à saúde como contribuição para os cuidados de enfermagem diretos e indiretos à saúde reprodutiva deste casal, vislumbrando a garantia dos seus direitos sexuais e reprodutivos. Como cuidados de enfermagem indiretos à saúde reprodutiva, pontua-se a necessidade de desconstrução, com informações baseadas em evidências científicas, de verdades pautadas em mitos, tabus, preconceito e discriminação, as quais definiram, desveladas pelo falatório, a impossibilidade de gestação no contexto do HIV e, especialmente, da sorodiscordância.

Desconstruir essa circunvisão refletirá positivamente em uma resposta menos preconceituosa, rompendo com o falatório e viabilizando a compreensão, da sociedade e do casal sorodiscordante, de que a gestação na situação de sorodiscordância de forma segura é possível. Assim, o casal pode assumir o seu poder-ser mais próprio, o de ser um casal sorodiscordante para o HIV que pode se reproduzir e vivenciar a gestação de maneira plena, na possibilidade do diálogo nas consultas de saúde e de compreensão, se ocupando dos cuidados que devem ser praticados e vivenciados não apenas durante esse momento de sua vida.

Ao assumir seu poder-ser mais próprio, o ser-aí-casal sorodiscordante para o HIV compreenderá a necessidade de buscar atenção à saúde sexual e reprodutiva nos serviços de saúde. Com isso, destacam-se os cuidados de enfermagem diretos à saúde reprodutiva, os quais contemplam, minimamente, as consultas de enfermagem com vistas ao planejamento reprodutivo deste casal, envolvendo o contexto clínico, social, cultural e a dimensão existencial que se refere à subjetividade. Esses aspectos implicam saber como poderá ser feito esse planejamento com vistas ao alcance dos melhores resultados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2016
  • Aceito
    05 Fev 2017
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