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Uma crise que não gera mudanças não é uma crise em sua essência

A CRISE ECONÔMICA

As dificuldades político-econômicas que o Brasil atravessa nos últimos três anos, com cortes frequentes e sistemáticos de recursos nas mais diversas áreas, incluindo educação, saúde, ciência e tecnologia, repercutem diretamente na produção científica brasileira. Como parte integrante desse sistema, a produção científica da enfermagem passa a experimentar uma fase de declínio quantitativo na fatia mundial oposta à fase exponencial verificada na última década, ou seja, doravante publica-se menor quantidade de artigos, comprometendo a visibilidade da produção de enfermagem no cenário internacional.

A DEMANDA REPRIMIDA

Com o contingenciamento de recursos, os órgãos públicos de fomento, aqueles que efetivamente sustentam a produção científica da enfermagem brasileira, passam a criar mecanismos meritocráticos cada vez mais elaborados para oferecer menos, a menos pesquisadores. Isso se reflete diretamente nos programas de pós-graduação stricto sensu, potenciais produtores de conhecimento científico e inovação. Assim, os coordenadores passam a exigir mais do seu corpo docente, com repercussões óbvias sobre os discentes.

Esta política perversa incentiva o fenômeno da subpublicação, do salami science e das revisões "integrativas de textos completos em português". Sintomas claros daquilo que, há tempos, a enfermagem busca se afastar, que é o conceito de pseudociência. Os órgãos de fomento decidem a quem pouco oferecer, com base em índices estabelecidos por indexadores e publishers inacessíveis a imensa maioria dos periódicos de enfermagem, posto que, a normalização estabelecida para inserção nas referidas bases pressupõe um aporte financeiro comprometedor, inclusive, para os maiores periódicos no Brasil.

Assim, perpetua-se a lógica cruel dos princípios da bibliometria, bem estabelecidos pelas leis de Lotka (Lei do Quadrado Inverso), de Brad

ford e de Zipf. A alternativa de sobrevivência da maioria dos periódicos é repassar os custos impostos pelas publishers para os autoresse manter no cenário e aspirar das bases indexadoras a curva ascendente dos indicadores bibliométricos.

No Brasil, os editores executam um trabalho voluntário que transcende, em muito, as horas previstas em seus contratos de trabalho, posto que, todas as atividades universitárias são inalteradas, quais sejam: aulas na graduação e pós-graduação, orientação, acompanhamento de alunos em campo prático, necessidade de publicação, elaboração e correção de provas, submissão de propostas à editais, projetos de extensão e inovação, entre outras.

O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E O ACESSO À INFORMAÇÃO

A demanda reprimida que, em última análise, estimula a publicação pela publicação ganha guarida com o desenvolvimento tecnológico e acesso à informação. Novas bases e formas de acesso são desenvolvidas diariamente. Desde 2014 registra-se um tempo maior de navegação por meio de dispositivos móveis do que através de desktops ou notebooks(11 Chaffey D. Mobile Marketing Statistics compilation [Internet]. 2016[cited 2017 Aug 30]. Available from: http://www.smartinsights.com/mobile-marketing/mobile-marketing-analytics/mobile-marketing-statistics/
http://www.smartinsights.com/mobile-mark...
).

Desta feita, o desenvolvimento tecnológico mobilizou em muito o acesso à informação, de maneira que os resultados de pesquisas circulem mundialmente em uma velocidade nunca antes vista. Por outro lado, o mesmo desenvolvimento tecnológico propicia facilidades à ocorrência de plágio em alguma das suas formas de manifestação, a saber: autoplágio, publicação duplicada, publicação redundante, falsificação ou fabricação de dados, manipulação de imagens, bem-estar humano ou animal, conflito de interesses, autoria(22 Committee on publication ethics. COPE. Flowchart [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 30]. Available from: http://publicationethics.org/files/Full%20set%20of%20English%20flowcharts_9Nov2016.pdf
http://publicationethics.org/files/Full%...
) ou quaisquer outras que possam surgir. Ainda em se tratando em consequências maléficas das tecnologias, são constatados artifícios para manipulação de documento protegido, acesso irregular a conteúdo privado de revistas e bases, entre outras. Contudo, a mesma tecnologia, aparentemente, cria mecanismos de proteção, como o desenvolvimento de sistemas de detecção de plágio cada vez mais elaborados e acurados.

Assim, da convergência dos fatores acerca da crise econômica, da demanda reprimida e do desenvolvimento tecnológico com acesso à informação, advém o ambiente propício à ruptura com o sistema vigente.

Na obra clássica de Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas(33 Kuhn TS. The Structure of Scientific Revolutions. 2 ed., enlarged. Chicago and London: University of Chicago Press; 1970.), um modelo plausível da concepção de ciência é apresentado, sustentando a tese de que o desenvolvimento típico de uma disciplina científica se dá ao longo de uma estrutura aberta, composta de: fase pré-paradigmática, ciência normal, crise, revolução, nova ciência normal, nova crise, nova revolução, etc.

Nas situações de crise, membros mais ousados e criativos da comunidade científica propõem alternativas de paradigmas. Estabelecida a perda da confiança no paradigma vigente, as referidas alternativas passam a ser consideradas, de fato, por um número crescente de cientistas. Segue-se de um período de discussões e divergências sobre os fundamentos da ciência que remete, em parte, o que ocorreu na fase pré-paradigmática.

Os periódicos brasileiros de enfermagem encontram-se diante de uma possibilidade criativa de uma alternativa, não necessariamente excludente ao modelo atual. O Fórum de Editores da Associação Brasileira de Enfermagem congrega mais de 40 periódicos que representam, efetivamente, o status quo da produção científica nacional. O grupo da Biblioteca Virtual em Saúde em Enfermagem (BVS Enfermagem) abarca editores nacionais e latino-americanos numa rede de colaboração. A REVENF é uma base de periódicos de enfermagem inicialmente hospedada no portal BIREME-OPAS-OMS (Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde) que, posteriormente, migrou para um portal privado que, consequentemente, inviabilizou a transferência de todos os periódicos, por uma questão de custos, haja vista que cada revista deveria arcar ou repassar os custos de sua manutenção no ambiente REVENF, agora inserido numa estrutura de uma estrutura análoga a um publisher.

Atualmente, existem algumas iniciativas gratuitas de cooperação de Gestão Integrada de Periódicos científicos que possibilitam, inclusive, cálculos bibliométricos entre os periódicos neles inseridos. Destas, o exemplo mais difundido é o grupo canadense da PKP (Public Knowledge Project)(44 Public Knowledge Project. PKP. Website[Internet]. 2017 [cited 2017 Aug 30]. Available from: https://pkp.sfu.ca/
https://pkp.sfu.ca/...
), que se constitui em uma iniciativa multiuniversitária de desenvolvimento de software de código aberto e condução de pesquisas para prover a qualidade e alcance da publicação acadêmica. Assim, não seria impossível gestar um espelho de baixo custo dos portais de enfermagem e áreas afins. Que não se oponha ou inviabilize a presença dos periódicos nas bases e indexações já alcançadas, entretanto, que contribua para a robustez de um ambiente democrático de livre acesso aos autores, editores e leitores, razão da existência dos próprios periódicos.

Portanto, a ousadia solidária dos editores, sem prejuízo ao escopo e ambições intrínsecas de cada periódico, poderá constituir-se em ação determinante para aumento da visibilidade dos periódicos nacionais e diminuição de custos para os autores.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2018
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